As cinzas e o processo administrativo fiscal “de pequeno valor”

Thais de Laurentiis

Na última Quarta-Feira de Cinzas, foi publicada a Portaria MF nº 20/2023. Trata-se de mais um degrau na escalada de mudanças que os tributaristas brasileiros tropicam desde o início do ano, estejam eles acometidos ou não pela tristeza do fim do Carnaval.

Para bem compreendê-lo, vejamos o contexto que antecede a edição do ato.

A Portaria ME nº 340/2020, conforme delegação estabelecida pelo artigo 23 da Lei nº 13.988/2020, trouxe substancial inovação ao contencioso administrativo, criando, ao lado das turmas ordinárias, as chamadas câmaras recursais das Delegacias de Julgamento Receita Federal (câmaras recursais da DRJ).

Essa nova categoria foi criada dentro da organização das DRJs para que lhe fosse atribuída a competência para julgamento na sistemática ali disciplinada: o rito especial para contencioso administrativo fiscal de pequeno valor, até então considerado como aquele que não superasse 60 salários-mínimos — s.m. (cf. redação original da Lei nº 13.988/2020). Tal rito especial prevê que o recurso, interposto no prazo de 30 dias contra decisão da DRJ, não será dirigido ao Carf, mas sim às câmaras recursais, que os julgarão em última instância.

Assim, as câmaras recursais foram criadas como equipes virtuais, com a competência supramencionada, instituídas por ato do Secretário Especial da Receita Federal, podendo sua composição abranger integrantes de mais de uma DRJ. Elas são especializadas por matéria e integradas por no mínimo três e no máximo sete julgadores, escolhidos dentre os presidentes das Turmas Ordinárias das DRJ.

A Portaria ME nº 340/2020 foi revogada pela mencionada Portaria MF nº 20/2023, que passou a tratar esses novos órgãos de julgamento dentro da DRJ sob a alcunha de turmas recursais, sendo essas, então, as sucessoras das antigas câmaras recursais.

Essa é a menor das mudanças trazidas pela nova portaria editada pelo Ministério da Fazenda, como veremos a seguir. Mas desde já cumpre realçar que as mudanças, na verdade, têm como origem o artigo 4º da MP 1.160/2023, que incluiu o artigo 27-B na Lei nº 13.988/2020, atribuindo a nova competência para julgamento em última instância administrativa às DRJs, para os casos que não superem 1.000 s.m., os quais foram tratados como “contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade”.

Estabelecidas essas linhas gerais, já é possível passarmos à avaliação das novidades trazidas pela Portaria MF nº 20/2023, pegando de surpresa os tributaristas ainda em recuperação das folias de Carnaval.

O primeiro ponto que chama a atenção é que a nova normativa institui a possibilidade de ser proferida decisão monocrática pela DRJ [1]. Ela se dará no julgamento de impugnação ou manifestação de inconformidade apresentada pelo sujeito passivo, em relação ao: 1) contencioso administrativo fiscal de pequeno valor (controvérsia que não supere 60 s.m.); e 2) contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade (controvérsia de valor entre 60 e 1.000 s.m.).

Assim, as decisões colegiadas na DRJ, proferidas pelas Turmas Ordinárias ou Especiais, ficam restritas aos demais casos. No mais, a portaria trabalha da mesma forma que já estabelecia a Lei 13.988/2020, com as alterações trazidas pela MP 1.160/2023: o julgamento colegiado se dará em instância final, pelas Turmas Recursais, para os casos de até mil s.m.

Vemos então que a Portaria MF nº 20/2023 deixou clara a até então mal explicada segregação do “contencioso de pequeno valor” em contraste com o “contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade”.

A diferenciação em tese poderia de fato existir. Inclusive, essas duas categorias de processos foram utilizadas durante o período da pandemia para julgamentos em segunda instância, no qual passamos a ter reuniões virtuais do Carf. Naquele contexto, os processos que poderiam ser pautados pelos conselheiros, na forma de julgamento não presencial, eram justamente aqueles considerados de baixo valor (o qual inicialmente foi de um milhão de reais, chegando alfim a alcançar o patamar de R$ 36 milhões) ou de baixa complexidade (considerados aqueles temas tratados por súmula ou resolução do Carf, ou objeto de decisão com efeitos gerais e vinculantes proferidas pelos tribunais superiores) [2].

Ocorre que não foi nesse sentido que andou a nova normatização relativa à competência das turmas recursais da DRJ. Como já dito, a “classe”, criada pela MP 1.160/2023 e regulada pela Portaria MF nº 20/2023, como de “baixa complexidade” nada se relaciona com o tipo de matéria tratada no bojo do processo administrativo, mas sim com o valor do processo em apreciação pela DRJ. Ou seja, há uma dislexia entre o critério de discrímen e o conjunto dele derivado, sendo que, na prática, temos agora uma nova alçada para competência para julgamento pelas turmas recursais da DRJ para casos envolvendo até 1.000 s.m.

Consignado esse problema, vamos agora ressaltar um ponto positivo: a Portaria traz segurança quando estipula a forma de cálculo do valor do crédito controverso, para a verificação do valor de alçada determinante do rito ao qual estará submetido o PAF [3].

No mais, vemos que novas regras previstas pela Portaria MF nº 20/2023 dialogam com o que, até o fim das últimas marchinhas de Carnaval deste ano, restava restrito à experiência do “tradicional” contencioso administrativo fiscal de segundo instância: o Carf.

O artigo 35 da Portaria MF nº 20/2023 afirma que se considera motivada a decisão recursal da DRJ, nos processos submetidos ao rito especial do contencioso administrativo fiscal, que confirmar a decisão de primeira instância, tão simplesmente, ou por meio de sua transcrição, ou ainda consignando que não foram apresentadas novas razões de defesa perante a segunda instância.

Tal possibilidade de julgamento, confirmando razões de ato administrativo anteriormente proferido, não deve causar espécie. Encontrava-se há tempos previsão no artigo 50, §1º da Lei nº 9.784/99, por isso já era muito utilizada no âmbito do julgamento no Carf, tendo sido apropriado mais recentemente pelo Ricarf.

Igualmente o artigo 37 da Portaria MF nº 20/2023 trouxe cópia de previsão constante do Ricarf (artigo 63, §8º), ao anunciar que na hipótese em que a decisão por maioria dos julgadores ou por voto de qualidade acolher apenas a conclusão do relator, caberá a este reproduzir, no voto e na ementa do acórdão, os fundamentos adotados pela maioria dos julgadores.

Trata-se de medida fundamental, pois só assim o acórdão espelhará efetivamente as razões de decidir do colegiado.

Outro ponto de aproximação com a experiência do Carf foi o seguinte: no sentido de garantir um efetivo duplo grau de jurisdição administrativa, a Portaria MF nº 20/2023 determina o impedimento do julgador de atuar como relator do recurso voluntário nas hipóteses de ter sido relator ou redator da decisão recorrida, relativamente à matéria objeto do recurso; ou quando tiver proferido decisão monocrática ao caso.

Igualmente aqui é importante a nova disciplina, pois, do contrário, restaria prejudicado que o julgamento em segundo grau fosse potencialmente diverso da decisão a quo.

No que tange aos procedimentos de julgamento, a Portaria MF nº 20/2023 determina que os processos serão organizados em lotes, formados preferencialmente por processos coesos, semelhantes, conexos, decorrentes ou reflexos, de mesma matéria ou concentração temática. Trata-se de medida muitíssimo salutar.

É do quotidiano dos conselheiros do Carf terem que lidar com processos que deveriam estar juntos, mas não estão, como já pudemos relatar nessa coluna a respeito do julgamento de processos vinculados [4]. É essa atenção que foi dada ao tema para julgamento pela DRJ, seguindo a nomenclatura do artigo 6º do Ricarf no que tange aos processos conexos, decorrentes ou reflexos. O novo ato normativo, contudo, trouxe duas novas categorias: processos coesos e processos semelhantes. Fê-lo sem gastar uma linha para conceituar tais categorias.

Dessarte, a realidade agora é que não há, no âmbito do PAF, quaisquer balizas para a identificação desse tipo de vinculação entre processos [5], restando então bastante prejudicada a medida sobre julgamento de processos vinculados trazida para o âmbito das DRJs. Ademais, ao inserir essas novas categorias, criou-se regras distintas entre o procedimento nas DRJs e aquele existente no Carf, em oposição à salutar ideia de unificação de procedimentos. Essa distinção, dessarte, se opõe ao próprio sentido geral da norma que, em várias passagens, toma de empréstimo instrumentos processuais ou procedimentais já empregados no Carf.

Seguindo adiante, outra medida que mostra que a DRJ passa a se apropriar de alguns instrumentos utilizados no Carf é o julgamento de processos com defesas “múltiplas”, baseada na mesma questão de direito.

Com efeito. No Carf, os processos que versem sobre a mesma questão jurídica poderão receber tratamento diferenciado, segundo o artigo 47, §1º do Ricarf. Nos seus termos, quando houver multiplicidade de recursos apresentados com fundamento em idêntica questão de direito, o presidente de Turma poderá sortear um processo para defini-lo como paradigma, por ser representativo da controvérsia. Quando da inclusão em pauta e julgamento do processo paradigma, aos demais casos vinculados a ele será aplicado o mesmo resultado de julgamento.

Tal sistemática de julgamentos “repetitivos”, no jargão dos conselheiros do Carf, é de fato inteligente e bastante efetiva para a celeridade da prestação jurisdicional administrativa. Assim, não pareceria problemática, a princípio, sua transposição para a DRJ.

É recorrente, contudo, que dentre os diversos processos que compõem o lote de casos vinculados ao paradigma, alguns tenham particularidades, que os tornam não absolutamente simétricos. O resultado disso é um julgamento em lote que deixará de lado tais particularidades (e.g. uma preliminar específica; uma questão de erro material; etc), haja vista que somente o processo paradigma será discutido e julgado pelo colegiado. Nesse caso, em se tratando de julgamento pelo Carf, caberá a oposição de embargos de declaração pelo sujeito passivo, nos autos do processo do lote que sofreu com essa discrepância em relação ao paradigma, apontando a omissão, contradição ou obscuridade no julgamento.

Como ficará então o contribuinte no caso de julgamento de repetitivos pela DRJ? Ali não há embargos de declaração para suprirem tal problema. Assim, o que aparentemente podia ser benéfico, é capaz de gerar múltiplas disputas.

Um outro ponto trazido pela nova Portaria: foi aberta a possibilidade de que o antigo conselheiro ou colaborador [6] do Carf, ao final do seu mandato, requeira a remoção para a Coordenação-Geral de Tributação (Cosit). Trata-se de inovação com relação à Portaria nº 340/2020, a qual cuidava exclusivamente dessa possibilidade com relação à ida do julgador à DRJ. De toda sorte, tanto num caso como no outro, tal possibilidade fica restrita ao “critério” do Secretário da Receita Federal. Quer dizer que, apesar de ter positivado situação que se verificada muitas vezes na prática, esse direito fica à mercê da discricionariedade do Secretário da RFB, de modo que não parece existir grande evolução, seja do ponto de vista pessoal dos auditores, seja do clamor social no sentido de que essa garantia fosse a eles assegurada, evitando eventuais pressões dentro da administração pública sobre esses julgadores.

Uma última novidade bastante importante trazida pela Portaria MF nº 20/2023 com relação ao julgamento pela turma recursal foi que, apesar de mantida a sistemática de julgamento de forma virtual, agora há direito de apresentação de sustentação oral gravada pelos patronos, a ser encaminhada digitalmente.

Indubitável que se trata de medida importante em prol do direito ao contraditório e da ampla defesa dos contribuintes, cujo contencioso administrativo fiscal agora fica restrito às turmas da DRJ. Todavia, também é indubitável que é uma medida muitíssimo singela frente à todas as garantias que foram retiradas dos pequenos contribuintes, agora impedidos de acesso ao Carf [7].

Por tudo quanto exposto, percebemos que a nova normatização leva em conta que agora a DRJ possui um papel bastante expressivo, atuando como instância final em um número muitíssimo maior de processos em razão do novo limite de alçada trazido pela MP 1.160/2023. Essa regulamentação em muito se inspira nos parâmetros adotados pelo Carf, que agora pode ser visto como a “tradicional” segunda instância no contencioso administrativo fiscal. Contudo, como também já foi possível adiantar em cada um dos pontos tratados acima, a Portaria MF nº 20/2023 ainda se encontra bastante aquém de levar aos pequenos contribuintes tudo aquilo que perderam ao serem privados do acesso ao Carf, com um pleno duplo grau de jurisdição administrativa, conforme determina o artigo 5º, LV da Constituição: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Embora a sistemática de julgamento criada pelas novidades legislativas vá ao encontro da eficiência e da celeridade, princípios guiadores do processo administrativo fiscal, peca por tolher o direito ao contraditório e a ampla defesa dos contribuintes nos casos de valor financeiro menos expressivo. Afinal, enquanto os grandes contribuintes terão acesso a todo o procedimento previsto para julgamento pelo Carf, órgão paritário com direito não só ao recurso voluntário, mas também à sustentação oral ao vivo, apresentação de memoriais, participação das sessões de julgamento públicas, oposição de embargos, recurso especial à CSRF e agravos; os pequenos contribuintes ficarão com o contencioso administrativo restrito ao apelo à turma recursal dentro da própria DRJ, do qual não poderão participar com efetividade.

Podemos assim dizer que a publicação da Portaria MF nº 20/2023, na Quarta-Feira de Cinzas, foi bastante simbólica. Nesse dia as cinzas lembram a mortalidade e efemeridade, que ainda, infelizmente, parecem ser o sentimento daqueles que lidam no dia a dia com o processo administrativo fiscal nesse país.

[1] No Carf as decisões monocráticas ficam restritas ao conhecimento de embargos e agravos. Assim, no julgamento pelo rito especial na DRJ, o pequeno contribuinte perdeu em termos de garantias processuais de julgamento, porque agora ele se dará por decisão monocrática, que apesar de necessariamente conter os mesmos requisitos das demais decisões do PAF, com certeza traz uma limitação da pluralidade de visões que o julgamento colegiado garante.

[2] Ver Portaria nº 17.296/2020.

[3] Art. 3º, p.u.

[4] https://www.conjur.com.br/2021-nov-24/direto-carf-processos-vinculados-sistematica-julgamento-carf

[5] Nem mesmo na Portaria nº 48/ 2021 há essa definição.

[6] Vide art. 8º do Ricarf.

[7] Buscando mitigar a discrepância criada pelo rito especial, há determinação de observância obrigatória, pelas turmas recursais, das súmulas e resoluções de uniformização de teses divergentes do Carf.

Thais de Laurentiis

Conselheira titular do Carf, vice-presidente da Turma 1.201, árbitra no CBMA, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP — com período na Sciences Po/Paris —, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, associada do IBDT e professora de Direito Tributário e Direito Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

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