Planejamento tributário e os espólios da ADI 2.446

Por Caio Cesar Nader Quintella

Tudo começou em 1999, como está registrado na Mensagem do Poder Executivo à Câmara dos Deputados MSC nº 1.459: “A inclusão do parágrafo único do artigo 116 faz-se necessária para estabelecer, no âmbito da legislação brasileira, norma que permita à autoridade tributária desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de elisão, constituindo-se, dessa forma, em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito”.

Menos de dois anos depois estava promulgada a Lei Complementar nº 104/2001, inserindo no Código Tributário Nacional (CTN) a seguinte prerrogativa: “A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.

Julgamento garantiu a liberdade de se proceder a negócios com a intenção de amenizar ou obliterar o impacto tributário
Irresignada, a Confederação Nacional do Comércio (CNC) bateu nas portas do Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da ADI nº 2.446, onde se denunciou a violação dos princípios da legalidade (ampla e estrita), da tipicidade e da separação dos poderes, na medida em que fora concedido às autoridades tributárias mandatos indeterminados de legislador, socorridos pela analogia na verificação das obrigações, e a magistratura incidental, podendo, por meio da interpretação econômica do direito tributário, declarar nulidades e desconsiderar negócios que reduziam o ônus fiscal – ainda que licitamente praticados, mas maculados por figuras enigmáticas, como abusos de direito, de formas e ausência de propósito negocial. Seria o fim do planejamento tributário, vez que chancelada a imposição da maior carga tributária possível sobre as atividades privadas.

Por 20 anos a ação tramitou no STF, tendo seu desfecho neste ano, quando foi julgada improcedente, endossando a constitucionalidade do dispositivo. Porém, verificou-se um fenômeno curioso: houve certa celebração e parcial satisfação de ambas as partes envolvidas. Tanto as fazendas públicas como os contribuintes viram-se, de algum modo, vencedores.

De um ponto de vista formal e processual, a resistência pública foi prestigiada, afastando as alegações de inconstitucionalidade do comando da lei complementar.

Por outro lado, se observadas as razões e os fundamentos determinantes, compreende-se o sorriso esboçado pelos contribuintes. Decidiu-se pela prevalência absoluta do princípio da legalidade na atividade de fiscalização arrecadatória, de modo que a supressão ou a mitigação de carga tributária, intencional e deliberada, por meio de planejamento tributário, encontra guarida no sistema jurídico, podendo-se, assim, livremente, evitar o nascimento do fato gerador, com restrição apenas na eventual ilegalidade dos atos praticados, estando voltada a ferramenta de combate do parágrafo único do artigo 116 do Codex Tributário à ocultação dolosa dos deveres com o erário, já materializados – além de confirmar sua atual inaplicabilidade, pois pende de regulamentação por lei ordinária.

Em outras palavras, os anciões da aldeia pouparam a besta – tão temida pelos camponeses – e depois a soltaram. Mas o fizeram somente após garantirem, assegurarem e demonstrarem a todo o povoado que ela não possuía garras e presas maiores do que aquelas dos cães que lá, há muito, já guardavam suas cercas.

Frise-se que apenas se considerar o resultado negativo de ação direta de inconstitucionalidade, descartando-se os fundamentos para a conclusão alcançada, esvazia o teor judicante desse controle – do contrário, bastaria levantar ou abaixar o polegar.

Se regulamentada, o Fisco poderá utilizar tal prerrogativa para lavrar autuações, mas ficarão esses atos sujeitos à arguição – se não, à confirmação – de invalidade, quando houver qualquer discrepância na sua aplicação em relação ao alcance que a Corte delineou na ADI nº 2.446, para justificar sua legitimidade.

Hoje, prefere-se invocar o artigo 149, inciso VII, do CTN, inflando sua abrangência, fazendo lá caber os abusos de direito, de formas e a falta de propósito negocial, muitas vezes por meio do banalizado, incorreto e irresponsável rótulo de “simulação”.

De qualquer forma, as decisões da mais alta instância do Judiciário merecem total observância – pelos cidadãos e pela administração pública – independentemente de opiniões sobre erros e acertos.

Nessa linha, pode se afirmar, com muita serenidade, que, naquilo em que o julgamento dessa ADI esclareceu os limites do planejamento tributário, houve uma confirmação da soberania dos princípios da legalidade estrita, da tipicidade e o resgate de muito antigo e simplório critério temporal da incidência tributária para determinar a licitude das manobras dos contribuintes, garantindo a liberdade de se proceder a negócios com a intenção de amenizar ou obliterar o impacto tributário – algo que tinha deixado de ser prestigiado, com esse rigor definitivo, em decisões administrativas e na doutrina moderna. Não há especulações, o acórdão é muito claro.

Considerado isso, questiona-se e provoca-se: será que as operações, as estruturas e os modelos negociais antes condenados (por exemplo, emprego de holdings efêmeras em estruturas de M&A, as incorporações supostamente ocorridas para o aproveitamento de prejuízos e a segregação da mesma atividade e suas receitas operacionais) encontrarão redenção e absolvição sob esse mesmo crivo? Só o tempo – e a jurisprudência – irão dizer, esperando-se pela inegociável coerência e a certeza do direito.

Por Caio Cesar Nader Quintella

Advogado tributarista em São Paulo, professor e mestre em Direito pela PUC/SP e ex-vice-presidente da 1ª Seção do Carf e ex-conselheiro titular da Câmara Superior de Recursos Fiscais

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