Quem sabe quais são os reflexos da decisão sobre a coisa julgada do STF?

Elidie Palma Bifano

Embora ainda não publicada, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) envolvendo a cessação da eficácia de coisa julgada em caráter individual, e em matéria tributária, diante de uma posterior alteração na jurisprudência dessa Corte, vem repercutindo intensamente entre os contribuintes, os especialistas na matéria e, até mesmo, entre os representantes do povo no Congresso. Ou seja, a ninguém aparenta ter agradado, embora decisão judicial não tenha outra função além de declarar o direito em uma disputa levada aos tribunais, portanto, sempre desagradando uma das partes no litígio…

Quando alguém vai discutir uma questão, nos tribunais, espera obter da autoridade uma decisão que, nos termos da lei, ponha fim à divergência criada. A sentença pode acolher ou não a pretensão do autor e, na hipótese de recurso ao tribunal, espera-se que esse colegiado profira uma decisão, o acórdão, confirmando ou não a decisão da instância inferior. A decisão proferida em última instância, logo em caráter final e não suscetível de recurso, faz a matéria sob discussão coisa julgada, assumindo, tal decisão, o caráter de imutável, definitiva e intangível para as partes e para a situação discutida, ou seja, nunca mais poderá ser alcançada por novo julgamento. Essas características da coisa julgada são no Brasil, um Estado democrático de Direito, garantidas pelo artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição, o qual dispõe que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. A matéria, portanto, é um dos pilares do Estado.

Ocorre que essa determinação constitucional aparenta ter sido abrandada, pelo STF, ao concluir o julgamento dos Recursos Extraordinários nºs 949.297 e 955.227, nos quais entendeu, por unanimidade, que a eficácia de decisão judicial transitada em julgado pode cessar. Assim, decidiu o Supremo que os efeitos de uma decisão definitiva sobre tributos recolhidos de forma continuada cessam no momento em que esse Tribunal se pronunciar em sentido contrário. Em outras palavras, ainda que o contribuinte desfrute de decisão, em matéria tributária, em caráter definitivo, no sentido de que está desobrigado de recolher determinado tributo por ser ele inconstitucional, na hipótese de haver decisão superveniente do STF em sentido contrário, pela constitucionalidade da lei que institui esse tributo, ele passa a ser devido desde a decisão proferida pelo Tribunal Federal, se em controle concentrado ou difuso de constitucionalidade.

Ainda, por maioria de votos ficou definido que a perda de efeitos é imediata, sem a necessidade de ação rescisória. E mais, os ministros consideraram que a situação é similar àquela que envolve criação de novo tributo, assim devendo ser observada a irretroatividade, a anterioridade anual e nonagesimal, e, no caso das contribuições sociais, a anterioridade de 90 dias. Esta explicação é minimamente estranha, visto que a própria Constituição veda que lei nova atinja a coisa julgada.

Como pano de fundo dessa decisão está a CSLL Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) que, na década de 1990, teve a sua constitucionalidade discutida pelos tribunais, sendo que certos julgados consideraram inconstitucional a lei que a instituiu, Lei nº 7.689/88, assim atribuindo às empresas beneficiadas por tais decisões, o direito de não mais recolhê-la. Em 2007, o STF declarou a constitucionalidade dessa norma na Ação de Declaração de Inconstitucionalidade nº 15. O tema da relativização da coisa julgada, consagrado recentemente pelo STF, prosperou a partir do Parecer da PGFN (Procuradoria Geral da Fazenda Nacional) nº 492/2011, por meio do qual se sustentava que a coisa julgada em matéria tributária tem seus efeitos cessados a partir da consolidação de jurisprudência do STF, de forma desfavorável aos contribuintes, ainda que em sede de controle difuso de constitucionalidade.

Em resumo, fixou-se nos Temas 881 e 885, de repercussão geral, que decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem, automaticamente, os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas relações de trato continuado, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo. De outro lado, as decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. Por fim, os ministros do Supremo deixaram claro que na hipótese examinada, envolvendo a CSLL, reverteu-se a coisa julgada, porque ela é válida enquanto permanecerem as mesmas condições fáticas e jurídicas, o que não era o caso, visto que desde 2007 a CSLL foi considerada como constitucional.

As reações ao decidido variaram entre a surpresa e o desalento. Entre os contribuintes, de imediato, surgiu o entendimento de que a coisa julgada não está mais garantida, pois o STF, sob o argumento de um suposto tratamento igualitário entre os contribuintes, que pretendeu preservar a livre iniciativa, estendeu o hoje decidido àqueles que há tempos não mais litigavam pois desfrutavam de coisa julgada. Ora, aquele que a tempo discutiu seu direito e obteve decisão favorável, que transitou em julgado, pode ter o seu conforto abalado todas as vezes que em ação direta ou em sede de repercussão geral os efeitos das decisões individuais transitadas em julgado puderem ser afetados. Para os contribuintes, portanto, a percepção é de que a segurança jurídica restou abalada, pois, foi retirada de quem dela dispunha e, assim, também a credibilidade do sistema jurídico, por mais razões que os ministros do STF tenham apresentado a justificar o decidido. A conclusão é que sob tais argumentos, foi possível rever o passado.

De seu lado, os especialistas em matéria tributária ainda tentam entender os contornos da decisão, já que seu contexto é novo, do ponto de vista jurídico brasileiro. De fato, um dos mais importantes marcos do sistema jurídico, integrante do capítulo constitucional dos direitos e garantias do cidadão, está contemplado no referido artigo 5º, da CF. Com isso nasce a primeira indagação dos estudiosos: como se justifica que lei nova não possa alterar a coisa julgada, mas decisão judicial em sentido contrário assim possa fazer? Qual seria a exata diferença entre estas situações que o legislador constitucional teria perseguido e que só agora foi capturada pelos tribunais?

Além disso, a nosso ver, tampouco se consegue encontrar justificativas para a decisão do STF, podendo se argumentar que as disposições constitucionais sobre a coisa julgada não podem ser interpretadas de forma pontual, o que parece ter ocorrido, uma vez que o artigo 5º, inciso XXXVI, da CF, encerra direito inalienável do contribuinte. Ou seja, não cabe falar em relativização em tema tão caro à Nação. Além disso, o STF também entendeu que ninguém foi pego de surpresa já que há anos era conhecida a decisão pela constitucionalidade da CSLL. Ocorre que essa afirmativa não retrata o cenário jurídico brasileiro sobre o tema, pois nunca houve situação similar que, além de relativizar a coisa julgada, voltou no tempo afetando o passado.

Os parlamentares, representantes do povo, perceberam que tinham uma boa causa para brigar pelos cidadãos e se apressaram a propor projetos de lei com a finalidade de reduzir o impacto, no futuro, dessa decisão. Assim, o PL (projeto de lei) nº 512/23 institui o Programa Especial de Regularização Tributária do Fim da Coisa Julgada junto à Secretaria da Receita Federal do Brasil e à PGFN. De acordo com o §1º, do art. 1º, desse PL, poderão aderir ao programa pessoas físicas e jurídicas, nos termos que indica, que façam prova de serem detentoras de ações judiciais transitadas em julgado às quais se apliquem as teses 881 e 885, ainda que relativas a outros tributos. É de se notar que a ementa do PL adota uma expressão preocupante, mas que retrata perfeitamente a situação: “fim da coisa julgada”.

A leitura da Justificação do PL nº 512/23 demonstra o descontentamento do Congresso com o que denomina permissão para mudar o passado, que ignorou princípios do Estado democrático de Direito, protegidos constitucionalmente, concluindo que esse foi um triste dia para a ordem jurídica do país e para a Justiça. Também foi apresentado no Senado o PL nº 589/23, que altera o Código de Processo Civil para “reafirmar a autoridade da coisa julgada”, dispondo que a decisão judicial alcançada pelos efeitos da coisa julgada material não pode ser alterada ou relativizada por nenhum juízo ou tribunal, inclusive o STF, exceto por ação rescisória específica. Por fim, noticia-se PEC (proposta de emenda constitucional), a qual altera os artigos 5º e 102 da CF “de modo a preservar e reafirmar a posição de destaque do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e especialmente da coisa julgada naquilo que conflitarem com decisões supervenientes proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle vertical de validade normativa”[1].

Além desses reflexos a decisão do STF tem, a nosso ver, muitas outras decorrências que não se limitam à área tributária, propriamente, mas podem atingir a economia e os negócios em geral.

O primeiro aspecto relevante, em termos econômicos, diz respeito aos negócios que são feitos com base nos patrimônios líquidos, contábeis, das pessoas jurídicas. A CVM (Comissão de Valores Mobiliários), com muito acerto, tratou, em seu Ofício-Circular/CVM/SNC/SEP/N° 01/23, de fixar orientações quanto a aspectos a serem observados nas demonstrações contábeis do exercício social encerrado em relação a eventos subsequentes ao período contábil, no caso a decisão do STF, e que se referem as demonstrações contábeis e que exigem que a entidade ajuste os valores reconhecidos em suas demonstrações ou reconheça itens que não tenham sido previamente reconhecidos. O principal fundamento dessa determinação reside no fato de haver um evento passado que deu origem a uma obrigação presente, princípio contábil que orienta o registro de um passivo. Além disso, a CVM, em sua função de garantir a credibilidade do mercado de capitais, entende que se faz necessária uma robusta divulgação desse evento quanto a seu impacto nas demonstrações financeiras e na destinação do resultado do período. Ou seja, cabe às sociedades, fazerem o correspondente registro contábil de todas as questões tributárias as quais se enquadrem nos termos das Teses nºs 881 e 885. Destaque-se que, embora a CVM tenha autoridade sobre as companhias de capital aberto, suas determinações são acolhidas pelo CFC (Conselho Federal de Contabilidade), de tal sorte que se tornam obrigatórias para todas as sociedades e pelos auditores independentes, uma vez que a Contabilidade é apenas uma.

Outro aspecto relevante diz respeito a transações que são feitas sobre o patrimônio líquido das sociedades. Tais operações se concretizam sobre e em torno de patrimônios líquidos contábeis que as partes aceitam e assim declaram, havendo a contratação de cláusulas protetivas voltadas a eventos subsequentes não dimensionados no momento da negociação como passivos ocultos, não conhecidos. Como tratar a recente decisão do STF: como um passivo oculto?

À luz da manifestação dos Ministros do STF, a CSLL já era tida como constitucional, logo o passivo era conhecido e poderia, isso sim, não estar provisionado. Essa afirmativa merece mais reflexões, pois a realidade é que a provisão é sempre o registro de uma expectativa de perda e, diga-se, no Brasil nunca houve situação similar que, além de relativizar a coisa julgada, voltou no tempo, e a melhor expectativa era no sentido de que se modulasse o decidido, como soe ocorrer em matéria tributária. Ainda, indaga-se, na hipótese de as declarações e representações trazidas pelos vendedores, nos termos do que à época era conhecido e da experiência junto ao STF de não retroatividade de decisões, demonstrarem ausência de previsão de pagamento de passivos ocultos, esses fatos operam a favor do vendedor ou do comprador? Teria o vendedor se omitido ao não reconhecer um passivo e assim aumentado, indevidamente, o valor do patrimônio da entidade? Quais as consequências que desse procedimento podem advir em termos de valor das ações e de preço dos negócios firmados?

E mais, há reflexos financeiros que podem afetar os resultados das sociedades, como já se têm observado nas entidades que vêm divulgando fatos relevantes relativos à redução de seus resultados por conta de débitos tributários que se consubstanciaram com a decisão do STF, a despeito dos ministros afirmarem que deveria ter sido reconhecida uma provisão referente a eventual passivo a ser liquidado. Essa afirmativa, porém, é meia verdade, pois a CVM, que supervisiona o mercado de capitais nunca determinou que assim se procedesse. Quem errou, portanto?

Esse entendimento aplica-se a todas as decisões definitivas que tiveram seus resultados revertidos no STF e, diga-se, são muitas. No que tange às autoridades fiscais, não se descarta que comecem a cobrar os contribuintes que estejam nessa situação, com multa e juros pelo atraso no pagamento de tributos. Devem, portanto, as empresas estar atentas a todas as situações em que tenham obtido decisão judicial com trânsito em julgado e, tempos depois, o STF em repercussão geral ou em ação de declaração de inconstitucionalidade tenha decidido de forma diversa, revertendo a condição do contribuinte. Com isso soma-se custo adicional para aqueles que desfrutam de decisões transitadas em julgado, em matéria tributária, de contratar serviços de especialistas para acompanhar as decisões do STF a fim de evitar transtornos maiores. E muitas outras situações hão de surgir…

Tudo isso, sem dúvida, em detrimento da segurança jurídica, elemento essencial para tranquilizar os atuais investidores que não esperam o nascimento de débitos tributários voltados a questões que, para eles, já se decidiram a seu favor. Ainda, segurança jurídica é elemento chave para atrair investidores e ativar a economia, gerando empregos e oportunidades com que tanto o País conta. O fruto dessa decisão, a nosso ver, é tão nefasto que, como visto, já surgiram propostas para limitar o alcance das decisões do Poder Judiciário, exigindo a sua modulação, pois onde falta segurança, sobra oportunismo e cresce o próprio ativismo.

Elidie Palma Bifano

Mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

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