Nota fiscal carioca para sociedades de advogados

Alaim Rodrigues Neto

 

A emissão da Nota Fiscal Carioca deve ser facultativa para as sociedades de advogados.

As sociedades de advogados, por serem sociedades uniprofissionais, possuem tributação diferenciada no que se refere ao Imposto Sobre Serviços (“ISS”) e pagam esse imposto não por meio da aplicação de uma alíquota sobre o preço do serviço prestado, mas sim por meio da aplicação de um valor fixo, com base no número de advogados habilitados.

Essa tributação diferenciada se justifica pelo fato de os serviços de advocacia decorrerem do trabalho do próprio advogado, com responsabilidade pessoal e de forma não mercantil[1]. Nesses casos, o preço do serviço prestado de forma autônoma equivale à sua remuneração. E como a remuneração do advogado já é tributada pelo Imposto de Renda, de competência da União Federal, o ISS, de competência municipal, não pode incidir sobre esses mesmos valores.

 

O Código Tributário Nacional (“CTN”) sempre esteve atento a essa situação peculiar e desde sua redação original dispôs expressamente sobre essa tributação diferenciada de ISS das sociedades uniprofissionais[2][3]. Pouco tempo depois, as dúvidas sobre a legitimidade dessa exceção para as sociedades uniprofissionais foram afastadas pelo Decreto-Lei nº 406/1968[4]e por outras leis complementares.

 

Vale ressaltar que essas leis já foram consideradas compatíveis com a Constituição Federal de 1988 e, mais do que isso, que a tributação de ISS diferenciada para sociedades uniprofissionais não representa redução de base de cálculo ou isenção. O posicionamento da mais alta Corte Judicial do País, favorável aos contribuintes[5] e reiterado pelas decisões proferidas por outros Tribunais[6], deveria ter colocado um ponto final da discussão e arrefecido o ímpeto arrecadador dos municípios.

 

Infelizmente isso não aconteceu na “Cidade Maravilha Purgatório da Beleza e do Caos”. Por duas vezes – nos idos de 1993 e 2003[7] –, o Município do Rio de Janeiro tentou burlar esse entendimento, passando a cobrar o ISS dessas sociedades não mais com base em valores fixos, mas sim de acordo com a sua movimentação econômica (ou total do valor dos serviços prestados no mês). Ambas tentativas foram frustradas[8] e o Município do Rio de Janeiro teve que (re)fazer as adequações necessárias na sua legislação.

 

A situação se tornou ainda mais complexa com a criação da Nota Fiscal Carioca, por meio da Lei nº 5.098/2009 (“LNFS-e”) e do Decreto nº 32.250/2010 – que, aliás, é legislação não incorporada à Lei nº 691/1984 (Código Tributário Municipal Carioca – “ CTMRJ”) nem ao Decreto nº 10.514/1991 (Regulamento do Imposto Sobre Serviços – “RISS/1991”). E a obrigatoriedade de emissão de documento fiscal em meio eletrônico trouxe diversas outras mudanças a reboque.

 

Nesse ambiente de extreme makeover legislativo uma dúvida vem à tona: as sociedades de advogados, por serem tributadas de maneira diferenciada – por valores fixos e dissociados da sua movimentação econômica –, estão obrigadas a emitir a Nota Fiscal Carioca? Essa pergunta é pertinente principalmente porque as multas nos casos de não emissão de documento fiscal eletrônico são pesadas[9]. A resposta é negativa, ou seja, a adesão é facultativa. Mas isso é tão fácil assim de se enxergar.

De fato, a LNFS-e dispõe sobre aspectos gerais da Nota Fiscal Carioca e sobre a sistemática de concessão de créditos para fomento da adesão aos contribuintes, delegando toda a parte prática para o regulamento, o que foi feito principalmente pelo Decreto nº 32.250/2010 e pela Resolução SMF nº 2.617/2010. O mesmo ocorre com o CTMRJ, delegando esse trabalho para o RISS/1991.

Nesses regulamentos, todos os contribuintes de ISS são obrigados a emitir a nota fiscal eletrônica e a se adequarem ao novo sistema, com poucas exceções – sendo que a sociedade de advogados não consta de forma expressa. Há também possibilidade de sinalizar que a tributação é fixa no momento da emissão da nota fiscal eletrônica e a previsão dos serviços de advocacia no código de serviço[10].

 

Com base na análise superficial e míope da legislação, poder-se-ia pensar num primeiro momento que as sociedades de advogados estariam sim obrigadas a emitir a Nota Fiscal Carioca a cada prestação de serviço e promoverem todas as demais adequações ao novo sistema eletrônico.

 

Entretanto, numa interpretação histórica e teleológica da legislação, a conclusão a que se chega é totalmente diferente – e bem mais coerente com a realidade da tributação desse tipo de sociedade. As sociedades de advogados não podem sucumbir por medo. Até porque a adesão e manutenção desse tipo específico de contribuinte no sistema da Nota Fiscal Carioca são complexas e elevam o custo da prestação de serviço, indo de encontro ao espírito de simplificar a tributação, desestimulando a economia local.

 

Ora, sendo as sociedades de advogados tributadas por meio de um valor fixo de acordo com o número de profissionais habilitados, o valor dos serviços por elas prestados ao longo do período de apuração torna-se irrelevante. Seja funcionado em plena capacidade, seja com sérias dificuldades, o cálculo do valor devido pela sociedade de advogados é facilmente estimável, com baixas chances de erros gritantes.

 

Por isso, o RISS/1991[11] desde os primórdios optou por descomplicar, dispensando as sociedades uniprofissionais da obrigatoriedade da emissão de notas fiscais e da escrituração de livros fiscais mais complexos (no caso exigia-se apenas a escrituração do Livro de Apuração do ISS Fixo Mensal e o Registro de Utilização de Documentos Fiscais e Termos de Ocorrências – “RUDFTO”). Nada mais lógico, eis que não há objetivo prático em exigir a emissão de notas fiscais por cada prestação de serviço, a escrituração de livros mais complexos vinculados à movimentação econômica e o atendimento de diversas outras burocracias, se o pagamento do ISS independe desses valores.

 

O problema é que a atual redação desses dispositivos legais não reflete essa intenção. E isso ocorre por conta da grande confusão causada pelas frustradas tentativas do Município do Rio de Janeiro de alterar a sistemática de tributação[12]. As leis que buscaram “alavancar” os cofres cariocas e tributar de forme indevida as sociedades uniprofissionais com base na movimentação econômica foram atentas tanto na redação de dispositivos relativos ao cumprimento de obrigações principais (pagamento do imposto) como nos dispositivos relativos ao cumprimento de obrigações acessórias (escrituração de livros fiscais e comunicação ao Fisco). A mesma sorte não tiveram as leis que buscaram “desfazer” essas alterações, causando o efeito da terra arrasada. O que temos hoje é uma colcha de retalhos, com leis lacunosas e remendadas[13].

 

Isso importa dizer que a mens legislatoris (intenção do legislador) de hoje é a mesma dos primórdios do RISS/1991 e das retificações necessárias para reafirmar a legalidade da sistemática de tributação diferenciada das sociedades uniprofissionais, o que inclui a dispensa de emissão de nota fiscal e de livros fiscais mais complexos. E a entrada em vigor da LNFS-e em nada conflita com essa intenção.

 

Mesmo na legislação atualmente em vigor existem indicações que corroboram o entendimento de que as sociedades de advogados estão dispensadas da emissão da Nota Fiscal Carioca. É possível citar o fato de (i) os autônomos – que possuem uma sistemática de tributação similar – estarem expressamente dispensados dessa obrigação[14]; (ii) o ISS devido pelas sociedades uniprofissionais não ser calculado pelo sistema[15]; (iii) todos os regimes de estimativa terem sido cancelados, exceto os referentes às sociedades uniprofissionais[16]; e (iv) os contribuintes que recolhem ISS em valores fixos não terem direito a crédito[17].

Alguns poderiam tentar contrapor esse entendimento invocando que a legislação não dispensa os contribuintes isentos da emissão da Nota Fiscal Carioca; se não há a dispensa daqueles que não pagam ISS, não haveria porque dispensar a sociedade de advogados. Essa alegação não subsiste porque as operações isentas são operações que a princípio estariam sujeitas à incidência de ISS – nas quais há a ocorrência do fato gerador –, mas que por conveniência do Fisco foram dispensadas do pagamento do tributo, o que importa dizer que o Fisco pode optar por deixar de conceder essa isenção a qualquer momento. Nos casos de isenção, o monitoramento pelo Fisco, ainda que não haja pagamento do ISS, é de extrema valia para a análise do perfil das operações e para a tomada de decisão quanto à manutenção ou não de determinada isenção.

 

Já com a tributação das sociedades uniprofissionais isso não acontece. Por mais que recolham o ISS, sua forma de cálculo do tributo em razão da sua essência sempre será diferenciada, por meio de valores fixos, sendo que tal característica de tributação não estará sujeita a alteração ao bel prazer do Fisco, por não se tratar de norma de isenção.

Outros poderiam invocar também a necessidade de transparência e acesso à fiscalização (“quem não deve, não teme”). Todavia, a defesa dessa posição não significa estimular a criação de uma “caixa preta” ou a omissão de dados ao Fisco. A dispensa da emissão da Nota Fiscal Carioca nesses casos significa manter com razoabilidade a simplicidade do registro das operações de serviços prestados de forma simples (= adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). Na verdade, estar-se-á estimulando o desenvolvimento dessas atividades, sem onerá-las desnecessariamente. De qualquer forma, em casos desvios de conduta, o Fisco sempre poderá se valer de documentos contábeis e do arbitramento, previstos no CTMRJ, para cobrar valores eventualmente recolhidos a menor.

 

É preciso deixar claro que essas breves ponderações são feitas à luz da confusão legislativa, num tom de alerta e não de enfrentamento. Até porque há no atual cenário tributário carioca uma jamais vista aproximação entre Fisco e contribuinte, por meio do diálogo verdadeiro entre a Secretaria Municipal de Fazenda, a Câmara dos Vereadores, a Procuradoria Municipal e a Ordem dos Advogados (por meio de sua Comissão de Assuntos Tributários)[18]. A discussão sobre a dispensa da emissão da Nota Fiscal Carioca pelas sociedades de advogados é uma prova contundente de que a legislação do ISS no Município do Rio de Janeiro como um todo precisa ser analisada e consolidada, não podendo estar fora da pauta.

 

Portanto, a emissão da Nota Fiscal Carioca deve ser facultativa para as sociedades de advogados; devem aderir ao sistema eletrônico aqueles contribuintes que quiserem se beneficiar de alguns incentivos concedidos pelo Município do Rio de Janeiro. Todavia, a regra precisa ser clara para que as sociedades de advogados estabelecidas no Município do Rio de Janeiro saibam como agir, afastando de vez esse clima de temor e incerteza. Afinal, é preciso fazer jus à ode: “cariocas são diretos (…) cariocas são tão claros”.

 

Notas

[1] Vide artigo 16 da Lei nº 8.906/1994.

[2] Vide artigo 72 do CTN, revogado pelo Decreto-lei nº 406/1968.

[3] Afinal, os serviços prestados pelos advogados têm natureza autônoma e essa característica não é perdida quando são prestados sob a forma de sociedades uniprofissionais.

[4] Vide artigo 9º, parágrafo 1º e 3º do Decreto-lei nº 406/1968.

[5] Vide RE 236.604-7/PR.

[6] Vide AgRg no AgRg no AgRg no RESP nº 1.013.002/RS e EREsp nº 724.684/RJ, a título exemplificativo.

[7] Por meio, principalmente, da Lei nº 2.080/1993 e do Decreto nº 12.610/1993, bem como da Lei nº 3.691/2003 e do Decreto nº 23.753/2003.

[8] Vide RE nº 296.035-7/RJ.

[9] Vide artigo 51, inciso II, item 1, alínea b e item 7,  da Lei nº 5.098/2009.

[10] Vide artigo 8º, inciso III, alíneas a, b e g da Resolução SMF nº 2.617/2010. Vide também Anexo 2, item 17.14.01, que prevê expressamente os serviços de advocacia.

[11] Vide artigo 16, inciso II e inciso VII parágrafos 4º e 8º, do RISS/RJ.

[12] Notadamente a Lei nº 2.080/1993, o Decreto nº 12.610/1993, a Lei nº 3.691/2003 e o Decreto nº 23.753/2003.

[13] Um exemplo disso é o artigo 160 do RISS/1991 que ainda permanece com a redação dada pela Lei nº 23.753/2003. Esse dispositivo que revogou o inciso VII e o parágrafo 4º, que determinavam que as sociedades uniprofissionais de atividades regulamentadas deveriam obrigatoriamente escriturar o LAISS-FM (e por conseguinte que doravante deveriam escriturar o LAISS com base na sua movimentação econômica).

[14] Vide artigo 2º, inciso I, parágrafo 2º, do Decreto 32.250/2010.

[15] Vide artigo 22, parágrafo 3º, da Resolução SMF nº 2.617/2010.

[16] Vide artigo 31, inciso I, da Resolução SMF nº 2.617/2010.

[17] Vide artigo 4º, parágrafo 4º, inciso III, da Lei nº 5.089/2009.

[18] Uma das provas dessa tendência é o fato de o projeto de Código de Defesa do Contribuinte ter sido reformulado e ter voltado a tramitar, dessa vez com muito mais legitimidade e força.

Alaim Rodrigues Neto

Advogado, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - Faculdade Nacional de Direito (UFRJ/FND) e especialista em Direito Tributário, inscrito na OAB/RJ desde 2003.

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