Por que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica do novo Código de Processo Civil não deverá ser aplicado nos processos que envolvam relação de consumo

Fernando Augusto Sales

Introdução.
O novo Código de Processo Civil já é uma realidade. Aprovado, sancionado e publicado, entrará em vigor em março de 2016, após o período de vacatio legis de 1 ano, apresentando uma série de novidades. Uma delas é o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, objeto deste pequeno artigo. O novo CPC, com esse incidente, cria regras procedimentais para a efetivação da desconsideração, como veremos a seguir.

Neste ensaio, como o próprio título já revela, iremos defender a tese de que esse incidente não deverá ser aplicado aos processos que envolvem relações de consumos albergadas pelo Código de Defesa do Consumidor.

I – O que é a desconsideração da personalidade jurídica?
Assunto que nos é bastante caro, e que já tivemos oportunidade de escrever em outras oportunidades (por todas, ver SALES e MENDES, 2015: 65-66), a desconsideração da personalidade jurídica surgiu no Brasil em meados dos anos 60 trazida pelo mestre Rubens Requião, como uma teoria, em que se pretendia, em determinadas situações, passar por cima do “véu” que cobria a pessoa jurídica para atingir as pessoas de seus sócios, que por trás dele se escondiam.

Questão delicada essa. A personalidade jurídica começa a partir do registro, no órgão próprio, dos atos constitutivos de uma determinada entidade (sociedade, associação, partido político, instituição religiosa, EIRELI, etc.), na forma do disposto no art. 45 do Código Civil. Dotada de personalidade própria, essa entidade, agora uma pessoa jurídica, tem vida própria, distinta de seus membros, com os quais não se confunde. Entre outros efeitos, a personificação traz como característica principal a autonomia patrimonial, de sorte que as obrigações da pessoa jurídica não passam para os seus sócios, especialmente em sociedades cujos sócios têm responsabilidade limitada (como na sociedade limitada e na sociedade anônima, responsável pela maioria das sociedades existentes no País).

Ocorre, todavia, que essa situação – importante para o mundo do direito e dos negócios, diga-se de passagem, perfeitamente legal – conduziu a abusos, que deram origem à referida teoria (surgida na Alemanha pelas mãos de Rolf Serick), que buscava uma forma de responsabilizar os sócios pelas obrigações da sociedade.

Aquela teoria evoluiu com o passar do tempo, ganhou corpo e forma, espalhou-se pelo mundo, e chegou ao Brasil, onde foi positivada no País em, pelo menos, dois importantes diplomas legais: primeiro no Código de Defesa do Consumidor (1.990), no art. 28, e depois no Código Civil (2.003), no art. 50, sendo, hoje, uma realidade.

II – Do incidente da desconsideração da personalidade jurídica no novo CPC.
O novo CPC chega trazendo uma gama de novidades. Dentre elas, contempla o chamado “incidente de desconsideração da personalidade jurídica”, por meio do qual pretende regular o procedimento para que ele se efetive, nos arts. 133 a 137 (SALES, 2015.a: 34-35). Esse incidente tem como maior e principal característica contemplar o contraditório, muito ressaltado na novel lei (arts. 9º e 10 do novo CPC).

A primeira observação, importante e necessária, é de que o incidente de desconsideração deve ser requerido pela parte interessada ou pelo MP, quando atua como fiscal da ordem pública (NCPC, art. 133). Isso significa que o juiz não poderá decretar a desconsideração da personalidade jurídica de ofício (conforme estabelece o princípio dispositivo ou da inércia). A segunda é que o juiz, ao instaurar o incidente, deverá atentar para os pressupostos autorizadores presentes na lei material.

O incidente de desconsideração terá lugar em qualquer fase do processo de conhecimento, inclusive no cumprimento de sentença, e no processo de execução (NCPC, art. 134). A instauração do incidente acarreta a suspensão do processo (NCPC, art. 134, § 3º). Importante notar, também, que o incidente está alocado no capítulo destinado à intervenção de terceiros, de sorte que o desconsiderado será considerado um interveniente no processo.

Não haverá necessidade de se instaurar o incidente quando a desconsideração for requerida pelo autor na petição inicial. Nesse caso, será citado o sócio ou a pessoa jurídica, conforme o caso da desconsideração, para oferecer contestação, sem suspensão do feito (NCPC, art. 134, § 2º).

No requerimento para instauração do incidente, o requerente deverá demonstrar a presença dos pressupostos legais autorizadores para a desconsideração.

A maior inovação do incidente, todavia, consiste no direito prévio de resposta do desconsiderado. Amparado no princípio do contraditório que norteia o processo civil o incidente da desconsideração contempla o direito do desconsiderado de impugnar previamente a pretensão desconsideratória (NCPC, art. 135). Na forma anterior, a decisão não dependia da oitiva prévia do desconsiderado, que poderia impugná-la a posteriori. Agora, instaurado o incidente, far-se-á a citação do sócio ou da pessoa jurídica, conforme o caso, para apresentar impugnação ao pedido e requerer provas, no prazo de 15 dias.

Finda a instrução processual do incidente de desconsideração, o juiz deverá decidi-lo, acolhendo-o ou rejeitando-o. Quando a decisão é pelo acolhimento do pedido de desconsideração, o principal efeito dessa decisão é de considerar ineficaz qualquer alienação ou oneração de bem ocorrida depois do ajuizamento da ação, em relação ao requerente. Isso significa que o juiz irá reconhecer em fraude à execução, tornando ineficaz o ato de alienação ou oneração, praticado pelo sócio ou pela pessoa jurídica, conforme o caso.

III – O porquê da não aplicação do incidente de desconsideração do novo CPC nas ações de consumo.
O objetivo desse ensaio, que não fizemos questão de esconder em momento algum, é demonstrar que o incidente da desconsideração previsto no novo CPC não deve – nem pode – ser utilizado nas ações de consumo. E, cremos, não será difícil demonstrar isso.

As relações de consumo são albergadas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), cujas disposições são consideradas normas de ordem pública. O CDC contém normas tanto de direito material como de direito processual, misturadas. É que, embora contenha um título próprio denominado “da defesa do consumidor em juízo” (Título III), ao longo de todo o código encontramos normas de direito processual, muitas vezes ao lado de normas de direito material, como ocorre, por exemplo, no art. 6º, no art. 28 e no art. 51. Desta forma, como lei especial, o CDC prefere à lei geral – o NCPC – que somente será utilizado de maneira supletiva, e no que não for incompatível.

Pois bem. O incidente proposto no NCPC é incompatível com a defesa do consumidor em juízo, por várias razões. Vejamos:

1) o consumidor tem o direito à efetiva reparação dos danos (CDC, art. 6º, VI), e à facilitação da defesa de seus direitos em juízo (art. 6º, VIII): o incidente de desconsideração do novo CPC cria um obstáculo à efetiva reparação, eis que ao estabelecer o contraditório prévio permite o “esvaziamento” do patrimônio do sócio. Além disso, estabelecer um “incidente processual” é um complicador para o processo, que não se coaduna com a ideia de facilitação propugnada pelo CDC.

2) pelo art. 28 do CDC, o juiz pode desconsiderar a personalidade jurídica do fornecedor de ofício, ou seja, sem que se faça necessário o requerimento do interessado, o que não ocorre no “incidente” previsto no novo CPC, revelando a incompatibilidade entre ele e a defesa do consumidor em juízo.

3) reconhece a doutrina mais abalizada (ver, por todos, Rizzatto Nunes, 2011: 870-871), bem como a jurisprudência dominante do STJ (ver, por todos, REsp 1286577/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, terceira turma, julgado em 17/09/2013, DJe 23/09/2013) pela impossibilidade de haver intervenção de terceiros nas ações de consumo, estribada no que dispõe o art. 88 do CDC. Não vou me alongar pelo assunto, já exaustivamente discutido, mas o fato é que o incidente da desconsideração no novo CPC tem natureza jurídica de intervenção de terceiros, e a conclusão é óbvia.

Considerações finais.
Propus-me, nessas poucas linhas, a advogar a tese de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica não deve ser aplicado às ações de consumo, e acredito ter logrado êxito.

A defesa do consumidor em juízo se faz conforme as regras, normas e princípios próprios do Código de Defesa do Consumidor, aplicando-se, subsidiariamente, o Código de Processo Civil apenas no que não for com eles incompatível.

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica contemplado no novo CPC é incompatível com a defesa do consumidor, pelas diversas razões dantes expostas, e essa incompatibilidade faz com que ele não possa ser aplicado nos processos em que se discute uma relação de consumo e que tenha fundamento no Código de Defesa do Consumidor.

Bibliografia
SALES, Fernando Augusto de Vita Borges. 2015.a. Estudo comparativo do CPC de 1973 com o CPC de 2015. São Paulo: Rideel.

SALES, Fernando Augusto de Vita Borges. 2015.b. Súmulas do TST comentadas. São Paulo: LTr.

SALES, Fernando Augusto de Vita Borges, e MENDES, Marcel Kléber. 2015. Direito do trabalho de A a Z. São Paulo: Saraiva, 2ª edição.

NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. 2011. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 6ª edição.

Fonte: Jus Navegandi

Fernando Augusto Sales

Advogado em São Paulo. Mestre em Direito. Professor da Universidade Paulista - UNIP, da Universidade Cidade de São Paulo - UNICID, da Faculdade São Bernardo - FASB e do Complexo de Ensino Andreucci Proordem. Autor dos livros Direito do Trabalho de A a Z, pela Editora Saraiva, Súmulas do TST comentadas, pela Editora LTr, Estudo comparativo do CPC de 1973 com o CPC de 2015, Comentários à Lei do Mandado de Segurança e Ética para concursos e OAB, pela Editora Rideel, entre outros.

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