Municípios enfim acordam para a incidência de ISS sobre a Tust/Tusd

Igor Mauler Santiago

Da combinação dos artigos 1º, parágrafo 2º, da Lei 10.848/2004, 10 da Lei 9.648/98 e 16 da Lei 9.074/95 resulta ser livre a venda de energia elétrica por geradores (inclusive produtores independentes), comercializadores e importadores para consumidores atendidos em qualquer tensão cuja carga seja igual ou superior a 3.000 kW (os chamados consumidores livres). É claro que, para executar tais contratos, as partes têm de valer-se dos sistemas de transmissão e de distribuição de energia pertencentes às empresas delegatárias desses serviços — direito garantido pelo artigo 15, parágrafo 6º, da Lei 9.074/95. Segundo o caput do artigo 9º da Lei 9.648/98, “para todos os efeitos legais, a compra e venda de energia elétrica entre concessionários ou autorizados deve ser contratada separadamente do acesso e uso dos sistemas de transmissão e distribuição”. O instrumento próprio para esta última finalidade é, segundo o caso, o Contrato de Uso do Sistema de Transmissão (Cust) ou o Contrato de Uso do Sistema de Distribuição (Cusd), na forma da Resolução 281/99 da Aneel.

A remuneração devida denomina-se Encargo de Uso do Sistema de Transmissão ou Encargo de Uso do Sistema de Distribuição, e seu cálculo parte de um valor básico fixado ou aprovado pela Aneel — a Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (Tust) ou a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (Tusd) [1]. É comum, porém, referir-se aos encargos diretamente por Tust ou Tusd, terminologia que doravante se adotará. Sobre o seu faturamento, dispõe a Resolução 281/99 da Aneel:

“Art. 19. Os encargos de uso dos sistemas de transmissão e de distribuição serão faturados:

I – pelas concessionárias de transmissão e pelo ONS contra todos os usuários caracterizados como unidades consumidoras, inclusive as concessionárias ou permissionárias de distribuição, conectados nas instalações da Rede Básica, na proporção das suas receitas permitidas pela Aneel.

II – pelas concessionárias de transmissão e pelo ONS contra as centrais geradoras que tenham celebrado Contrato de Uso dos Sistemas de Transmissão, na proporção das suas receitas permitidas;

III – pelas concessionárias ou permissionárias de distribuição contra todos os usuários caracterizados como unidades consumidoras, inclusive as concessionárias ou permissionárias de distribuição, conectadas nas suas instalações de distribuição, incluindo os valores correspondentes ao uso dos sistemas de transmissão;

IV – pelas concessionárias ou permissionárias de distribuição contra as concessionárias com as quais tenham celebrado Contrato de Uso dos Sistemas de Distribuição. (…)” (grifamos)

Como sabido, os Estados exigem ICMS sobre a Tust e a Tusd. A base, para a primeira, é o Convênio ICMS 117/2004, que impõe a todos os consumidores ligados à rede básica de transmissão, aos quais equipara o autoprodutor que dela retire energia, “a responsabilidade pelo pagamento do imposto devido pela conexão e uso dos sistemas de transmissão” e o dever de emitir nota fiscal registrando o total pago às empresas transmissoras no período e realizando o destaque do ICM (cláusulas 1ª e 3ª). Idêntica orientação é adotada quanto à Tusd por meio de modificações da legislação estadual ou de reinterpretação da preexistente. Em todos os casos, é clara a posição dos estados de que se trata de ICMS-mercadoria, e não de ICMS-transporte, pois de transporte não há cogitar na situação em análise. É conferir, por exemplo, a Decisão Normativa CAT 04/2004, do Fisco paulista:

“19. A atividade da empresa de transmissão de energia elétrica modifica esse produto qualitativa e quantitativamente. A energia elétrica é gerada, por motivos técnicos, em baixa tensão. Para a transmissão, é necessário elevá-la por meio de transformadores, diminuindo proporcionalmente a corrente. Também por questões técnicas e econômicas, às vezes faz-se a transmissão em corrente contínua. Nesses casos, como a energia é gerada em corrente alternada, ela deve ser retificada. Na recepção, a tensão, que deve ser alternada, o que pode exigir nova conversão, é reduzida e ajustada ao nível do sistema. Então, a tensão é elevada, baixada e retificada e há sempre perdas técnicas. (…)

20. Ora, nada se pode dizer sobre direitos reais da energia transmitida, pois tudo o que se sabe a cada momento é que há uma malha elétrica, onde, além das questões acima, segundo as duas Leis de Kirchhoff (teoria dos circuitos elétricos, consequência da conservação da carga e da conservação da energia), não se pode determinar qual ponto de consumo recebe que energia gerada ou transmitida por qual gerador ou transmissor.

(…)

32. O que se percebe imediatamente do que foi exposto acima é que energia elétrica não é estocada e não tem um lugar fixo no espaço. É transmitida, mas não é transportada, no sentido comum da palavra. Energia química é estocada na gasolina, numa pilha, etc. Seu lugar é macroscopicamente determinável. Mas não a energia elétrica. Esta somente é fornecida, tanto na geração como na transmissão, na distribuição e a comercialização. Seu fornecimento, seja pela geradora, pela transmissora, pela distribuidora ou pela comercializadora, corresponde a um fato gerador do ICMS, pela saída da mercadoria. Nunca pelo transporte. As características do Sistema Elétrico Brasileiro reforçam esse entendimento.” (grifamos)

O fundamento da exigência é explicitado pelo Fisco de Minas Gerais na Consulta de Contribuinte 001/2005:

“Nas operações internas, o ICMS incidirá quando da saída da energia (entrega) para o consumidor, incluindo-se na base de cálculo de tal operação todos os valores, custos, encargos, etc., incorridos da geração até a entrada da energia no estabelecimento do consumidor, independentemente da pessoa ou do momento em que sejam pagos. Ou tais valores entraram na formação do preço do produto entregue ao consumidor, ou, se não incluídos naquele preço, a ele devem ser adicionados quando da determinação da base de cálculo do ICMS devido a Minas Gerais.

(…)

Assim, a Tusd, que é tarifa cobrada pelo uso do sistema de distribuição, bem como os encargos de conexão e os demais constantes e descritos nos contratos firmados entre as partes interessadas devem ser considerados para a determinação da base de cálculo do ICMS devido a Minas Gerais.” (grifamos)

A exigência do ICMS-mercadoria sobre a Tust e a Tusd assenta num evidente artificialismo: a ideia de que o imposto incide sobre todos os valores necessários à disponibilização da mercadoria ao adquirente, mesmo que pagos a pessoa diferente do alienante (trecho sublinhado da consulta do Fisco mineiro). O raciocínio não tem como ser levado a sério, a menos que se admita a cobrança de ICMS sobre o frete local [2] pago pelo comprador de uma mercadoria ao transportador autônomo que a conduza do estabelecimento do vendedor ao seu destino final [3].

Segundo a Lei Complementar 87/96:

“Art. 13, § 1º. Integra a base de cálculo do imposto, inclusive nas hipóteses dos incisos V, IX e X do caput deste artigo:

I – o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle;

II – o valor correspondente a:

a) seguros, juros e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas, bem como descontos concedidos sob condição;

b) frete, caso o transporte seja efetuado pelo próprio remetente ou por sua conta e ordem e seja cobrado em separado.”

Ora, não se pode dizer que a TUST e a TUSD constituam:

a) seguro, juro ou desconto condicional (por óbvio);

b) despesa paga, recebida ou creditada entre o vendedor e o comprador da energia. O contrato de uso do sistema de distribuição é firmado pelo usuário com empresa diferente daquela de quem compra a energia. Ainda que assim não fosse, contudo, a autonomia legalmente imposta entre os dois ajustes (Lei 9.648/98, artigo 9º) e o fato de a Tust e a Tusd serem devidas em situações onde não há compra e venda de energia entre os envolvidos [4] afasta qualquer possibilidade de inclusão das tarifas no valor da operação de que resulta a saída da mercadoria; ou

c) frete em transporte efetuado pelo próprio remetente [5] ou por terceiro por conta e ordem deste e cobrado em separado do comprador.

Dado que o imposto em discussão não pode ser cobrado a título de venda de mercadoria, cumpre agora demonstrar que tampouco o pode ser a título de prestação, por parte das empresas de transmissão e de distribuição, de serviço de transporte de energia. E isso porque o transporte pressupõe a identidade entre a coisa confiada ao transportador e aquela entregue ao destinatário, mesmo que se trate de bem fungível. É o que preveem os artigos 730, 743 e 744 do Código Civil, cujas definições, nos termos do artigo 110 do CTN, balizam a compreensão que se deve ter do artigo 155, inciso II, da Constituição, que atribui aos Estados competência para a instituição do ICMS.

Embora as vendas de energia elétrica entre geradores, importadores, comercializadores e consumidores livres sejam objeto de contratos firmados em bases bilaterais, fato é que os geradores e os importadores lançam a energia num sistema único integrado pelas empresas de transmissão e de distribuição, de onde a retiram os interessados. Não há, portanto, nenhuma garantia de que a energia recebida por um desses atores (um consumidor livre, v.g.) seja aquela produzida pelo outro com quem mantém contrato (uma geradora, v.g.). Noutras palavras, o que se contrata são quantidades de energia, que são despachadas nas linhas de transmissão e de distribuição e apreendidas por cada agente no limite do que adquiriu (sujeito a adicionais em caso de extrapolação). Isso o que decorre das características da energia elétrica, onda eletromagnética que não se estoca e que circula pelos condutores à velocidade de 300 mil km por segundo.

Esses esclarecimentos, somados à boa teorização do Fisco paulista acima reproduzida, dão conta da impossibilidade de considerarem-se a Tust e a Tusd como remuneração de um contrato de transporte, donde se depreende a impossibilidade de cobrança do ICMS também a este título. Não se cogitando tampouco de serviço de comunicação, e inexistindo outras hipóteses de incidência na Constituição, a conclusão há de ser pela inexigibilidade do ICMS sobre as referidas tarifas. Isso o que reconheceu, em preceito declaratório, a Lei Complementar 194/2002, ao acrescentar o seguinte inciso X ao artigo 3º da Lei Complementar 87/96:

“Art. 3º. O imposto não incide sobre:

(…)

X – serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica.”

A natureza interpretativa e não inovadora da regra (CTN, artigo 106, inciso I) resulta clara a partir da conclusão — retirada do plexo normativo que a precedia, como demonstrado — pela manifesta não incidência de ICMS sobre a Tust e a Tusd. Na pior das hipóteses, a intributabilidade para o futuro é indiscutível, o que torna surreal cogitar-se de um suposto acordo para a aplicação da lei — ao qual os Estados têm o desplante de resistir [6].

Pergunta-se, então: não havendo ICMS, os referidos encargos ficam livres de tributação? A resposta é negativa. A dinâmica dos processos de transmissão e distribuição de energia deixa claro tratar-se de serviço, e não de mera cessão do uso de bens, como evidenciam todas as etapas descritas no item 19 da manifestação do Fisco paulista transcrita acima. O facere é evidente — e fazer puro, pois a transmissora e a distribuidora nada de seu dão aos consumidores livres que as contratam (que compram a energia diretamente do gerador, comercializador ou importador).

Diante disso, sequer se faz necessário recorrer à flexibilização que o STF tem imposto nos últimos tempos ao conceito constitucional de serviço, consistente na sua progressiva desvinculação do confronto civilista entre dare e facere — incidência de ISS sobre leasing financeiro e lease back (Pleno, RREE 547.245/SC e 592.905/SC, relator ministro Eros Grau, DJ 5/3/2010), operadoras de planos de saúde (Pleno, RE 651.703/PR, relator ministro Luiz Fux, DJe 26/4/2017), franquia empresarial (Pleno, RE 603.136/RJ, relator ministro Gilmar Mendes, DJe 16/6/2020) e licenciamento de software de prateleira (Pleno, ADI 1.945/MT e 5.659/MG, relator ministro Dias Toffoli, DJe 20/5/2021), para dar apenas alguns exemplos.

O caráter de serviço torna-se ainda mais evidente quando se considera que, contrariamente ao que ocorre na locação de bens móveis (objeto da Súmula Vinculante 31 do STF), aqui é o contratado, e não o contratante, que opera e mantém a posse exclusiva de seus equipamentos de transmissão e distribuição. Uma analogia pode ser feita com outras atividades de alta especialização que não prescindem de vultosos equipamentos, como a perfuração de poços de petróleo, a medicina nuclear ou o transporte aéreo, cujo enquadramento como serviços nunca foi objeto de dúvida. Não bastasse isso, a União Federal — detentora de competência privativa para legislar sobre energia (CF, art. 22, IV) — define a transmissão e a distribuição como serviços públicos (Lei 9.427/96, artigos 3º, inciso II; 3º-A, inciso I; e 18, entre outros).

Embora nada obste a inclusão de item específico na lista anexa à Lei Complementar 116/2003, é certa a subsunção dos serviços de transmissão e distribuição de energia elétrica ao seu item 31.01, que tem tessitura aberta (“Serviços técnicos em edificações, eletrônica, eletrotécnica, mecânica, telecomunicações e congêneres”), dada a clara similitude entre os serviços de energia e de telecomunicações.

A questão, que o STF declarou não ter nível constitucional (Pleno, RE 1.041.816/SP-RG, relator ministro Edson Fachin, DJe 17/8/2017), será decidida pelo STJ, onde foi afetada como Tema 986 dos recursos repetitivos (REsp. 1.163.020/RS e REsps. 1.699.851/TO, 1.692.023/MT, 1.734.902/SP, 1.734.946/MT, distribuídos ao ministro Herman Benjamin). A discussão promete.

[1] Ver artigos 13 a 17 da Resolução 281/99 da Aneel e artigos 12 a 30 da Resolução 166/2005 da Aneel.

[2] Sabidamente sujeito ao ISS, visto que o ICMS incide apenas sobre o serviço de transporte interestadual ou intermunicipal (CF, artigo 155, inciso II).

[3] A analogia, que visa a demonstrar o descabimento da pretensão estadual, não importa reconhecer que a Tusd remuneraria verdadeiro contrato de transporte, o que já se viu não ser o caso.

[4] Como ocorre no faturamento de Tust e Tusd pelas distribuidoras contra as geradoras e as distribuidoras conectadas às suas instalações de distribuição (Resolução Aneel 281/99, artigo 19, partes sublinhadas na transcrição acima).

[5] Como visto, sequer se trata de frete, o que impede o enquadramento mesmo nos casos em que a rede de distribuição pertença ao vendedor da energia.

[6] https://www.jota.info/stf/do-supremo/estados-estimam-perdas-bilionarias-sem-tust-e-tusd-e-rejeitam-acordo-com-a-uniao-28092022

Igor Mauler Santiago

sócio-fundador do escritório Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

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