Dedutibilidade das despesas com pagamentos variáveis a diretores

Maria Carolina Maldonado Mendonça Kraljevic e Thais de Laurentiis

De acordo com Friedrich Müller, consagrado jurista alemão, uma norma pode se tornar obsoleta, mesmo sem alteração em seu texto, em razão de mudanças no contexto em que se insere [1].

A perenidade das normas jurídicas é tema bastante controverso, o que o torna um excelente assunto para análise destas autoras! Assim, na coluna de hoje, buscaremos analisar a obsolescência ou perenidade das normas sobre dedutibilidade das despesas com pagamentos variáveis a diretores e administradores, haja vista a recente publicação do Acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no REsp nº 1.746.268/SP [2]. Ademais, e como não poderia deixar de ser, apresentaremos como o assunto tem sido julgado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Sem qualquer medo de equívoco, podemos afirmar que, de fato, o pano de fundo sobre a matéria ora sob análise é a questão da obsolescência normativa. Afinal, a alteração no contexto empresarial [3] foi uma das principais razões que levaram a ministra Regina Helena Costa a concluir, no julgamento do REsp nº 1.746.268/SP, pela não aplicação dos “vetustos requisitos da periodicidade — mensal —, bem como da constância do numerário desembolsado — fixo — em relação à despesa com o pagamento dos honorários de administradores e conselheiros de empresas”, de forma a afastar a interpretação conferida pela Receita Federal à norma atualmente contida no artigo 368, parágrafo único, I, do Regulamento do Imposto de Renda, aprovado pelo Decreto nº 9.580/2018 (RIR/2018).

Já pedindo desculpas aos nossos leitores pela aparentemente exagerada citação legislativa, a qual se faz necessária para a boa compreensão da intrincada matéria, vamos à compreensão do citado artigo 368, p.u., I do RIR/2018.

O referido dispositivo tem por fundamento artigo 43, §1º, “b”, do Decreto-lei nº 5.844/1943, que determina a adição ao lucro real das “retiradas não debitadas em despesas gerais ou contas subsidiárias, e as que, mesmo escrituradas nessas contas, não correspondam à remuneração mensal fixa por prestação de serviços” [4].

Ao interpretar tal norma — à época, refletida no artigo 243, “a”, do Regulamento do Imposto de Renda, aprovado pelo Decreto nº 58.400/1966 —, no Parecer Normativo CST nº 48/1972, a Receita Federal concluiu que a vedação à dedução das “retiradas”, que não correspondessem à remuneração mensal fixa, se aplicaria aos sócios e titulares de empresas individuais e, também, aos diretores e administradores, inclusive àqueles com vínculo empregatício.

A polêmica acerca da vedação à dedutibilidade dos pagamentos variáveis a diretores e administradores se intensificou com a publicação da Lei nº 8.383/1991, cujo artigo 74 prevê a dedutibilidade da remuneração indireta — os chamados “fringe benefits” — paga a administradores e diretores, bem como com a isenção da distribuição de lucros a partir de 1996 [5].

Diante desse contexto, a própria Receita Federal, no Parecer Normativo Cosit nº 11/1992, ao analisar a compatibilidade do então novel artigo 74 da Lei nº 8.383/1991 com o artigo do RIR/80, que, correspondia ao artigo 43, §1º, “b”, do Decreto-lei nº 5.844/1943 [6], concluiu que tal dispositivo se justificava, sob a égide daquela legislação então vigente, para evitar que pessoas jurídicas distribuíssem lucros sob o manto de retiradas pro-labore. Assim, a Receita Federal concluiu, no citado Parecer Normativo Cosit nº 11/1992, que com a publicação do artigo 74 da Lei nº 8.383/1991, “o conceito de mensal e fixo não deve ser mais considerado”.

Não obstante, em 1997, a Receita Federal emitiu a Instrução Normativa SRF nº 93, reafirmando expressamente que “[s]ão dedutíveis na determinação do lucro real, sem qualquer limitação, as retiradas dos sócios, diretores ou administradores, titular de empresa individual e conselheiros fiscais e consultivos, desde que escriturados em custos ou despesas operacionais e correspondam a remuneração mensal e fixa por prestação de serviços” (grifamos).

Descritos os desencontros do tema no âmbito da legislação legal e infralegal, já podemos passar à análise da jurisprudência do nosso conselho, com uma advertência inicial: no Carf o tema é igualmente polêmico e a sua análise exige cuidados.

As gratificações e participações no resultado pagas a diretores e administradores, embora sejam uma forma de remuneração variável, têm sua dedutibilidade vedada nos artigos 45, §3º, da Lei nº 4.506/64, e 58, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 1.598/77, refletidos nos artigos 315 e 527 do RIR/18 (equivalentes aos artigos 303 e 463 do RIR/99). Assim, é preciso distinguir os casos que têm por fundamento apenas o artigo 368, parágrafo único, I, do RIR/18 (equivalente ao artigo 357, parágrafo único, I, do RIR/99) — o qual foi objeto da recente decisão proferida pelo STJ no Resp nº 1.746.268/SP, mencionada alhures —, daqueles que tratam também dos artigos 315 e 527 do RIR/18. Nestes últimos, muitas vezes, a discussão tem por foco o vínculo entre diretor ou administrador e sociedade, tendo em vista a dedutibilidade das gratificações e participações nos lucros pagas a empregados [7].

Debrucemo-nos, então, sobre alguns casos concretos analisados pelo Carf.

No Acórdão nº 1103-00.729 [8], discutia-se a glosa de despesas com serviços prestados por dirigente da pessoa jurídica. Embora o fundamento da autuação não fosse art. 357, parágrafo único, I, do RIR/99, o Conselheiro Marcos Takata examinou o artigo 43, § 1º, do Decreto-lei nº 5.844/43 e concluiu que “há muito se encontra superada a restrição da dedução das despesas com administradores, dirigentes ou diretores, para remunerações mensais e fixas”. Isso porque (1) a interpretação lógica do artigo 43, § 1º, do Decreto-lei nº 5.844/43, leva à conclusão de que a restrição contida na alínea “b” se refere apenas à remuneração de sócios ou titular de firma individual; e (2) a restrição contida no artigo 43, § 1º, “b”, do Decreto-lei nº 5.844/43 foi superada pelos artigos 47, §§ 5º e 7º e 51, da Lei 4.506/64.

O primeiro ponto trazido pelo conselheiro decorreria, basicamente, do fato de a alínea “b” do § 1º do artigo 43 do Decreto-lei nº 5.844/43 adotar o termo “retiradas”; e da alínea “d” vedar a dedução de remuneração não fixa (“percentagens”) paga apenas a diretores residentes no exterior. Em outras palavras: para o conselheiro Marcos Takata, ao utilizar a expressão “retiradas”, o legislador restringiu a aplicação da alínea “b” aos sócios ou titular das firmas individuais. Para membros de diretoria, somente os pagamentos efetuados a residentes no exterior seriam indedutíveis, nos termos da alínea “d”.

Por sua vez, a superação da restrição contida no artigo 43, § 1º, “b”, do Decreto-lei nº 5.844/43, derivaria da nova regulação à dedutibilidade das despesas de remuneração de sócios, administradores, diretores e dirigentes, pelos artigos 47, §§ 5º e 7º e 51, da Lei 4.506/64 (posteriormente, tratada nos artigos 29 e 30, do Decreto-lei nº 2.341/87, os quais, por sua vez, foram revogados pelo artigo 88, XIII, da Lei nº 9.430/96). Este segundo ponto seria complementado pelo artigo 74 da Lei 8.383/91, que, como visto acima, autoriza a dedutibilidade da remuneração indireta paga a administradores e diretores (“fringe benefits”), que, por sua natureza, são variáveis e podem não ser mensais [9].

Já a autuação fiscal discutida no Acórdão nº 1402-002.266 [10] teve por fundamento, dentre outros, os artigos 303; 357, parágrafo único, I; e 463 do RIR/99. No entanto, por se tratar de pagamentos a título de PLR a administradores, o relator baseou sua decisão nos artigos 303 e 463 do RIR/99, ressaltando, expressamente, a irrelevância do argumento do contribuinte de que o artigo 357, parágrafo único, do RIR/99, havia sido tacitamente revogado, tendo em vista a suficiência dos demais dispositivos para o deslinde do feito.

No Acórdão nº 1301-003.359 [11], discutiu-se a indedutibilidade de bônus pago a diretores estatutários com base nos artigos 303 e 357 do RIR/99. Em seu voto, seguido à unanimidade pelos demais, o conselheiro relator invocou o Parecer rmativo CST nº 48/72, para afirmar que “o bônus recebido pelos diretores, independente da denominação que se dê a ele, não se caracteriza como remuneração mensal, fixa, e sim como gratificação anual, baseado em cumprimento de metas”. Ao final, conclui pela indedutibilidade dos pagamentos realizados, com fundamento apenas no artigo 303 do RIR/18. Adotando essa mesma lógica de base, foi proferido o Acórdão 1402­00.266, em 3 de setembro de 2010.

Por sua vez, no Acórdão nº 1301-003.897 [12] analisou-se a omissão contida no julgamento anterior acerca da dedutibilidade dos valores pagos aos administradores a título de remuneração. Em seu voto, o conselheiro relator, ao examinar o artigo 357 do RIR/99, afirmou que a limitação da dedutibilidade aos valores mensais e fixos “se destina a impedir que quantias exorbitantes e pagas de forma esporádica sejam deduzidas do lucro real a título de remuneração de administradores não empregados. Sem requisitos que exijam um mínimo de uniformidade nos pagamentos, a norma seria dotada de tamanha elasticidade que comportaria qualquer coisa, de modo que tudo caberia no conceito de remuneração, sendo, por conseguinte, dedutível”.

Por fim, no Acórdão nº 9101-004.773 [13], a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) tratou da dedutibilidade das gratificações e participações nos lucros pagas a diretores, que, segundo o contribuinte, seriam “diretores-empregados” [14]. De acordo com o voto vencedor, a dedutibilidade das despesas dependeria da qualificação dos diretores: se fossem considerados “diretores-empregados”, as despesas seriam dedutíveis de acordo com os artigos 299, § 3º, 359 e 462, III, do RIR/99 e com o artigo 3º, § 1º da Lei nº 10.101/2000; se fossem enquadrados como administradores, a vedação à dedutibilidade decorria dos artigos 303; 357, parágrafo único; e 463 do RIR/99. Com base nessas premissas, como a análise do caso concreto levou à conclusão do colegiado de que o vínculo entre empresa e diretores não era celetista, mas estatutário, foi mantida a autuação, com base, inclusive, no artigo 357, parágrafo único, do RIR/99.

Disso vemos os diferentes contextos em que aparece, no Carf, a discussão sobre a relevância da periodicidade e da variabilidade dos montantes pagos a diretores e administradores, para fins de dedução do IRPJ.

Lembrando que o alcance da aplicação dos precedentes pelo Carf deve basear-se na compreensão do papel preponderante que os tribunais Superiores têm na ordem jurídica brasileira — o de Corte Suprema ou de Vértice, cujos julgados orientam a própria corte e as demais instâncias jurisdicionais — [15], é preciso agora dar ênfase ao quanto decidido pelo STJ no REsp nº 1.746.268/SP.

Nesse precedente inaugural sobre a matéria, deixando mais uma vez clara a questão da obsolescência da legislação federal, o voto condutor parte da lição de Ricardo Mariz de Oliveira quando diz:

“Mas todas as disposições que ainda subsistem para restringir a dedutibilidade de custos ou despesas carregam esse vesgo de anacronismo e injuridicidade. São anacrônicas porque as primeiras disposições legais impeditivas de deduções datam de épocas antigas, nas quais o cenário empresarial era totalmente diferente do atual — época das empresas de famílias e dos dirigentes integrantes dessas famílias —, sendo que atualmente mesmo as empresas familiares se agigantaram e em geral estão sob gerência profissional, enquanto as menores enveredam pelo lucro presumido ou mesmo pelo regime do Simples, no qual em nada importam os custos e as despesas existentes ou não. São anacrônicas, também, porque, havendo desde 1996 isenção na distribuição de lucro, não é em todo caso que interessa disfarçar um lucro efetivo em outro tipo de custo ou despesa que, para o receptor, passa a ser renda tributável” [16].

Por essas razões, a maioria dos ministros da 1ª Turma do STJ concluiu que, na apuração do IRPJ, pela sistemática do lucro real, a vedação de dedutibilidade de pagamentos a administradores e conselheiros, que não correspondam a valor mensal e fixo, “vulnera, induvidosamente, as normas plasmadas nos arts. 43 e 44, ambos do CTN, dispositivos esses interpretados à luz do conceito constitucional de renda”.

Diante desse cenário, apesar de a decisão proferida no Resp nº 1.746.268/SP não vincular formalmente a Receita Federal ou os Conselheiros do Carf [17], é possível que o entendimento do STJ, com relação à obsolescência do artigo 43, §1º, “b”, do Decreto-lei nº 5.844/1943, traga novos contornos às discussões que envolvam a dedutibilidade dos pagamentos variáveis a diretores e administradores.

[1] MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. Tradução de Peter Naumann e Eurides Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

[2] Rel. min. Regina Helena Costa, j. em 16/8/2022.

[3] Na década de 70, as empresas eram, em sua maioria, administradas pelos próprios sócios. Já atualmente podemos observar que mesmo as empresas familiares de grande porte são geridas por profissionais, muitas vezes, sem qualquer relação de parentesco com seus sócios.

[4] “Art. 43. A base do imposto será dada pelo lucro real ou presumido correspondente ao ano social ou civil anterior ao exercício financeiro em que o imposto for devido.

§ 1º. Serão adicionados ao lucro real, para tributação em cada exercício financeiro:

a) as quantias aplicadas na aquisição de bens de qualquer natureza, quando levadas a lucros e perdas;

b) as retiradas não debitadas em despesas gerais ou contas subsidiárias, e as que, mesmo escrituradas nessas contas, não correspondam à remuneração mensal fixa por prestação de serviços;

d) os ordenados e porcentagens pagos a membros das diretorias das sociedades por ações, que não residam no país;

e) os juros sôbre o capital ou quota social atribuídos ao titular e sócios das firmas e sociedades” (grifamos).

[5] Com a edição Lei nº 9.249/1995, a distribuição de lucros passou a ser isenta de imposto de renda, de forma que não mais fazia sentido às pessoas jurídicas distribuir lucros disfarçados de remuneração variável, já que a remuneração variável seria tributada pelo beneficiário — e o lucro não.

[6] Artigo 236, § 5º, “a” do RIR/1980, aprovado pelo Decreto nº 85.450/1980.

[7] Artigos 311, §3º, 371 e 526, II, do RIR/18 e art. 3º, § 1º da Lei nº 10.101/2000.

[8] J. em 7/8/2012.

[9] Tal entendimento foi rechaçado pelo ministro Gurgel de Faria, em seu voto vista no REsp 1.746.268/SP.

[10] Julgado por unanimidade em 9/8/2016.

[11] Julgado em 19/9/2018.

[12] Julgado por unanimidade em 15/5/2019.

[13] Julgado em 5/2/2020.

[14] No mesmo sentido foi julgado o Acórdão nº 1201-005.365, em 22 de outubro de 2021.

[15] Conforme já pudemos nos manifestar em BEVILACQUA, Lucas e LAURENTIIS, Thais De. Troca de guardas entre STF e CARF: ratio decidendi, imunidade e exportações indiretas no contexto do PIS/COFINS. In Tributação sobre a Receita (PIS/Cofins). Indaiatuba: Editora Foco, 2022.

[16] Fundamentos do Imposto de Renda (2020), São Paulo, SP, Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), 2020, v. 2, pp. 535 e 536.

[17] Pois não se enquadra nas hipóteses de precedente vinculante ao Carf, nos termos do art. 62 do Ricarf.

Maria Carolina Maldonado Mendonça Kraljevic e Thais de Laurentiis

Maria Carolina Maldonado Mendonça Kraljevic é conselheira titular da 1ª Turma Ordinária, da 3ª Câmara, da 1ª Seção do Carf, mestre e doutoranda em Direito Tributário pela PUC-SP, especialista em tributação internacional pelo IBDT, graduada em contabilidade pela Trevisan e em Direito pelo Mackenzie e professora de Direito Tributário e contabilidade em cursos de pós-graduação.

Thais de Laurentiis é conselheira titular do Carf, vice-presidente da Turma 1.201, árbitra no CBMA, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP — com período na Sciences Po/Paris —, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, associada do IBDT e professora de Direito Tributário e Direito Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

Gostou do artigo? Compartilhe em suas redes sociais

iplwin login

iplwin app

ipl win

depo 25 bonus

slot deposit pulsa