Retomada do voto de qualidade: saber e sabedoria para o Carf

Ludmila Mara Monteiro de Oliveira , Mariel Orsi Gameiro

A escassa clareza de uma solução plausível para controvérsias complexas nos remete sempre à demanda de um casamento, quase utópico, entre a sabedoria e o saber. Embora sejam palavras formadas do mesmo radical, trazem diferentes significados. Desde o latim, tivemos substantivos díspares para nominar as duas ideias — a sabedoria era sapientia, que é o conhecimento intuitivo das coisas, inato ou adquirido com a experiência; noutro giro, o saber era scientia, que é um conjunto de saberes acumulados através do estudo, nas várias áreas do conhecimento. A sapientia, ao contrário da scientia, não remete à ideia de estar-se diante de um saber adquirido acumuladamente.

Nas vezes em que a sabedoria tem maior relevância, lembramo-nos da história do julgamento realizado pelo rei Salomão[1], que foi desafiado à resolução de uma contenda entre duas mulheres que disputavam a mesma criança, dizendo-se ambas mães dela.

A origem da história conta que essas duas mulheres habitavam o mesmo quarto e tinha cada uma delas, um recém nascido. Morreu um deles durante a noite, tendo sido sufocado pela mãe, que o pôs no lugar do outro, que ela tomou para si, enquanto sua companheira dormia. Nessa disputa pelo mesmo filho, não houve consenso, sendo suscitada justiça à Salomão.

O rei de Israel, após ouvir as razões das duas, ordenou que lhe trouxessem sua espada, anunciando que cortaria ao meio a criança viva, e daria cada metade às mães reivindicantes. A primeira mulher, que promoveu a acusação, aprovou imediatamente a proposta, e a segunda, comovida pelo desespero, suplicou que entregassem o bebê à outra mãe, para que não o matassem. Todos sabem o final da história: o rei afirma que verdadeira mãe é a segunda, que preferiu desistir do bebê para salvar-lhe a vida, com a aposta certeira, baseada em sabedoria, no sentimento materno e no real desespero da perda potencial de um filho.

Dessa história, abstraímos um dos termos mais utilizados atualmente, a “decisão salomônica” para representar decisões que tenham como marco a sabedoria na identificação de um “meio-termo” para algum problema que, ab initio, parecia insolúvel.

A narrativa parece bem vir a calhar quando a temática é a formalização do acordo entre o Conselho Federal da OAB e o Ministério da Fazenda, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, representantes dos grandes contribuintes e advogados especialistas no tema, propondo uma medida, dita “intermediária”, para o tão polêmico voto de qualidade, reinstituído recentemente pela Medida Provisória nº 1.160/2023.[2]

Antes de adentrarmos nos termos e considerações sobre o trato supramencionado, vale regredir, ainda que rapidamente, para os passos percorridos nesse longo caminho: em 2020, a Lei nº 13.988/2020[3] estabelecia que os empates no Carf fossem decididos de forma favorável ao contribuinte, com suporte — ao menos em referência ao que foi e o que é ainda argumentado — no artigo 112, do Código Tributário Nacional[4], e na busca de decisões mais imparciais no julgamento dos processos em âmbito administrativo. Ainda, foi publicada a Portaria MF nº 260/2020[5], que dispõe sobre diversas limitações à regra de desempate adotada na nova lei, como sua inaplicabilidade aos responsáveis tributários e à matéria aduaneira.

Como já dissemos no último artigo publicado sobre a desmistificação do Carf (aqui), no tempo compreendido entre 2020 e 2023, contra a modificação da regra foram ajuizadas três ações diretas de inconstitucionalidade.[6] A despeito de já se ter formado maioria no Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade da norma, superando-se até mesmo as alegações de vício de natureza formal, o julgamento ainda não teve seu fim.

Já nos primeiros dias deste ano, o ministro Fernando Haddad anunciou um pacote de medidas para “restabelecer” a arrecadação, e uma delas foi justamente a alteração citada inicialmente, com a retomada do voto de qualidade, extinguindo-se a regra do in dubio pro contribuinte, inadvertidamente amparado no artigo 112 do CTN, e voltando ao status quo ante, vigente desde a origem do órgão.

A partir daí, passou-se a vivenciar uma histeria coletiva, com debates baseados em alegações falaciosas de ambos os lados e a fuga do debate técnico sobre pontos sensíveis da estrutura, funcionamento e toda legislação que envolve o Carf, como bem apontado nesta Direto do Carf por Diego Diniz Ribeiro (aqui). A reboque, vieram as enviesadas, e quiçá perigosas, propostas de fim do modelo paritário, também criticadas aqui, desta vez sob a pena de Carlos Daniel Neto (aqui).

Em que pese a repentina mudança no critério de desempate, é importante mencionar que a eficácia e a vigência da norma são inquestionáveis durante o período constitucionalmente previsto ou até sua a votação pelo Congresso, salvo se sobrevier a concessão de uma medida cautelar suspendendo-a ou declaração de sua inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário.

Nesse contexto, a OAB ajuizou a ADI nº 7.347, para requerer a inconstitucionalidade formal dos artigos 1º e 5º da MP, seja porque considerá-la veículo legislativo inadequado para tanto ou ainda pela manutenção do princípio in dubio pro contribuinte, supostamente esposado no artigo 112, do CTN, restaurando-se a vigência do artigo 19-E, da Lei 10.522/2002.

Em 14 de fevereiro p.p., como já adiantado, realizado um acordo entre diversas instituições (Ministério da Fazenda, OAB, Procuradoria da Fazenda Nacional, representantes de grandes contribuintes, dentre outras), que delimitou o que seria o “meio-termo” para a solução das controvérsias sobre o tema. Em suma, requer que o voto de qualidade seja declarado constitucional desde que, nos casos de empate resolvido por essa sistemática: i) fiquem excluídas todas as multas, e cancelada a representação fiscal para fins penais (artigo 83 da Lei nº 9.430/1996), inclusive para aqueles já julgados e pendentes de apreciação do mérito no TRF competente; ii) possibilite-se manifestação do contribuinte para pagamento no prazo de 90 dias, com a exclusão dos juros — ex vi do artigo 13 da Lei nº 9.065/1995 — ou pagamento em até 12 parcelas; iii) possam ser utilizados créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa de CSLL, determinado na forma da regulamentação, para quitação do débito; e, por fim, que iv) os créditos em dívida ativa da União em discussão judicial, possam ser objeto de proposta de acordo de transação tributária específica.

Pois bem, vamos às considerações sobre a situação que nos acena, sem objetivo de esgotá-las.

O primeiro ponto a ser tratado: a inadvertida forma utilizada.

Uma vez proposta ação de controle de constitucionalidade (ADI ou ADC), não há possibilidade de desistir, conforme dispõe o artigo 5º da Lei nº 9.868/1999[7], além do entendimento esposado na ADI nº 892[8], tendo considerado o princípio da indisponibilidade.[9]Se não é possível desistir do pedido, não há qualquer sentido em possibilitar a validade de um acordo realizado, a pretexto de um julgamento mediante interpretação conforme a Constituição, que é pautada na preservação da intenção normativa da lei, e ao mesmo tempo, na manutenção da eficácia das normas constitucionais.

Ainda, e já adentrando o segundo ponto, intrinsicamente relacionado ao primeiro, não é possível traçar precisamente os limites da atividade judicial para um julgamento, principalmente quando a questão exige o recurso a princípios de textura aberta e maior dificuldade de aplicabilidade.

O terceiro ponto refere-se à desvinculação do Congresso àquilo que for acordado ou posto nos termos da ADI supramencionada. Ora, o contorno que pode ser dado à norma na esfera legislativa não só reside no conteúdo das 138 emendas propostas, e isso atinge diretamente o resultado pretendido para a votação da medida provisória, e, consequentemente, rende a todos a um cenário ainda mais inseguro.

Já o quarto ponto a ser tratado nos remete a um problema já por nós apontado: a ausência de dados oficiais do Carf sobre o impacto da modificação do critério de desempate. Em nova consulta aos Dados Gerenciais do Carf[10], nota-se que foram atualizados em 30 de janeiro deste ano. Ali consta que, em 2021, 1,6% dos casos julgados foram decididos pelo desempate pró-contribuinte; e, no ano subsequente, o percentual é pouco superior, 1,8%. Inexiste comprovação estatística ou qualquer informação oficial de que tal percentual se refira aos grandes casos ali julgados, tampouco o montante do crédito exonerado a partir do critério de desempate contrário aos interesses da Fazenda Pública, inserido em 2020, fruto de verdadeiro contrabando legislativo, em que pese o STF sinalizar o contrário.

A movimentação de diversos setores, bem como de todas as grandes instituições, com esforço hercúleo para chegarmos a uma solução salomônica sobre o voto de qualidade, concentra seus holofotes, demanda tempo e energia, sem que haja esclarecimento do seu próprio ponto de partida: qual é o percentual de casos decididos pelo desempate pró-contribuinte? Qual o montante deveras exonerado pela aplicação da sistemática? A despeito da atualização recente nos Dados Gerenciais do Carf[11], permanecem tais perguntas sem resposta.

Registre-se que outros profundos problemas existentes no tribunal, ou novos problemas trazidos pelas alterações promovidas pela MP supra —tal como a limitação imposta aos recursos, de mil salários mínimos — ou a inexistência de um regime jurídico para conselheiros representantes dos contribuintes, embora não sejam objeto de análise desta coluna são também merecedores de atenção, como tem sido com o voto de qualidade.

Ainda, e como quinto ponto a ser considerado, devemos tornar os olhos, mesmo que coincida com um exercício de futurologia, às consequências que tais medidas intermediárias podem causar, como o aumento potencial de judicialização das controvérsias tributárias, em contramão às propostas para amenizar a litigiosidade do sistema tributário brasileiro[12]. Afinal, se já contabilizarmos apenas o período de vigência da MP nº 1.160, é possível termos significativo acervo de ações propostas pelos contribuintes, em relação aos julgamentos no Carf, seja para contestar o veículo legislativo utilizado, seja pelo objetivo de manter o in dubio pro contribuinte.

Por fim, mas não menos importante, vale mencionar que a exclusão da multa, nos casos de empate, não é novidade nos debates sobre o tema, tendo sido tratada por Igor Mauler (aqui), sublinhando não ferir a disposição do artigo 112, do CTN, que determina que “a lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades” será interpretada de maneira mais favorável ao contribuinte. Calha, entretanto, pontuar que tal posicionamento não é uníssimo, porquanto há quem entenda que o artigo 112 do CTN não encapsula critério de desempate, e sim mero critério interpretativo. Basta verificar que o dispositivo está localizado no capítulo IV do CTN, intitulado “Interpretação e Integração da Legislação Tributária”.

Não podemos esquecer que é essencial analisarmos uma solução de forma sistêmica — especialmente pela diferentes interpretações sobre o tema, ou em razão da Fazenda Pública e os contribuintes ocuparem diferentes lugares na partida, seja porque a primeira não pode recorrer ao Judiciário após decisão definitiva em sede administrativa, seja porque o contribuinte agora deve lidar com a relativização da coisa julgada sem modulação de efeitos, ou ainda pelas exigidas garantias para discussões judiciais.

E, para tanto, em que pese não esmiuçarmos toda a problemática, é imprescindível apontarmos que, por vezes, decisões que parecem salomônicas não necessariamente o são, posto que devem ser dotadas do binômio saber-sabedoria. Oxalá encontremos o caminho para que, com saber, travemos um debate tecnicamente respaldado para delinear o voto de qualidade e sua aplicabilidade; e, com sabedoria, tenhamos tempo para o debate democrático, com ênfase à participação dos técnicos presentes nas diversas vertentes envolvidas no tema, públicas ou privadas, e parcimônia nas decisões sobre o que será feito, para prevenção de medidas precipitadas em problemáticas aparentemente insolúveis e delicadas.

*Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

[1] Salomão era rei de Israel, e a história encontra-se em Reis 3:16-28.

[2] https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/155690

[3] Art. 28. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002 , passa a vigorar acrescida do seguinte art. 19-E: “Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972 , resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.”

[4] Destaque-se que o caput do dispositivo expressamente consigna que “[a] lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado.” Sempre válido repisar que tributo e sanção ostentam natureza díspares. Isto porque, em primeiro lugar, a multa é sempre uma sanção de ato ilícito, ao passo que o tributo jamais poderá sê-lo; em segundo lugar, os tributos são a fonte precípua – e imprescindível – para o financiamento do aparato estatal, enquanto as multas são receitas extraordinárias, auferidas em caráter excepcional, cuja função é desestimular comportamentos tidos como indesejáveis.

[5] http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=110820&visao=anotado

[6] Cf. ADIs nºs 6.399, 6.403 e 6.415.

[7] Art. 5º Proposta a ação direta, não se admitirá desistência.

[8] “O processo de controle normativo abstrato rege-se pelo princípio da indisponibilidade. A questão pertinente à controvérsia constitucional reveste-se de tamanha magnitude, que, uma vez instaurada a fiscalização concentrada de constitucionalidade, torna-se inviável a extinção desse processo objetivo pela só e unilateral manifestação de vontade do autor”. (ADI 892 MC, voto do rel. min. Celso de Mello, j. 27-10-1994, P, DJ de 7-11-1997)

[9] No mesmo sentido: ADI 2.049 MC, Rel. Min. Néri da Silveira, ,DJ de 31-8-2001; ADI 387 MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 11-10-1991; ADI 4.125, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJE de 15-2-2011.

[10] Disponível em: http://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-2023/dados-abertos-202301-final.pdf. Acesso em: 21 de jan. de 2023.

[11] Disponível em: http://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-2023/dados-abertos-202301-final.pdf. Acesso em: 21 de fev. de 2023.

[12] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-contencioso-tributario-final-v10-2.pdf. Acesso em 20 de fev. de 2023.

Ludmila Mara Monteiro de Oliveira , Mariel Orsi Gameiro

Ludmila Mara Monteiro de Oliveira é doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University, conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

Mariel Orsi Gameiro é conselheira do Carf, professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e graduação, responsável executiva do GT de Direito Aduaneiro da FGV-SP, mestre em medicina pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) e doutoranda em Direito Tributário na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

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