Direito Tributário e o Supremo Tribunal Federal: passado, presente e futuro

Luís Roberto Barroso e Marcus Vinicius Cardoso Barbosa

Abertura
Direito Tributário e o Supremo Tribunal Federal: passado, presente e futuro” é o título do mais recente artigo do Ministro Luís Roberto Barroso, escrito em co-autoria com Marcus Vinicius Barbosa, seu assessor no Tribunal para matéria tributária, publicado na última edição da Revista de Direito do UniCEUB. O texto foi inicialmente escrito para integrar uma obra coletiva em homenagem aos 25 anos de magistratura do Ministro Marco Aurélio junto ao Supremo Tribunal Federal. Afogados em processos, os autores não conseguiram se desincumbir a tempo da missão e o texto acabou sendo publicado apenas recentemente. Foi mantido, contudo, o objetivo principal de homenagear o jubileu de prata do vice decano da Suprema Corte e de lançar um olhar retrospectivo e, sobretudo, prospectivo sobre a atuação do Tribunal no campo tributário, área na qual o homenageado tem atuação especialmente destacada.

A premissa central do texto é a de que chegou o momento de redimensionar a atuação do Tribunal, especialmente no que diz respeito à repercussão geral. Esse debate dominou a última sessão plenária do primeiro semestre deste ano, com o reconhecimento por parte de vários ministros de que o Supremo não tem dado conta de julgar o estoque de temas já selecionados em tempo razoável. Com isso, a despeito do esforço coletivo que tem sido empreendido, torna-se cada vez mais urgente promover mudanças estruturais, tanto na maneira como os casos já escolhidos são tratados, quanto nos critérios utilizados para seleção de novos temas. Em relação ao primeiro ponto, relacionado aos aspectos procedimentais do instituto, o Ministro Barroso já tem uma proposta antiga e conhecida para a repercussão geral, que foi publicada em trabalho acadêmico disponível em seu site pessoal. Agora, em parceria com Marcus Vinicius Barbosa, publica novo texto com enfoque na necessidade de adoção de critérios materiais mais restritivos para escolha dos novos casos, de modo a privilegiar aqueles diretamente ligados às questões materialmente constitucionais, tais como direitos fundamentais dos contribuintes, imunidades e conflitos federativos. A opção pelo direito tributário se justifica pelo amplo espaço já garantido pelo assunto na agenda atual e futura da Corte, como o artigo demonstra a partir dos dados colhidos no site do Tribunal.

Nessa linha, a ideia central dos autores é que se faz necessária uma drástica adequação entre a quantidade de casos selecionados e a capacidade de julgamento futuro da Corte, a partir da seleção mais criteriosa dos temas, especialmente, tendo em vista a urgência de acomodar também outras matérias igualmente relevantes na pauta do Tribunal. Além disso, sustentam que teria o efeito salutar de produzir julgamentos melhores e mais céleres no futuro, conferindo segurança jurídica, previsibilidade e igualdade de tratamento aos diversos contribuintes. Tais vetores do Sistema, a despeito da importância, acabam relativizados pela própria demora na solução dos principais temas tributários pelo Supremo.

O texto está estruturado em três partes. Na primeira, é destacada a relação de mútuo desenvolvimento entre direito tributário e jurisdição constitucional, mostrando a importância que as discussões tributárias tiveram como indutoras do aprimoramento dos instrumentos de controle de constitucionalidade no Brasil. Na segunda, faz-se um diagnóstico da impressionante importância quantitativa que a matéria assumiu na atualidade, com destaque para a repercussão geral. Na terceira, são apresentados critérios materiais capazes de promover uma versão mais realista e, portanto, minimalista da agenda futura da Corte nessa área.

RESUMO

O artigo trata da importância que o direito tributário teve, tem e continuará tendo para o Supremo Tribunal Federal, tanto sob o aspecto quantitativo quanto qualitativo. Porém, o argumento central é que chegou o momento de adequar o tratamento da matéria à capacidade de julgamento da Corte, priorizando a qualidade em detrimento da quantidade. Entende-se que só assim será possível conferir celeridade de julgamento e segurança jurídica às causas tributárias, ajudar a reverter a crise numérica da repercussão geral e abrir espaço na agenda futura do Tribunal para outras matérias constitucionais igualmente relevantes. Para tanto, o texto destaca inicialmente a relação de mútuo desenvolvimento entre direito tributário e jurisdição constitucional, mostrando a importância que as discussões tributárias tiveram como indutoras do aprimoramento dos instrumentos de controle de constitucionalidade no Brasil após a Constituição de 1988. Em seguida, faz-se um diagnóstico da impressionante importância quantitativa que a matéria assumiu na atualidade, com destaque para o excessivo número de recursos com repercussão geral reconhecida aguardando julgamento. Por fim, a partir de exemplos, são propostas algumas balizas que podem ser utilizadas na seleção futura de casos a serem submetidas ao regime da repercussão geral, de modo a promover uma versão mais realista e, portanto, minimalista da agenda futura da Corte nessa área.

Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal: Controle de Constitucionalidade: Direito Tributário.

I. Nota prévia
Introdução

Esta nota prévia traz um breve depoimento pessoal do primeiro autor. O presente artigo foi escrito para integrar coletânea destinada a homenagear os 25 anos de magistratura do Ministro Marco Aurélio junto ao Supremo Tribunal Federal, onde somos colegas e amigos. Afogado em processos, não consegui me desincumbir a tempo da missão. Foi preciso aguardar o recesso de final de ano. Mais que ninguém, o homenageado é capaz de entender as razões do atraso. Porém, já que não pudemos ser os primeiros a participar da celebração devida, merecida e festejada, pelos menos somos os últimos. E, assim, contribuímos para prolongar um pouco mais a lembrança do impressionante jubileu. Na vida, sempre há o que comemorar.

A convivência pessoal e funcional com o homenageado, ao longo desse tempo que integro o Tribunal, serviu para reforçar minha percepção de alguns traços de sua atuação judicante: independência, dedicação ao trabalho e inquietação intelectual. Marco Aurélio não é submisso a dogmas e nem mesmo ao conhecimento convencional. O caminho próprio, que trilha com frequência, já mudou, por mais de uma vez, ideias que haviam se consolidado pela repetição acrítica. Não é pequeno este papel: o de fazer com que todos estejam preparados para testar as próprias convicções e, evidentemente, de repensá-las à luz de uma visão crítica e original. A seguir, algumas reflexões de direito tributário, uma área em que a atuação do homenageado foi particularmente profícua.

II. Apresentação do tema

O primeiro coautor deste trabalho tem defendido, desde que ingressou no Supremo Tribunal Federal em junho de 2013, uma racionalização profunda da agenda da Corte. O segundo coautor foi aluno de mestrado do primeiro e tem atuado como assessor no seu gabinete ao longo dos anos de 2015 e 2016, com foco principal na área tributária. O presente artigo procura refletir um pouco dessa experiência de ambos no esforço de construção de um tribunal mais ágil e eficiente, inclusive em matéria de direito tributário.

Jurisdição constitucional e direito tributário mantêm uma relação de desenvolvimento mútuo. Porém, como toda relação de longo prazo, está sujeita a crises. E, dentro da crise numérica que vive o Supremo Tribunal Federal hoje, o direito tributário é um capítulo à parte. Registre-se, desde logo, o relevantíssimo papel que esse ramo do direito tem exercido, e continuará exercendo, como um móvel fundamental para o desenvolvimento do controle de constitucionalidade no Brasil. Além de demonstrar isso, o texto que se segue procura destacar, também, as razões que fizeram do direito tributário uma das principais matérias na agenda do Supremo Tribunal Federal, com destaque para alguns dados quantitativos que apontam para o futuro preocupante que ronda o tema da repercussão geral. Ao fim desse capítulo, é apresentada uma proposta do que, ao ver dos autores, deveria ser o norte da atuação do STF na matéria daqui para frente.

Na parte final do trabalho, tomando como ponto de partida julgados recentes e recursos pendentes de apreciação, são analisados três temas relativos ao direito tributário que representam bem a função que, como regra, o Supremo deve exercer nesse campo. A ideia central do texto é que a racionalização da agenda futura do Tribunal passa por uma seleção mais contida e realista de casos que terão a repercussão geral reconhecida em matéria tributária, com especial enfoque para escolhas que digam com normas materialmente constitucionais, como os direitos e garantias individuais dos contribuintes e os conflitos federativos.

O Direito Tributário e a sua Contribuição para a Evolução do Controle de Constitucionalidade na Jurisprudência do Supremo

Capítulo 1

As múltiplas competências do Supremo Tribunal Federal, enunciadas no art. 102 da Constituição, podem ser divididas em duas grandes categorias: ordinárias e constitucionais. O Tribunal presta jurisdição ordinária nas diferentes hipóteses em que atua como qualquer outro órgão jurisdicional, aplicando o direito infraconstitucional a situações concretas, que vão do julgamento criminal de parlamentares à solução de conflitos de competência entre tribunais. De parte isso, o Tribunal tem, como função principal, o exercício da jurisdição constitucional, que se traduz na interpretação e aplicação da Constituição, tanto em ações diretas como em processos subjetivos. Ao prestar jurisdição constitucional nos diferentes cenários pertinentes, cabe à Corte: (i) aplicar diretamente a Constituição a situações nela contempladas, como faz, por exemplo, ao assegurar ao acusado em ação penal o direito à não autoincriminação; (ii) declarar a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos, como fez no tocante à resolução do TSE que redistribuía o número de cadeiras na Câmara do Deputados; ou (iii) sanar lacunas do sistema jurídico ou omissões inconstitucionais dos Poderes, como fez ao regulamentar a greve no serviço público.

Pois bem. O direito tributário tem servido como um dos principais catalisadores para o desenvolvimento de diversos aspectos especialmente relevantes da jurisdição constitucional no Brasil. Como se trata de uma matéria muito presente na rotina do STF, e com um forte interesse governamental, as disputas tributárias têm sido historicamente um indutor importante de inovação, aperfeiçoamento e discussão de novos mecanismos e técnicas relativas ao controle de constitucionalidade. A variedade de temas que chegam ao Tribunal sobre o assunto, que vão desde a simples definição da competência tributária da União Federal para instituir validamente as contribuições para a seguridade social, até discussões relativas aos direitos e garantias dos contribuintes, passando pela solução de conflitos federativos, forma um espectro extremamente rico e complexo de casos de controle difuso e concentrado de constitucionalidade de atos normativos federais, estaduais e municipais. Isso tem alimentando o debate prático e doutrinário sobre a jurisdição constitucional no país, com reflexos para além dos limites do direito tributário. Quatro exemplos ilustram essa constatação: (i) a afirmação da competência do Supremo Tribunal Federal para declarar a inconstitucionalidade de emendas à Constituição; (ii) o julgamento da primeira ação direta de constitucionalidade, (iii) a consagração da ideia de inexistência de constitucionalidade superveniente e (iv) as Emendas Constitucionais editadas com o objetivo de promover a correção legislativa da jurisprudência da Corte. A seguir, abre-se um tópico para cada um desses temas.

I. Controle de constitucionalidade de emendas à Constituição

As emendas à Constituição Federal, como produto da atuação do poder constituinte derivado, sujeitam-se aos limites estabelecidos pelo poder constituinte originário e podem ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade. Esse entendimento, que é hoje pacífico no âmbito do Supremo Tribunal Federal, foi professado e efetivamente exercido pela primeira vez em decisão histórica tomada no julgamento da ADI nº 939. Na hipótese, questionava-se o dispositivo da Emenda Constitucional nº 03/1993 que cuidava da criação do IPMF – Imposto sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira de competência da União. Mais especificamente, impugnavam-se as exceções criadas pela emenda à anterioridade de exercício e à imunidade tributária recíproca.

No julgamento ocorrido em dezembro de 1993, primeiramente o Tribunal conheceu da ação direta ajuizada em face da emenda constitucional, inaugurando assim a possibilidade de controle de constitucionalidade dessa espécie normativa, o que não é uma prática em todos os países do mundo. No mérito, a ADI nº 939 foi julgada procedente em parte e, para o que interessa mais diretamente ao presente trabalho, pela primeira vez o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, por considerar que foram violados: (i) o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art. 5º, § 2º, art. 60, § 4º, inciso IV e art. 150, III, “b” da CF); (ii) o princípio da imunidade tributaria recíproca (que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros), que é garantia da Federação (art. 60, § 4º, inciso I, e art. 150, VI, “a”, da CF).

Uma segunda questão importante decidida no julgamento da ADI nº 939 diz respeito à interpretação conferida ao termo “direitos e garantias individuais” constante do art. 60, § 4º, IV, CF. Isso porque o princípio da anterioridade tributária não consta do rol de direitos e garantias fundamentais individuais listados no art. 5º, da CF, mas sim do art. 150, III, “b”, da CF, estando localizado na Seção das Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Portanto, com base em uma visão mais restritiva, não estaria abrangido pela proteção dada às cláusulas pétreas. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal afirmou nesse precedente que a proteção contra a atuação ilegítima do poder constituinte reformador abrange os direitos e garantias individuais espalhados pela Constituição, e não apenas aqueles constantes do art. 5º, da CF. Indo além, o Ministro Carlos Velloso expressamente sustentou em seu voto que todas as limitações ao poder de tributar inscritas no art. 150 da Constituição restringem também a atuação do constituinte derivado. Sendo assim, a conclusão mais relevante desse julgado é que o Supremo Tribunal Federal considera que todos os direitos materialmente fundamentais estão, em alguma medida, protegidos contra o poder constituinte derivado, mesmo que não estejam localizados no catálogo do art. 5º, da Carta. Tal circunstância, como intuitivo, não suprime a complexa discussão acerca do sentido e alcance da expressão direitos materialmente fundamentais.

Concluindo esse tópico, embora a norma declarada inconstitucional dissesse respeito à criação de um imposto sobre movimentações financeiras que vigeu durante um ano apenas, o julgamento foi célebre e nele o Supremo estabeleceu importantes balizas para o controle de constitucionalidade de emendas à Constituição. Primeiro, assentando a própria competência para declarar a inconstitucionalidade dessa espécie normativa em sede de controle concentrado. Segundo, estabelecendo que o rol de direitos e garantias individuais que podem servir como parâmetro para esse controle não se esgota no elenco previsto no art. 5º da Carta.

II. Ação declaratória de constitucionalidade nº 01

A ação declaratória de constitucionalidade foi criada pela Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993, tendo como finalidade afastar a incerteza jurídica e estabelecer uma orientação homogênea em relação à determinada matéria. Para tanto, partiu-se da premissa que textos normativos estão sujeitos a interpretações diversas e contrastantes. Assim, sem embargo da presunção de constitucionalidade de que gozam os atos emanados do Poder Público, criou-se um mecanismo de reconhecimento expresso da compatibilidade entre uma norma infraconstitucional e a Constituição, para aquelas situações que demandam uma pronta pacificação da controvérsia. Pois bem, ainda em 1993, foi ajuizada a ADC nº 01, que impugnava a constitucionalidade da criação da COFINS pela Lei Complementar nº 70/91, ou seja, os holofotes novamente se voltaram à matéria tributária.

Ao analisar o mérito da ação, o Tribunal declarou a constitucionalidade dos art. 1º, 2º e 10º da Lei Complementar nº 70/1991, que instituiu a COFINS, bem como das expressões “A contribuição social sobre o faturamento de que trata esta lei não extingue as atuais fontes de custeio da Seguridade Social” contidas no artigo 9º, e das expressões “Esta lei complementar entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir do primeiro dia do mês seguinte nos noventa dias posteriores, aquela publicação,…” constantes do artigo 13, todos da Lei Complementar nº 70/1991. Com isso, assentou algumas das principais teses que passaram a guiar a disciplina das contribuições sociais, influenciando diversos outros julgamentos importantes que se sucederam sobre o tema. Todavia, em conclusão capaz de produzir efeitos para além da matéria tributária, assentou também, pela primeira vez após a promulgação da Constituição de 1988, que não há relação de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária.

No que se refere especificamente ao controle de constitucionalidade, o caso deu a oportunidade para o Supremo Tribunal Federal assentar a própria constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 03/1993, na parte em que criava a ação direta de constitucionalidade, e de disciplinar o seu procedimento, já que a Lei nº 9.868/99 viria a ser editada apenas alguns anos mais tarde, promovendo assim a regulamentação definitiva dos instrumentos de controle direto. Nesse particular, o voto proferido pelo Ministro Moreira Alves é especialmente relevante para o estudo do controle de constitucionalidade.

III. Inexistência de constitucionalidade superveniente

A teoria da nulidade da lei inconstitucional foi amplamente acolhida no Direito brasileiro desde o início da República e é o entendimento que prevalece ainda hoje, embora não de forma absoluta. Segundo essa ideia, se a Constituição é a lei suprema, admitir a aplicação de uma lei com ela incompatível é uma violação a sua supremacia. Em razão disso, o fenômeno da inconstitucionalidade deve ser tido como uma forma de nulidade, conceito que denuncia o vício de origem e a impossibilidade de convalidação. Essa não é a única forma de se encarar esse problema, mas é a tese que prevaleceu no Brasil. Em Portugal, por exemplo, vigora a possibilidade da constitucionalização superveniente.

Ou seja, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, uma lei inconstitucional é inconstitucional desde o seu nascimento, como decorrência lógica da teoria da nulidade. Portanto, ainda que seja alterado posteriormente o parâmetro de controle que gerou a inconstitucionalidade, esse vício não pode ser convalidado. Esse entendimento foi consagrado exatamente em um caso que versava sobre direito tributário e que teve como relator para acórdão o Ministro Marco Aurélio. Trata-se do julgamento do RE 346.084 que cuidava da constitucionalidade das alterações promovidas na disciplina da COFINS pela Lei nº 9.718/1998. A mais importante delas dizia respeito à discussão sobre a constitucionalidade do alargamento da base de cálculo efetuada pelo art. 3º, § 1º da legislação mencionada, que igualou os conceitos de faturamento e receita bruta.

Quanto à impossibilidade de equiparar tais conceitos, o Supremo já tinha posição pacífica consagrada no julgamento da ADC nº 01. Ocorre que o caso teve a seguinte peculiaridade: a Lei nº 9.718/1998 foi editada em 27.11.1998, quando a redação do art. 195, I, da CF, autorizava que fossem instituídas contribuições para a seguridade social apenas sobre folha de salários, faturamento e lucro. Ocorre que, em 15.12.1998, portanto, menos de 20 dias depois, foi editada a Emenda Constitucional nº 20/1998, que alterou o texto constitucional passando a prever a possibilidade de criação de contribuição previdenciária sobre a receita bruta e não mais apenas sobre o faturamento. Em razão disso, tentou-se então sustentar que a emenda teria tido o intuito apenas de explicitar o que já constava do texto constitucional anterior ou, ainda, teria promovido a convalidação de eventuais vícios de inconstitucionalidades existentes na Lei nº 9.718/1998.

Diante desse cenário, em maioria conduzida a partir de voto do Ministro Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o vício de inconstitucionalidade é congênito e não pode ser convalidado pela posterior alteração do parâmetro de controle. O julgado mencionado, mais do que decidir sobre a legítima base de cálculo da COFINS, serviu para consagrar a noção que os atos normativos incompatíveis com a Constituição, como regra geral, são nulos de pleno direito e, portanto, jamais chegam a se incorporar de maneira válida ao ordenamento jurídico, pouco importando se o vício que ostentavam era formal ou material. Vale dizer, não são passíveis de serem convalidados.

IV. Correção legislativa de jurisprudência e diálogos constitucionais

No Brasil, poucos domínios são tão férteis em exemplos de atuação do Poder Legislativo com o objetivo de modificar uma interpretação cunhada pelo Judiciário quanto o tributário. Atualmente, se considera essa atitude como um dos aspectos de um fenômeno conhecido na doutrina como diálogo constitucional ou diálogo institucional. Embora a corte constitucional ou corte suprema seja o intérprete final da Constituição em cada caso, três situações dignas de nota podem subverter ou atenuar esta circunstância, a saber: a) a interpretação da Corte pode ser superada por ato do Parlamento ou do Congresso, normalmente mediante emenda constitucional; b) a Corte pode devolver a matéria ao Legislativo, fixando um prazo para a deliberação ou c) a Corte pode conclamar o Legislativo a atuar, o chamado “apelo ao legislador”.

Na experiência brasileira, a maioria dos precedentes relativos à primeira hipótese tem natureza tributária. Aqui, o direito tributário desempenhou um papel especialmente significativo, catalisando o debate sobre a legitimidade da jurisdição constitucional e sua relação com os demais Poderes. Como exemplos de reação normativa às decisões do Supremo Tribunal Federal pela via de emendas à Constituição, podem ser listados: a criação de taxas municipais de iluminação pública, a progressividade das alíquotas do IPTU, a cobrança de contribuição previdenciária de inativos, a incidência de ICMS nas operações de importação realizadas por pessoas físicas e não contribuintes do imposto e a possibilidade de inclusão na base de cálculo da contribuição patronal para financiar a seguridade social dos valores pagos a administradores e autônomos, conforme previa a Lei nº 7.787/1989.

É preciso dizer que, em relação a essa discussão, a prática caminhou de forma mais rápida do que a teoria. Principalmente no Brasil, as obras que procuraram tratar do tema dos diálogos constitucionais são mais recentes do que a maioria dos exemplos de emendas constitucionais que promoveram a correção legislativa da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Dessa forma, a atuação legislativa teve o efeito de chamar atenção para o assunto e de servir de fonte de reflexão para os trabalhos acadêmicos que lhes sucederam. Embora o debate sobre a correção/alteração legislativa da jurisprudência não encerre toda a ideia de diálogo constitucional, ela com certeza é uma das suas manifestações mais explícitas, consubstanciando-se em exemplo de debate constitucional entre os dois Poderes e que, no caso brasileiro, teve como móvel principal a matéria tributária. É de relevo notar que, em praticamente todos os casos mencionados, o Supremo Tribunal Federal foi deferente com a interpretação constitucional realizada pelo parlamento pela via da emenda à Constituição e, chamado a decidir novamente sobre a validade das alterações constitucionais promovidas, não as declarou inconstitucionais.

O que se deduz desse registro final é que o modelo vigente não pode ser caracterizado como de supremacia judicial. O Supremo Tribunal Federal tem a prerrogativa de ser o intérprete final do direito, nos casos que são a ele submetidos, mas não é o dono da Constituição. Justamente ao contrário, o sentido e o alcance das normas constitucionais são fixados em interação com a sociedade, com os outros Poderes e com as instituições em geral. A perda de interlocução com a sociedade, a eventual incapacidade de justificar suas decisões ou de ser compreendido, retiraria o acatamento e a legitimidade do Tribunal. Por outro lado, qualquer pretensão de hegemonia sobre os outros Poderes sujeitaria o Supremo a uma mudança do seu desenho institucional ou na superação de seus precedentes por alteração no direito, competências que pertencem ao Congresso Nacional. Portanto, o poder do Supremo Tribunal Federal tem limites claros e a Corte tem reconhecido isso ao declarar a constitucionalidade de praticamente todas as correções legislativas de sua jurisprudência tributária que foram promovidas por emendas constitucionais. Na vida institucional, como na vida em geral, ninguém é bom demais e, sobretudo, ninguém é bom sozinho.

Protagonismo da Matéria Tributária, crise numérica e a necessidade de mudança de paradigma em relação à repercussão geral em matéria tributária

Capítulo 2

I. As razões do protagonismo do direito tributário na agenda do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal tem uma participação central no debate tributário também no que se refere ao aspecto quantitativo. No Brasil, a proximidade entre direito tributário e jurisdição constitucional é histórica e o número de demandas tributárias discutidas sob a ótica constitucional é imenso. Aqui, tanto os juízes, em geral, quanto os ministros do Supremo, em particular, são obrigados a decidir uma grande quantidade de temas fiscais diferentes, tendo sempre o texto constitucional como principal norte. Sob o ponto de vista da atuação do Supremo Tribunal Federal, esse fato se explica por pelo menos três motivos principais.

Primeiro, a Constituição de 1988 reservou um amplo espaço para a matéria, que vai além do estabelecimento de imunidades e garantias fundamentais dos contribuintes. Nossa opção constitucional por uma federação em três níveis acarretou a necessidade de criação de um modelo bastante rígido de repartição de competências entre União Federal, Estados, Distrito Federal e Municípios, de modo a realizar a autonomia financeira inerente ao modelo federativo adotado. Em muitos casos, mais do que o mero poder de instituir determinados tributos, houve a inserção de materialidades econômicas na própria Carta (ex: renda, lucro, serviços, faturamento, receita, folha de salários), como no caso dos impostos e de algumas contribuições para a seguridade social de competência exclusiva da União Federal. Essa escolha do Poder Constituinte de constitucionalizar a matéria tributária tem gerado intermináveis discussões sobre o espaço deixado ao legislador infraconstitucional para instituir de maneira válida diversos tributos, gerando infindáveis litígios, muitas vezes de ordem meramente semântica e raramente diretamente ligados à justiça fiscal.

A segunda causa desse protagonismo está na (compreensível) insistência dos advogados públicos e privados em fazer com que suas causas sejam efetivamente julgadas pelo Supremo, superando todos os filtros existentes. Como praticamente toda discussão tributária envolve direta ou indiretamente cifras financeiras expressivas de parte a parte, por vezes compensa suportar o risco e o custo da demanda judicial até o final, utilizando, e muitas vezes abusando, de toda sorte de recursos, na expectativa de um desfecho positivo. Mesmo porque, não raro, o próprio Supremo Tribunal Federal modifica o seu entendimento sobre determinado assunto, reforçando essa percepção por parte dos litigantes. Foi o que ocorreu no caso dos créditos presumidos de IPI nas entradas sujeitas à alíquota zero ou não tributadas, em que o Tribunal mudou de posição, revertendo uma linha jurisprudencial que era favorável ao contribuinte. Como exemplo oposto, basta lembrar que o Plenário da Corte, em 2014, ao julgar o RE 240.785, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, reconheceu a impossibilidade de inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS, contrariando várias decisões anteriores que consideravam a matéria como de natureza infraconstitucional, o que representava, na prática, a manutenção da posição então pacífica no Superior Tribunal de Justiça que era favorável à tese da Fazenda Nacional.

A última razão é mais recente em relação às demais: o principal filtro criado para barrar a avalanche de processos que chegam ao Supremo atualmente é facilmente ultrapassado quando estão em jogo demandas fiscais. Essa afirmação pode ser comprovada pela análise dos temas com repercussão geral já reconhecida, onde há um domínio amplo da matéria tributária, como será demonstrado à frente. É razoavelmente simples estruturar argumentos capazes de, a princípio, demonstrar que uma causa tributária contém “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”, tal como estabelecido no art. 103, III, § 3º, CF, e regulamentado pelo art. 543-A, § 1º do CPC/1973. O Tribunal, por sua vez, tem se mostrado extremamente sensível a tais argumentos pró-repercussão geral em matéria tributária. Pensamos que a junção desses fatores explica o número tão expressivo de repercussões gerais sobre o tema.

II.A crise numérica

Dito isso, é preciso consultar os dados. O número de processos sobre a matéria que chega ao Tribunal, a princípio, não parece expressivo. Apenas para que se coloque em perspectiva, segundo dados colhidos no próprio sítio eletrônico do Tribunal, entre 1990 e 2014 foram autuados no total 1.539.732 processos no STF. Destes, apenas 181.105 (11%) tratam de matéria tributária, o que inclui recursos e processos originários. Considerando o estoque de demandas que aguardam julgamento, com números atualizados até 19.10.2015, as causas envolvendo direito tributário representam 14,5% do total de processos em tramitação na Corte. Fazendo o recorte para abranger apenas os processos que chegaram ao Tribunal pela via recursal, que é a via mais natural de acesso à Corte, esse número já sobe para 18,2% do total de recursos pendentes.

Por outro lado, o espaço concedido ao tema aumenta quando se olha para a Súmula de Jurisprudência Dominante da Corte. Dos 728 verbetes ainda em vigor, 172 dizem respeito à matéria tributária, ou seja, 23,63% do total. Em relação a esse número, é possível observar que a maioria dos enunciados foi editada antes do atual texto constitucional. Isso poderia levar à suposição de que este quadro poderia ter sido alterado pela Constituição de 1988. Mas, na verdade, não foi isso o que ocorreu. Analisando-se a incidência do direito tributário nas Súmulas Vinculantes, instrumento que surgiu a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, verifica-se que das 53 Súmulas Vinculantes já editadas, 13 tratam de matéria tributária. Vale dizer, em torno de 24% dos enunciados vinculantes, o que demonstra que a tendência mantém-se praticamente a mesma.

Os números se tornam mais impressionantes quando se observa de perto o instituto da repercussão geral, que foi a principal inovação introduzida no modelo de atuação do Supremo Tribunal Federal em tempos recentes. Dos atuais 867 temas de repercussão geral, entre julgados e pendentes de julgamento, 257 se referem a direito tributário. Isso equivale a aproximadamente 30% do total. Com isso, a matéria fiscal só perde para o direito administrativo, que tem 300 repercussões gerais em relação a este mesmo total já mencionado. Por outro lado, dos atuais 324 temas de repercussão geral pendentes de julgamento, 117 tratam de matéria tributária, ou seja, praticamente 36% do quantitativo de processos com repercussão geral a espera de uma decisão de mérito. Já direito administrativo conta com apenas 101 recursos pendentes de julgamento em sede de repercussão.

A situação da repercussão geral é agravada pelo acúmulo geral de processos no Tribunal. Apenas para que se tenha ideia, e tratando apenas de matéria tributária, entre 1954 e 2005, portanto, em um espaço de meio século, a Suprema Corte Americana julgou 279 casos. Isso porque direito tributário é considerada uma das matérias que mais movimenta a agenda de julgamentos da Corte também por lá. Embora se imponha reconhecer a diferença do sistema judicial existente entre os dois países, é preciso dizer que um ministro do Supremo Tribunal Federal decide sozinho esse mesmo número de casos envolvendo direito tributário (279) em três meses, no máximo. Pior, em quase todos eles, sequer chegará a ser proferir uma decisão mérito.

O primeiro semestre judiciário de 2016 terminou com um debate no Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre o quadro atual da repercussão geral. A constatação por parte de vários Ministros foi de que o sistema apresenta problemas e o Tribunal precisa reformular a maneira como trata esses casos e seleciona novos temas. A questão veio à tona a partir de uma controvérsia sobre a aplicação do art. 1.035, § 5º do CPC/2015, cuja redação diz que o relator determinará a suspensão de todos os processos, individuais ou coletivos, em curso no país que versem sobre a mesma questão jurídica tratada no tema ao qual foi atribuída repercussão geral. A aplicação desse regramento amplifica os efeitos negativos da demora no julgamento de tais recursos e reforça a necessidade de celeridade no tratamento das questões selecionadas para serem julgadas sob o regime da repercussão geral, que é exatamente o oposto do que ocorre hoje.

Nesse sentido, um balanço do primeiro semestre judiciário de 2016 aponta para um panorama no mínimo preocupante em relação ao instituto da repercussão geral. No período, foram selecionados 11 novos casos para futuro julgamento na Corte, sendo 5 deles versando sobre matéria tributária. Por outro lado, o Plenário finalizou o julgamento de 10 recursos extraordinários submetidos ao regime de repercussão geral, dos quais 4 tratavam de matéria tributária. Os dados demonstram a predominância da matéria tributária na agenda atual e a sua expansão na agenda futura da Corte. E o mais grave de tudo: tirando uma média do tempo entre a seleção do caso no Plenário Virtual e o julgamento de mérito, os 10 recursos apreciados no semestre demoraram em média mais de 4 anos para serem julgados, sendo que o tema mais novo demorou 1,5 ano e o mais antigo 7,4 anos até terem uma decisão de mérito do Supremo. Caso se considere a média apenas dos recursos que versavam sobre matéria tributária, esse número sobe para quase 5,75 anos, o que não pode, de forma alguma, ser considerado como algo normal e razoável.

III. Necessidade de mudança de paradigma na matéria: critérios mais rígidos para seleção de casos

No campo tributário, aumenta a percepção de que a eternização de litígios que aguardam julgamento gera insegurança aos contribuintes. A demora na solução dessas demandas fiscais agrava o impacto econômico que o processo terá ao final para a parte que sair derrotada. No caso das empresas, muitas vezes os valores encontram-se depositados como forma de se precaver da demora e manter a regularidade fiscal, o que acarreta a indisponibilidade de altas quantias por longo período de tempo. Para a Fazenda Pública, essas demandas se transformam em verdadeiros esqueletos, obrigando o Supremo Tribunal Federal a lidar com argumentos consequencialistas de matriz econômica de parte a parte quando finalmente resolve a causa. Todos perdem com a demora. E mais: nesse quadro, aumentam sensivelmente as chances de um resultado que module os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, excepcionando a regra da nulidade ex tunc e, em geral, frustrando uma das partes do litígio.

Para que se tenha a dimensão do desafio que a matéria representa nesse momento, levando em conta o estoque atual de recursos com repercussão geral reconhecida, caso o Tribunal resolva pelo menos uma que verse sobre tributário por semana e não reconheça a repercussão geral de mais nenhum caso novo que envolva o assunto, demorará cerca de quatro anos para julgá-las. Por essa razão, a Corte precisa ser mais criteriosa nos temas submetidos à repercussão geral daqui em diante. No campo tributário, uma boa medida é que seja dada preferência a temas que mais diretamente se liguem aos conflitos federativos e à defesa dos direitos e liberdades individuais dos contribuintes.

Nesse contexto, acreditamos que o Supremo deve fazer um esforço para deslocar o eixo temático das repercussões gerais, que hoje está muito centrado em questões relativas à incidência e à base de cálculo de contribuições, assuntos que não têm nenhuma ligação com normas materialmente constitucionais. Por exemplo, do total de temas de repercussão geral hoje, é possível localizar ao menos quatro diferentes e que dizem respeito à contribuição para o FUNRURAL. No tocante à base de cálculo da COFINS, o número é ainda maior e atinge oito temas com repercussão geral reconhecida.

Diante desse quadro, um bom parâmetro para a futura seleção de casos seria dar enfoque àqueles que tenham uma relação mais direta com normas tributárias materialmente constitucionais, como, por exemplo, as relacionadas aos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes e aos conflitos federativos. E, por outro lado, adotando uma postura mais rígida e seletiva em relação aos temas que tratam exclusivamente da extensão da base de cálculos de contribuições, entre outros. No próximo capítulo, são abordados três temas dessa nova postura aqui defendida, tendo por referência casos já julgados pela Corte. E, a partir deles, estabelecem-se conexões com outros casos que têm o mesmo fio condutor e que já tiveram a repercussão geral reconhecida e aguardam julgamento, tratando de matéria constitucional da mais alta relevância.

Alguns temas para atuação futura da corte em matéria tributária

Capítulo 3

I. Limites Constitucionais ao poder de tributar e as multas tributárias

Recentemente, a Primeira Turma produziu um acórdão no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 727.872, de relatoria do primeiro autor, em que se discutiu o limite da multa tributária moratória frente ao princípio da vedação ao confisco. A controvérsia está diretamente relacionada com os limites para restrição de direitos fundamentais dos contribuintes, especialmente com os direitos de propriedade, liberdade e com a vedação ao excesso. Por outro lado, tem como contraponto a necessidade de se instituir um sistema justo, mas que assegure o efetivo cumprimento das obrigações tributárias, potencializando o dever fundamental geral de contribuir para a manutenção do Estado Fiscal.

Definir até onde vai o espaço de livre conformação do legislador para instituir validamente a tributação e seus consectários é um tema materialmente constitucional do qual já se ocupam, rotineiramente, as Supremas Cortes de outros países. Na Alemanha, por exemplo, a despeito das dificuldades de objetivar tal fronteira, o Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht) admitiu a premissa de que se deve respeitar o núcleo do direito de propriedade, limitando-se a tributação sobre o que seria meia parte da riqueza revelada. Na Espanha, ao analisar o limite constitucionalmente adequado das infrações tributárias, o Tribunal Constitucional expressamente assentou a relação ontológica entre as sanções tributárias e as sanções criminais, por considerar que ambas decorrem do ius puniendi estatal. Com isso, em mais de uma oportunidade, a Corte Suprema espanhola transportou para o campo do controle das sanções administrativas fiscais categorias típicas de direito penal, como, por exemplo, a noção de culpabilidade.

No Brasil, a Constituição de 1988 estabeleceu como baliza para esse controle os princípios do não confisco e da proporcionalidade, que são normas dirigidas ao Estado como um contraponto ao poder de tributar, de modo a impedir eventuais arbítrios do legislador na instituição de tributos. Desde meados dos anos cinquenta, a jurisprudência do Supremo já concebia que o poder de tributar deve ser compatível com o direito de propriedade, conforme se depreende da conclusão lançada no RE 18.331, de relatoria do Min. Orozimbo Nonato. Mais recentemente, os precedentes do Tribunal têm convergido para uma análise da matéria à luz do não confisco e do princípio da proporcionalidade, como instrumentos de defesa do direito de propriedade.

No futuro, o Plenário do Supremo deverá revisitar esse tema em pelo menos mais três oportunidades, para julgar os recursos extraordinários 882.461, 736.090 e 640.452, todos com repercussão geral já reconhecida. Os dois primeiros são de relatoria do Ministro Luiz Fux e tratam, respectivamente, dos limites para a instituição válida de multa fiscal de caráter moratório e da multa qualificada de 150%, está última, aplicada para os casos de fraude e sonegação fiscal em âmbito federal. O último dos três casos citados é de relatoria do primeiro coautor do presente trabalho, e nele se busca definir parâmetros para aplicação das chamadas multas isoladas, que incidem nas hipóteses de descumprimento de alguma obrigação tributária instrumental. Com o julgamento desses casos acerca da interpretação das limitações constitucionais ao poder de tributar, espera-se que o Supremo possa contribuir de forma positiva para organizar o campo das sanções tributárias, parte especialmente sensível do complexo sistema tributário brasileiro.

II. Controle de constitucionalidade e federalismo fiscal

O STF já consolidou jurisprudência firme no sentido da inconstitucionalidade dos benefícios fiscais concedidos em desrespeito ao art. 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição Federal e, por conseguinte, ao que determina LC nº 24/75. Vale dizer, aqueles instituídos sem prévia aprovação por convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ e que são concedidos rotineiramente por quase todos os Estados da Federação na tentativa de atrair investimentos e receitas. Em razão disso, as mais variadas formas de concessão de benefícios fiscais já foram declaradas inconstitucionais pelo Tribunal, dentre as quais: isenções, diferimentos impróprios, reduções de base de cálculo, concessões de créditos presumidos.

Disputas judiciais entre os entes parciais – isto é, entre Estados-membros ou, eventualmente, entre Municípios – é algo absolutamente ínsito ao modelo federativo. Não raro o conflito se instaura em razão de discussões que envolvem aspectos relativos à autonomia financeira, como decorrência de um exercício abusivo de alguma competência constitucionalmente prevista, que acaba por avançar sobre os limites válidos do poder de tributar. Essas violações à conduta amistosa federativa podem ocorrer tanto na relação entre ente central e entes parciais, quanto naquelas travadas entres os diversos entes parciais. No Brasil, o Supremo é locus, por excelência, para resolução de tais problemas, sendo o intérprete preferencial das regras e princípios constitucionais que promovem a divisão de competências entre os membros da Federação.

A noção do que se constitui ou não violação ao mandamento de se manter uma conduta amistosa entre os entes federativos, parece ter influenciado uma das únicas exceções encontradas na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal de benefício fiscal de ICMS concedido sem prévia anuência dos demais Estados da Federação, que foi considerado constitucional. De fato, no julgamento da ADI 3421, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, o Tribunal validou isenção de ICMS para os serviços públicos de água, luz, telefone e gás devido pelas igrejas e templos de qualquer crença, a despeito da desoneração concedida pelo Estado do Paraná não ter sido precedida de autorização por parte dos demais Estados via CONFAZ. Em seu voto, o relator destacou que “[a] proibição de induzir-se benefício fiscal, sem o assentimento dos demais estados, tem como móvel evitar competição entre as unidades da federação e isso não acontece na espécie”. Ou seja, não se verificando a deslealdade federativa que a regra constitucional objetiva impedir, a ausência de prévia autorização pelos demais Estados não pode invalidar a livre manifestação da autonomia financeira de um ente. Essa decisão tem um elevadíssimo significado para a forma como se percebe o Federalismo Fiscal no Brasil e tem merecido elogios da doutrina.

No futuro, o Supremo Tribunal Federal continuará se deparando com diversas outras situações envolvendo disputas federativas relativas ao ICMS, seja no controle difuso ou no controle concentrado. À propósito, há um caso pendente de julgamento, mas com repercussão geral já reconhecida, que suscita questões interessantes e complexas. Trata-se do tema 817, que é relevante, primeiro, porque envolve um debate sobre o nível de proteção devido aos contribuintes que possuem dívidas oriundas de benefícios fiscais declarados inconstitucionais pelo Supremo, naquelas hipóteses em que não houve qualquer modulação de efeitos. E, por outro lado, por discutir a possibilidade do Estado membro, posteriormente a manifestação do Supremo Tribunal Federal, promover a mitigação de determinados efeitos da decisão de declaração de inconstitucionalidade, através de ato normativo próprio. Por exemplo, efetuando o perdão dessas dívidas por meio de lei específica.

O caso não é simples e, sem antecipar qualquer juízo sobre julgamento futuro, é possível afirmar que será uma daquelas decisões em que o pano de fundo é a matéria tributária, mas os efeitos se projetam para além desse campo. Nela o Supremo irá mais uma vez testar os limites da autoridade de suas decisões e a relação com os demais Poderes. E, com isso, revisitar a discussão dos diálogos constitucionais, desta vez analisando a constitucionalidade da correção legislativa de jurisprudência promovida pelo legislador estadual e sua prevalência, ou não, diante de uma decisão prévia do Supremo sobre a modulação dos efeitos da decisão.

III. Coisa julgada, ação rescisória e mudança de jurisprudência em matéria tributária

O Plenário do Tribunal julgou, em 2014, o RE 590.809, de relatoria do Ministro Marco Aurélio. No caso concreto, o recurso extraordinário foi interposto contra acórdão que julgou procedente o pedido formulado em ação rescisória para desconstituir decisão que julgou em desconformidade com a tese firmada no Recurso Extraordinário nº 353.657/PR. O precedente do Supremo mencionado pelo tribunal de origem concluiu pela inviabilidade do creditamento do IPI nas hipóteses de insumo adquirido não tributado ou sujeito à alíquota zero, revertendo a tendência jurisprudencial inaugurada no julgamento dos recursos extraordinários 212.484 e 350.446. No RE 590.809, os recorrentes alegavam violação aos princípios da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais. Inicialmente, salientava-se não ser cabível a ação rescisória, dada a excepcionalidade do instituto. Asseverava-se, ainda, haver sido reconhecido o direito ao crédito com base em jurisprudência consolidada pelo Supremo à época.

Quanto ao instituto da rescisória, a Corte tinha convencimento firmado que dizia ser possível afastar a aplicação do enunciado nº 343 de sua Súmula sempre que se tratasse de discussão constitucional. Por essa lógica, a interpretação constitucional definida pelo Supremo, como decorrência da aplicação dos princípios da força normativa da constituição e da máxima eficácia das normas constitucionais, deveria prevalecer em qualquer hipótese. Ou seja, por essa lógica, até o final do prazo decadencial para ajuizamento da rescisória, era possível desconstituir qualquer decisão transitada em julgada contrária à visão atual da Corte sobre determinada questão, por se tratar de uma “coisa julgada inconstitucional”.

Pois bem. Resolvendo a demanda, o Tribunal manteve no caso a aplicação do enunciado nº 343 de sua Súmula e concluiu que, a despeito de se tratar de matéria constitucional, o acórdão que se buscava rescindir tinha sido prolatado em consonância com o decidido pelo Supremo Tribunal Federal até então, o que impunha a sua manutenção. Assim, forte na ideia de respeito à segurança jurídica e, em especial, ao seu aspecto subjetivo consubstanciado pela proteção à confiança legítima, o Tribunal decidiu tendo em conta a posição jurídica daqueles que estavam respaldados por uma decisão transitada em julgada formada segundo a interpretação constitucional consagrada pelo Supremo Tribunal Federal à época.

Em doutrina, o primeiro coautor deste artigo sempre defendeu que a mudança de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal gera direito novo e, portanto, não deve ser aplicada de maneira retroativa. De modo que, embora estivesse impedido para julgar o caso comentado, fez o registro em Plenário da alegria pela maioria formada em torno do belíssimo voto do relator, ministro Marco Aurélio. Aqui, se nossas ideias não coincidiram lá no início, fiquei feliz que elas tenham podido, em essência, se encontrar em um lugar no futuro.

Conclusão

upremo Tribunal Federal exerceu, exerce e continuará exercendo um papel de protagonismo no direito tributário, com relevantes contribuições para o desenvolvimento dos principais temas de jurisdição constitucional no Brasil. Por outro lado, a Corte atualmente vive uma crise numérica, que é ainda mais aguda quando se olha para a repercussão geral, cujo grande passivo hoje está nas causas de direito tributário. Parece ser esse um bom momento de repensar os critérios de seleção de casos e adotar uma posição mais restritiva quanto aos recursos dessa natureza que terão a repercussão geral reconhecida. Em lugar de um modelo idealizado e que prometa julgar muito mais do que o Tribunal racionalmente consegue, gerando um acúmulo que caminha para 40% de causas tributárias entre todas as repercussões gerais pendentes de julgamento, é necessário avançarmos para um modelo mais sincero e realista.

A percepção geral de que todos os casos relevantes do ponto de vista econômico precisam ser decididos pelo Supremo Tribunal Federal alimenta uma corrida para que praticamente todas as discussões envolvendo matéria tributária busquem seu espaço na agenda futura da Corte. Isso tem um potencial preocupante de tornar o Tribunal disfuncional, o que causaria efeitos negativos para o ambiente tributário, em geral, e para a atuação do Tribunal, em particular. Para o ambiente fiscal, em que a segurança jurídica tem um peso ainda maior, permanecer anos à espera de uma decisão sobre a incidência ou não de determinada contribuição ou imposto aumenta os custos dos negócios, freia os investimentos mais expressivos e não garante a previsibilidade que demandam os orçamentos públicos, cada dia mais escassos. Em relação ao prejuízo à atuação da Corte, o excessivo gasto de energia e tempo em questões tributárias sem verdadeira expressão constitucional impede o avanço do trabalho do Supremo em discussões verdadeiramente ligadas a direitos fundamentais, que deveriam fazer parte do cardápio diário de decisões de um Tribunal Constitucional.

Como foi dito no início do texto, a ideia central é que a racionalização da agenda futura do Tribunal passa por uma seleção minimalista de casos que terão a repercussão geral reconhecida em matéria tributária, com especial ênfase na escolha dos temas que têm maior relevância constitucional. Em especial, como demonstrado pelos exemplos alinhados no capítulo III do presente artigo, aqueles que envolvam normas materialmente constitucionais, como a aplicação das limitações constitucionais ao poder de tributar, a resolução de conflitos federativos e a garantia dos direitos fundamentais dos contribuintes, como, por exemplo, a segurança jurídica.

Fonte: Jota

Luís Roberto Barroso e Marcus Vinicius Cardoso Barbosa

Luís Roberto Barroso
Ministro do Supremo Tribunal Federal. Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

Marcus Vinicius Cardoso Barbosa
Procurador do Estado do Rio de Janeiro e Advogado. Mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ. Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal.

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