No tema da coisa julgada, houve mesmo surpresa no entendimento do STF?

Hugo de Brito Machado Segundo

Observa-se, na imprensa, forte repercussão de uma recente manifestação do Supremo Tribunal Federal, no equacionamento dos temas 881 e 885 de sua jurisprudência com repercussão geral. Tais temas tratam das relações tributárias de caráter continuado, nas hipóteses em que o contribuinte tem em seu favor sentença transitada em julgado afirmando a invalidade da cobrança de um tributo, mas a jurisprudência da corte se firma em posição contrária. Fala-se, com o recente pronunciamento do STF, no “fim da coisa julgada”, algo que, com todo o respeito aos posicionamentos discrepantes, parece um tanto exagerado.

Basicamente o que o Supremo Tribunal Federal fez foi decidir que a sentença que afirma inválida a cobrança de determinado tributo, em uma relação jurídica continuada ou continuativa, produz efeitos para o futuro, abrangendo o período posterior àquele discutido no processo. Entretanto, se houver mudança na situação de fato, ou de direito, os efeitos da sentença, a partir de então, não se produzem mais. Isso, aliás, não foi dito pelo STF, mas pela legislação processual, e pela própria literatura especializada, há muito tempo. A discussão, em verdade, girava em torno de saber se uma mudança jurisprudencial, em torno do entendimento sufragado na decisão passada em julgado, equivaleria a uma “mudança na situação de fato ou de direito”.

O tema, repita-se, não é novo. Em 2004, Helenilson Cunha Pontes obteve a livre docência em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo com tese sobre o assunto, depois publicada pela editora Dialética. Nela, defendia que a simples mudança de entendimento do STF, mesmo em sede de controle difuso, poderia ensejar a cessação de efeitos de decisão passada em julgado em sentido contrário, relativamente a fatos posteriores.

Em 2006, na segunda edição de meu Processo Tributário, também tratei do tema. Divergi, contudo, ligeiramente, de meu mestre Helenilson, concordando que a mudança de entendimento, se havida em sede de controle concentrado, produz efeitos normativos, erga omnes, equivalendo a lei nova. Neste caso, realmente, a coisa julgada em sentido contrário deixa de produzir efeitos a partir de então. Mas, se a mudança de entendimento se der em sede de controle difuso, sem efeitos expansivos, essa conclusão não seria viável. Neste ponto residia a nossa divergência, pois defendia, e ainda defendo, a necessidade de se mover nova ação para rediscutir o tema. Em qualquer caso, a partir da ADI ou da ADC, se concentrado ou controle, ou a partir dessa nova discussão judicial, se a mudança se opera no difuso, os efeitos, sobre quem tinha coisa julgada favorável, são sempre ex nunc.

No mesmo ano de 2006, o professor Hugo de Brito Machado, meu pai, coordenou, em parceria entre o Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e a editora Dialética, obra em torno da coisa julgada em matéria tributária, da qual participaram diversos tributaristas, e processualistas, a maior parte deles chegando a essas mesmas conclusões. Neste livro, inclusive, enfrentam-se questões que continuam em aberto na jurisprudência, mas que por certo serão filhotes dos temas em exame, como a de saber se igual posição deve ser adotada diante de mudança no entendimento do STJ sobre questões legais, quando os precedentes forem submetidos à sistemática dos recursos repetitivos, o que nos parece ser o caso; bem como se se aplica igual entendimento na situação inversa, de coisa julgada que afirma devido um tributo, o qual posteriormente vem a ser reconhecido inválido pelo STF: pode o contribuinte ser obrigado a pagar tributo inconstitucional, para todo o sempre, por conta de um instituto criado para protegê-lo, e que não pode ser invocado pelo Estado em seu desfavor (Súmula 654/STF)? A resposta parece ser não.

Quanto ao tema e às críticas que injustamente se lhe dirigem, é preciso entender a questão teórica, e conceitual, que subjaz.

Quando uma sentença afirma procedente um pedido, reconhece a existência, a inexistência, ou o modo de ser de uma relação jurídica. Em se tratando de jurisdição tradicional, concreta, tem-se a afirmação do direito subjetivo de alguém, o qual decorre de uma situação de fato, e de normas jurídicas que conferem a essa situação de fato a consequência de gerar o tal direito subjetivo.

Nessa ordem de ideias, o direito subjetivo, reclamado no processo e declarado na sentença, pode decorrer de um fato havido de modo isolado no tempo. Ocorreu só uma vez, necessariamente antes do ingresso da ação. Alguém, por exemplo, é humilhado pelo comissário de bordo de uma companhia aérea, em um voo específico. Diante dessa humilhação, move ação de reparação de danos, e se sai vitorioso. Recebe a indenização. Com o trânsito em julgado da decisão, o direito assim reconhecido, e a indenização recebida, não poderão ser questionados, ressalvadas as excepcionais hipóteses de cabimento da ação rescisória. Essa conclusão não se modifica se os tribunais mudarem sua orientação, depois, sobre se de humilhações semelhantes decorreria, ou não, o direito à indenização. Se os julgadores passarem a ser mais rígidos ou mais complacentes com situações análogas. Tampouco a decisão será atingida por lei posterior, que eventualmente assevere a inexistência do dever de reparar o dano em tais casos.

A situação será diferente, porém, se a sentença afirmar a existência, a inexistência, ou o modo de ser de um direito subjetivo, quando este decorre de situações de fato que se repetem, ou renovam, no tempo, e sobre as quais as mesmas normas continuam incidindo, mesmo depois de ajuizada a demanda ou após seu encerramento. Uma sentença que reconheça o dever de um pai pagar alimentos ao filho não produz efeitos apenas em relação ao passado, mas para o futuro, enquanto se mantiver a situação de fato reconhecida na sentença, da qual decorre o dever de pagar alimentos, por exemplo. Mas seus efeitos podem cessar, ou podem ser rediscutidos, se a situação mudar, o pai perder o emprego, o filho tornar-se maior de idade e passar a ganhar seu próprio dinheiro etc.

No campo do Direito Tributário, se uma decisão afirma que determinado contribuinte, proprietário de um imóvel com características “x”, é isento do IPTU nos termos da lei “y”, essa sentença produzirá efeitos enquanto a lei “y” permanecer em vigor, e enquanto o contribuinte for proprietário do referido imóvel com características “x”. A sentença, por certo, pode excepcionalmente ser objeto de ação rescisória, mas, ressalvada essa hipótese, o certo é que, em regra, produzirá efeitos relativamente ao período abrangido na ação, e por todo o futuro. Seus efeitos sobre fatos futuros perduram enquanto a lei “y” permanecer em vigor, e o imóvel com características “x” continuar pertencendo ao contribuinte. Não será preciso mover nova ação, para ver reconhecida a isenção relativamente ao IPTU, a cada ano. Mas, se o imóvel tiver suas características alteradas, ou se a lei isentiva for revogada — ou declarada inconstitucional em ADI — a sentença deixará de produzir efeitos, a partir de então.

Foi isso, e apenas isso, o que o STF decidiu, nos temas em questão. Que uma ADI, por ter efeitos erga omnes, equivale à edição de uma lei nova, fazendo cessar os efeitos de uma sentença que firmara posição em sentido contrário, mas apenas relativamente a fatos havidos a partir de então.

Não houve fim da coisa julgada. Pelo contrário. Neste ponto, a pretensão inicial do Fisco foi bastante refreada, pois este pretendia cobrar o tributo em torno do qual a disputa foi colocada (a CSLL), mesmo daqueles que possuíam ações afirmando sua invalidade, e mesmo antes de o STF firmar posição por sua validade. E, depois de resolvida a questão em sede de Recurso Extraordinário, em 1992, a União passou a cobrar de muitos contribuintes, ignorando a coisa julgada que tivessem em seu favor. Ao julgar os temas, o STF afirmou que isso não é possível, sendo lícito cobrar apenas sobre fatos havidos a partir de quando se julgou ADI sobre o tema, afirmando a validade da contribuição, e respeitando-se a anterioridade. Afinal, como dito, a ADI tem efeitos sobre todos, tal como uma lei nova.

O período em torno do qual havia a controvérsia mais séria, em relação ao qual era razoável a posição dos que se confiavam na coisa julgada para não pagar, era aquele compreendido entre 1992 (ano do julgamento do RE dando por válida a exação apenas entre as partes daquele processo), e 2007 (ano do julgamento da ADI, dando a exação como válida para todos). E, para esse período, o STF agora deixou claro que a cobrança não pode ocorrer, relativamente àqueles que possuíam sentenças com trânsito em julgado dando pela invalidade da exação. Quanto ao período posterior, pode-se até discordar da posição da corte, a crítica acadêmica é livre, mas afirmar-se que equivale ao fim do instituto da coisa julgada parece um tanto exagerado. Como se uma lei nova, dando nova disciplina ao tributo, não pudesse torná-lo devido a partir de então. Basta pensar na decisão que afirma inválida uma cobrança, por falta de fundamento legal, decisão esta que deixa de produzir efeitos quando o poder público, corrigindo o vício, edita lei dando esse fundamento à cobrança, que daí para a frente passa a validamente acontecer.

Algumas reflexões, porém, podem ainda ser feitas, diante do assunto.

Primeiro, sobre a decadência. A decisão firmada no julgamento dos temas não altera a fluência dos prazos prescricionais ou decadenciais. Assim, mesmo podendo, em tese, exigir o tributo desde 2008, o Fisco só poderá fazê-lo, por certo, se os lançamentos respectivos tiverem ocorrido dentro do prazo de decadência. Um contribuinte que jamais tenha sido autuado, nesse período, e que esteja sem pagar a CSLL até hoje, naturalmente só poderá ser compelido a pagar as quantias em aberto relativamente aos últimos cinco anos, contados da notificação do lançamento que vier a ser feito.

Segundo, mas não menos importante, é interessante notar que este é mais um efeito colateral, sentido muitos anos depois, de um remédio amargo e inadequado para o excesso de processos nas cortes superiores, em torno do qual até já escrevi aqui na ConJur: a jurisprudência defensiva. Em face dela, recursos não são conhecidos por questiúnculas vazias e inúteis, ou, mais recentemente, até pela acusação de incorrerem em falhas verdadeiramente inexistentes. Julgadores chegam a afirmar a falta do pré-questionamento, por exemplo, apesar de o artigo supostamente não pré-questionado estar transcrito e debatido em diversos pontos do acórdão recorrido… A consequência é essa: sujeira colocada debaixo do tapete, que transborda anos depois, sob a forma de decisões passadas em julgado em sentido discrepante daquele firmado nas cortes superiores, levando a mais processos, com discussões relativas à falta de isonomia, quebra da concorrência, necessidade de relativização da coisa julgada etc.

Hugo de Brito Machado Segundo

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFCE) — de cujo programa de pós-graduação (mestrado/doutorado) foi coordenador (2012/2016) —, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität, em Viena (Áustria).

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