Afinal, isenções tributárias são “grandezas negativas”?

Sergio André Rocha

Este texto marca a minha chegada, junto com o amigo e companheiro no Departamento de Direito do Estado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Marcus Lívio Gomes, à coluna Justiça Tributária. Será um prazer dividir este espaço com Raul Haidar e Fernando Facury Scaff às segundas-feiras.

Para esta contribuição inaugural, resolvi me aproveitar de um dos temas mais debatidos no Direito Tributário em 2023, e olha que a concorrência este ano está grande. Tratarei de um aspecto relacionado à controvérsia a respeito do tratamento, para fins de apuração do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), das subvenções fiscais concedidas pelos estados.

Meu objetivo, aqui, não será analisar esta matéria em todas as suas diferentes faces. Trata-se de um assunto poliédrico que pode ser examinado sob diversos pontos de vista. A questão que quero trazer é relacionada, especificamente, à natureza jurídica das isenções fiscais — e apenas das isenções, de modo que não cuidarei de outras formas de concessão de benefícios fiscais, como as reduções de alíquotas e de base de cálculo.

De fato, uma parte do debate sobre as subvenções, nessa controvérsia sob análise pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), acabou sendo pautado por aspectos contábeis, os quais, embora certamente relevantes, a meu ver não deveriam ser o marco para a discussão a respeito da natureza jurídica dos institutos sob exame. Por outro lado, um assunto que poderia ter tido um papel mais central, e aparentemente não teve, refere-se exatamente à natureza das isenções a partir do Código Tributário Nacional (CTN), considerando algumas das premissas que foram estabelecidas para diferenciar as subvenções concedidas via isenções daquelas instrumentalizadas por créditos presumidos.

Um aspecto que ganhou repercussão em relação a esta matéria foi a classificação diferenciadora proposta entre “grandezas positivas”, categoria na qual se encontrariam qualificados os créditos presumidos, que geram um reflexo positivo no resultado da pessoa jurídica mediante o reconhecimento de uma receita; e “grandezas negativas”, tipo no qual estariam qualificadas as isenções, que seriam uma abstenção de incidência e, consequentemente, não gerariam impactos no resultado.

Como mencionei, buscou-se colocar em xeque esta classificação a partir de um referencial contábil, tentando-se demonstrar que haveria base na contabilidade para justificar o reconhecimento de um impacto no resultado também no caso das isenções. Entretanto, parece-me que a questão de fundo é jurídica e deveria ser estabelecida a partir do CTN.

Por estranho que possa parecer, embora o CTN caminhe para completar 60 anos, e as isenções tributárias estejam longe de ser um fenômeno atípico no Brasil, ainda hoje há celeumas doutrinárias e um silêncio eloquente do Poder Judiciário na definição da natureza jurídica das isenções, que vêm tratadas no Código a partir de seu artigo 175 como formas de “exclusão do crédito tributário”.

Se voltarmos no tempo e buscarmos entender a “exclusão do crédito tributário” de uma perspectiva histórica, notaremos que a visão cristalizada no CTN foi o entendimento de Rubens Gomes de Souza. Já em seu relatório sobre o projeto do Código, o professor da USP consignou que “o artigo 140 enumera as causas que excluem a exigibilidade do crédito tributário sem entretanto importar na extinção daquele, nem, por consequência, na da obrigação correspondente. São a isenção e a anistia” [1]. Note-se que esse artigo 140 tinha redação equivalente ao atual artigo 175 do CTN.

Segundo este entendimento, nos casos de isenção o fato gerador do tributo respectivo se manteria íntegro, nasceria a obrigação tributária, fazendo surgir a relação jurídica entre o ente tributante e o sujeito passivo, e a norma isentiva atuaria diretamente sobre o crédito tributário, excluindo a sua exigibilidade. Daí ser tão comum em autores que escreveram contemporaneamente e nas primeiras décadas que seguiram à edição do CTN a referência às isenções como espécie de “dispensa legal do pagamento do tributo”.

Contudo, essa visão não reinou sem questionamento por muito tempo. Logo surgiu uma teoria concorrente, que com o tempo passou a ser defendida por diversos autores e autoras, no sentido de que a norma isentiva atuaria sobre a própria norma de incidência, reduzindo o seu escopo, objetivo ou subjetivo. Consequentemente, a concessão de uma isenção resultaria na inexistência de fato gerador e, sendo assim, impediria o próprio nascimento da obrigação tributária.

É interessante observamos, a esta altura, que não existe uma ontologia das isenções. Isenção é um conceito normativo que só pode ser definido a partir dos limites do próprio ordenamento jurídico. Em outras palavras, uma isenção é aquilo que o CTN estabeleceu. Se o Código andou mal, ou está ultrapassado, ou deveria ter trazido regulação diferente é um outro debate. De fato, parece-me que já passou a hora de uma revisão do CTN, mas isso é tema para uma outra coluna. Contudo, não nos parece que a definição das isenções fiscais deva ser construída a partir da filosofia ou da teoria geral do Direito. Logo, é no CTN e com base nele que essa definição deve ser construída.

Provavelmente por reconhecer que esta é uma questão que deve ser solucionada a partir do CTN, a doutrina que defende a segunda corrente, que postula que a norma de isenção impede que nasça a própria obrigação tributária, se apressou em estabelecer a premissa de que o artigo 175 do Código conviveria com ambas as teorias. Segundo este entendimento, a expressão “exclusão do crédito tributário” poderia ser interpretada tanto como “exclusão da obrigação e, consequentemente, impedimento do surgimento do crédito tributário respectivo”, ou como “exclusão do próprio crédito tributário, mantendo-se íntegra a obrigação subjacente”.

Não nos parece que esta seja a leitura mais correta do CTN. De fato, se partirmos da dicotomia entre obrigação e crédito tributário criada pelo Código, parece uma interpretação um tanto forçada imaginar que a “exclusão do crédito tributário” atuaria diretamente sobre o fato gerador, impedindo o surgimento da própria obrigação tributária. Entendemos que o CTN refletiu a visão de seu elaborador primeiro, Rubens Gomes de Souza, no sentido de que a regra de isenção não mutila a regra de incidência tributária de nenhuma maneira, atuando apenas sobre a pretensão do ente tributante e eliminando a exigibilidade do direito ao tributo.

Consciente ou inconscientemente, a doutrina que sustenta a segunda corrente que apresentamos acima parece querer lidar com uma outra questão complexa, que tem relação com o tema de que ora nos ocupamos, qual seja a aplicação da regra de anterioridade nos casos de revogação de uma isenção.

Com efeito, sob a luz da primeira corrente — que nos parece ter sido adotada pelo CTN —, uma vez que a isenção jamais teria afastado a ocorrência do fato gerador e o nascimento da obrigação tributária, agindo diretamente sobre a exigibilidade do crédito tributário, haveria espaço para se sustentar que a revogação de uma isenção não geraria a criação ou majoração de tributo. A seu turno, de acordo com a segunda linha teórica que apresentamos, não haveria dúvidas quanto ao fato de que a revogação de uma isenção resultaria em um alargamento do alcance da regra de incidência tributária.

Entretanto, cremos que esse debate reforça a leitura que nos parece mais correta do CTN. De fato, não podemos esquecer que o Código lidou com esta questão no inciso III do seu artigo 104, ao estabelecer que “entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda […] que extinguem ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto no artigo 178”.

Portanto, antecipando que, segundo a posição adotada pelo Código, a questão da revogação de uma regra isentiva geraria uma quebra nas expectativas do contribuinte, o próprio CTN previu que a regra de anterioridade seria aplicável neste caso. Contudo, e este sempre foi o grande ponto de discussão em relação a este dispositivo, o caput do artigo 104 faz referência apenas a tributos sobre o patrimônio ou a renda, o que poderia deixar de fora do seu alcance diversos tributos relevantes em termos arrecadatórios.

De toda forma, por mais que essa seja uma questão relevante, não podemos perder de vistas que na década de 1960, sob outra ordem constitucional, os debates sobre a proteção da confiança dos contribuintes nos atos do poder público ainda eram rudimentares. Portanto, considerando os avanços nesses mais de cinquenta anos não cremos que a proteção dos contribuintes contra a surpresa causada por um novo dever de desembolso de caixa esteja fora do alcance da regra da anterioridade, mesmo que seja adotada a primeira corrente acima, que nos parece a mais adequada.

O mais interessante é que, passados tantos anos, até agora não há uma tomada de posição explícita dos tribunais superiores sobre este tema, cuja relevância é evidente. A discussão atual sobre a questão do tratamento dos benefícios fiscais de ICMS na apuração do IRPJ e da CSLL poderia ser uma ótima oportunidade para termos uma interpretação clara do Poder Judiciário sobre essa matéria.

[1] MINISTÉRIO DA FAZENDA. Relatório apresentado pelo Prof. Rubens Gomes de Souza, relator geral, e aprovado pela Comissão Especial nomeada pelo Ministro da Fazenda para elaborar o Projeto de Código Tributário Nacional. Rio de Janeiro: Ministério da Fazenda, 1954.

Sergio André Rocha

Professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), livre-docente em Direito Tributário pela USP (Universidade de São Paulo), diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), advogado e parecerista.

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