A ‘praça do remetente’ para IPI e o veto ao PL 2.110/19: entre fatos e versões

Carlos Augusto Daniel Neto

Um dos brocardos do Direito Tributário diz que “imposto bom é imposto velho”, ao sugerir que a permanência longeva de um tributo azeita a relação entre fisco e contribuinte, eliminando controvérsias a seu respeito e custos de ambos. Não obstante, no Brasil essa máxima encontrou seu cisne negro.

O IPI é antiguíssimo — mais velho até que o próprio CTN —, com seu regime oriundo da Lei nº 4.502/64, ainda como Imposto sobre Consumo, até ser rebatizado pela EC nº 18/65. Nele já havia a previsão de uma regra antielisiva específica voltada a estabelecer um valor tributável mínimo (VTM), para as operações ocorridas entre firmas interdependentes (art. 42 da Lei nº 4.502/64).

Esse regime de VTM contempla, principalmente, quatro parâmetros ou métodos de apuração: i) comparação com o preço das transações no mercado atacadista da praça do remetente; ii) análise do preço de revenda ao consumidor, considerando o VTM como 90% deste; e iii) composição de uma cesta de custos de fabricação e despesas empresariais, acrescido de lucro (este acrescido posteriormente, com o DL nº 1.593/77); e iv) arbitramento pelo fisco, nos casos previstos no art. 17 da Lei nº 4.502/64.

Houve, desde o início, discussões a respeito do alcance da “praça do remetente”[1], que foram objeto de diversos julgamentos no âmbito do CARF. Não obstante, o tema ganhou um capítulo recente, com a aprovação do Projeto de Lei n° 2.110/2019 (PL), que incluía o art. 15-A à Lei nº 4.502/64, para esclarecer definitivamente que “praça” seria “a cidade onde está o estabelecimento do remetente”.

A alvissareira novidade esclarecedora da legislação, não obstante, foi logo sucedida pelo veto presidencial, por meio da Mensagem de Veto nº 498/2021, pelos seguintes fundamentos do Ministério da Economia:

i) a proposição geraria insegurança jurídica, haja vista que o termo “praça” receberia interpretação diferente da 3ª CSRF que, em decisão de 2019, entendeu pela possibilidade de abranger também regiões metropolitanas”;

ii) possibilitaria que as empresas se utilizassem de artifícios para reduzir a incidência do IPI e esvaziassem o mecanismo antielisivo que estabelece o VTM;

iii) que geraria o risco de novos litígios em relação a casos já julgados, sob o argumento da nova lei ser interpretativa e, portanto, retroativa;

O tema, que a priori não teria pertinência com as questões abordadas por essa coluna, atraiu nossa atenção por se fundar em um suposto entendimento consolidado no CARF. Em razão disso, cumpre-nos investigar se as premissas fáticas do referido veto subsistem.

Historicamente, a primeira manifestação oficial sobre o alcance do dispositivo foi no PN CST nº 44/81, onde se estabeleceu que a “praça do remetente” deveria ser entendida como “cidade” e “localidade”, o que pacificou o entendimento pelo alcance municipal da comparação. Posteriormente, com a SCI Cosit nº 08/2012, o fisco consignou que na hipótese de haver um único distribuidor na praça do remetente, interdependente, o VTM deveria ser o próprio preço praticado por esse distribuidor.

Sobre essa consulta, deve-se esclarecer, o cerne é se deveria haver um “número mínimo de ofertantes” para qualificar um “mercado atacadista”, ou se bastaria um único distribuidor, invocando o PN CST nº 44/1981 em seu fundamento. O que essa SCI fez, em rigor, foi tentar ressuscitar o revogado art. 23, §6º do RIPI/72, que desapareceu após a edição do RIPI/79, e tratava sobre a hipótese de único comprador do produto, dando um bypass na legislação.

E como decidia o CARF sobre esse tema?

Há um excelente livro, coordenado por Eurico de Santi, Lucilene Prado e Maria Helena Zockun[2], no qual se apontou que em todos os casos julgados pelo órgão entre 1988 e 2013, o conceito de “praça do remetente” foi entendido como “município”, até o advento do acórdão nº 3201-001.204[3] que, por voto de qualidade, entendeu que “praça” abrangeria até onde estivesse o distribuidor interdependente, na ausência de um mercado atacadista local. No mesmo sentido, o acórdão nº 3101-001.806[4], relativo ao mesmo contribuinte, também por qualidade, invocou a SCI nº 08/2012 como fundamento para alcançar o preço praticado pelo distribuidor fora do município do remetente.

A partir de 2013, o entendimento sobre a definição de “praça do remetente”, que vigorou por quase cinquenta anos, se tornou altamente controverso no âmbito do CARF. Não se trata, entretanto, de uma reflexão por “combustão espontânea”, mas fortemente motivada na SCI nº 08/2012, que passou ser invocada nas autuações fiscais e nos julgamentos. Ao lado desse argumento, surgiram razões relacionadas a interpretar a regra antielisiva conforme a “atual realidade de economia globalizada”[5].

Não obstante, esse novo entendimento não foi acatado pacificamente em todas as turmas, a exemplo dos acórdãos nº 3402-005.599[6] e 3301-005.609[7], que seguiram sustentando a limitação ao conceito de praça do remetente.

Em 2019, foram proferidas as duas decisões de mérito a que se referiu a Mensagem de Veto nº 458/2021, de nº 9303-008.545[8] e 9303-009.824[9], ambas definidas por meio do voto de qualidade e com o voto desempate em sentido de favorecer a posição fiscal. Neles se afirmou expressamente que “a jurisprudência do CARF vem mudando, ampliando o conceito de praça para além do Município”, na esteira do que foi demonstrado acima, e sustentando uma “interpretação contextualizada do conceito de praça”.

Ora, o próprio voto invocado infirma os fundamentos do veto presidencial!

Se a jurisprudência administrativa tinha se mantido estável e coerente desde a edição da Lei nº 4.502/64, foi o surgimento de precedentes dissonantes em 2013, sem qualquer alteração legislativa, que instaurou um estado de insegurança jurídica para os contribuintes, que teve o seu ápice em 2019, com os acórdãos proferidos pela CSRF, ratificando esse rompimento jurisprudencial. Ou seja, as razões do veto pegam o próprio totem da insegurança jurídica, aplicam-lhe uma improvisada demão de verniz retórico para vendê-lo como segurança e previsibilidade.

O PL veio exatamente estancar a situação de insegurança que havia surgido, buscando esclarecer definitivamente o sentido do termo “praça do remetente”, reestabelecendo a tranquilidade semântica existente até 2013. Aqui há uma clara situação de legislative overruling, no qual o Parlamento busca, pela via legal, reverter o entendimento tomado por um tribunal, estabelecendo um comando em sentido contrário[10], com a peculiaridade de que não se tratava de um campo lacunoso, mas de matéria regulada, na qual a divergência foi a respeito da interpretação dada pelo CARF nos últimos anos.

O fenômeno, em si, não deveria causar espécie a ninguém, sendo ínsito à relação entre quem legisla e quem julga. No Brasil, isso já ocorreu, por exemplo, em relação à progressividade do IPTU, com a EC nº 29/2003, e com a autorização para a prática da vaquejada pela EC nº 96/2017, após a decisão do STF na ADI nº 4983 proibir tal prática[11].

O que gera perplexidade é se invocar como justifica do veto a uma tentativa de legislative overruling uma decisão dividida da 3ª CSRF do Carf, por diversas razões:

Em primeiro lugar, diferentemente do STF, o Carf não tem a última palavra sobre a interpretação de questão alguma, podendo ela ser levada – e modificada – no Judiciário;
Em segundo lugar, institucionalmente cabe ao Carf aplicar a lei posta, e não ser determinante para a criação ou não de novas leis, caso contrário, nunca poderia ser editada legislação que afrontasse o entendimento desse órgão; e
Em terceiro lugar, trata-se de uma decisão que surgiu exatamente no contexto de insegurança fomentado pelo próprio Carf e que a lei pretendeu eliminar e que, portanto, não se presta a ser parâmetro do entendimento consolidado historicamente;
Além disso, deve-se lembrar que as decisões foram por voto de qualidade, sistemática alterada pelo art. 19-E da Lei nº 10.522/02, por meio de lei sancionada nesse mesmo governo, e cuja “regulamentação” (de escandalosa ilegalidade) foi editada pela Portaria ME nº 260/2020. Ou seja, caso os mesmos julgamentos fossem realizados hoje, o empate equivaleria a resultado favorável ao contribuinte. Desse modo, precedentes formados por meio do voto de qualidade se tornaram anacrônicos, visto que à luz da nova regra teriam um resultado diametralmente oposto.

Inclusive, inquieta-nos saber que o veto preferiu adotar um entendimento anacrônico dessa matéria, na 3ª CSRF, e desconsiderou que 100% dos acórdãos proferidos nos tribunais judiciais (com competência para reformar as decisões do Carf) tem entendido que o conceito de “praça” é equivalente a “município”, ao julgar questões da Lei do Cheque, onde o termo também é utilizado[12].

Quanto à acusação de que o PL esvaziaria o mecanismo antielisivo que estabelece o VTM, trata-se de uma afirmação que consegue ser triplamente equivocada.

Em primeiro lugar, caso inexista mercado atacadista no município do remetente, não se esvazia a sistemática, pois a própria legislação estabelece subsidiariamente (art. 196, parágrafo único, do RIPI/2010) as bases de cálculo que deverão ser consideradas nessas hipóteses. Testemos o sentido contrário: caso “praça” fosse interpretado como “qualquer lugar onde esteja localizado um atacadista interdependente, seja no âmbito regional ou até nacional”, quando seria aplicável a regra subsidiária para as hipóteses de inexistência de mercado atacadista na praça? Essa interpretação, sim, faz letra morta de uma parte do regime de VTM.

Em segundo lugar, enquanto regra específica antielisiva, a sistemática de VTM estabelece uma presunção relativamente à base de cálculo do tributo, vinculando tanto o contribuinte quanto à fiscalização. Em razão desse alto grau de determinação e direcionamento a situações bastante específicas, essas normas não são passíveis de uma interpretação que ultrapasse a sua literalidade, visando ampliar ou restringir o seu alcance[13]. Tanto assim é, que muitas vezes as normas antielisivas específicas podem se tornar normas de cobertura ou plataformas para a estruturação de outras formas de planejamento tributário, situação amplamente estudada hoje na doutrina tributária internacional[14] – cabe ao legislador, e não ao intérprete, ajustar a regra posta.

Por fim, em terceiro lugar, o PL nº 2.110/2019 não geraria, para frente, a redução da arrecadação do IPI, pois as principais empresas que discutem essa questão foram abarcadas pela equiparação do atacadista a estabelecimento industrial, por força do Decreto nº 8.393/2015, estabelecendo uma nova incidência desse imposto na sua revenda, o que elimina a possibilidade de redução.

At last, but not least, argumenta-se o risco de novos litígios em relação a casos já julgados, sob o argumento da lei ser interpretativa e, portanto, retroativa.

Em primeiro lugar, esse risco de litígio existe independente do PL, tendo em vista a possibilidade das decisões desfavoráveis do Carf serem levadas ao Judiciário – onde, como já vimos, há jurisprudência pacífica acerca do alcance semântico da expressão “praça”. Portanto, a chance de a matéria ser levada aos tribunais, gerando mais conflito e insegurança na matéria, independe da sanção ou veto da nova lei. Em verdade, ela decorre da indevida guinada jurisprudencial realizada pelo Carf e que o aludido PL tentou resolver.

Quanto ao seu caráter de lei interpretativa, apressamo-nos em adiantar que entendemos que ela teria, sim, essa natureza, por refletir a opção expressa do legislador por um conteúdo semântico que prevaleceu desde a criação da regra até o ano de 2013. Em razão disso, deveria ser aplicada retroativamente a todos os casos pendentes de julgamento judicial e administrativo, com base no art. 106, I, do CTN.

Em tempo, qual seria o problema em se criar lei interpretativa? O próprio STF já reconheceu, na ADIN nº 605-3/DF, que é “um instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada interpretação autêntica”, sem ofender a divisão funcional dos poderes. Novamente, causa estranheza, sim, o chefe do Poder Executivo invocar um precedente de um tribunal administrativo federal (órgão do Executivo), para vetar iniciativa do Legislativo de esclarecer o sentido de uma lei federal – seria mutatis mutandis o mesmo que vetar uma lei que contrariasse determinada instrução normativa, que reflete a interpretação da RFB.

Ademais, independente da aprovação da lei, a questão também gerará novos litígios, pois a PGFN poderia contestar judicialmente o caráter de lei interpretativa, como quanto ao art. 3º da LC nº 118 – oportunidade que o STF teria que analisar o alcance semântico da expressão “praça”, para verificar se houve inovação ou simples esclarecimento de sentido.

O art. 66, §1º da CF/88 estabelece o direito da Presidência de vetar, no todo ou em parte, projeto de lei, mas também lhe obriga a apresentar os “motivos do veto”, e eles devem gozar de referibilidade empírica, refletindo a realidade a que se referem. Evocando uma frase que se tornou bastante pertinente nos tempos atuais, “todos têm direito à própria opinião, mas não a seus próprios fatos”.

Se o PL n° 2.110/2019 é a vacina para sanar a matéria do VTM, as “razões” apresentadas pelo Ministério da Economia distorcem a realidade e lhe dão uma versão “alternativa”, colaborando para a manutenção da pandemia de insegurança tributária, de resto bem mais longeva que a da Covid-19.

[1] O tema já foi abordado nessa coluna pelo colunista Diego Diniz: https://www.conjur.com.br/2019-jan-16/direto-carf-aplicacao-valor-tributavel-minimo-ipi-validada-carf

[2] IPI e Valor Tributável Mínimo: Análise econômica, evolução histórica da legislação abstrata, da jurisprudência e da prática. São Paulo: Max Limonad, 2019.

[3] Redator designado Cons. Paulo Celani, j. 25/02/2013.

[4] Relator Cons. Rodrigo Mineiro, j. 24/02/2015.

[5] Declaração de voto no Acórdão nº 3201-003.444, j. 26/02/2018.

[6] Relator Cons. Diego Diniz, j. 26/9/2018.

[7] Redator Cons. Marcelo Costa D’Oliveira, j. 29/01/2019.

[8] Relator Cons. Rodrigo Pôssas, j. 14/05/2019. Neste acórdão, recomendamos a declaração de voto da Cons. Tatiana Migiyama, que minucia a jurisprudência administrativa e judicial sobre a matéria.

[9] Redator Cons. Andrada Canuto Natal, j. 10/12/2019.

[10] Nesse sentido, v. CORREIA NETO, Celso de Barros. Judicial review and legislative responses in tax matters: who has the last word?. Revista Jurídica, [S.l.], v. 3, n. 60, p. 726 – 751, jan. 2021.

[11] Idem, ibidem.

[12] IPI e Valor Tributável Mínimo: Análise econômica, evolução histórica da legislação abstrata, da jurisprudência e da prática. São Paulo: Max Limonad, 2019, p. 72.

[13] Sobre a interpretação de normas antielisivas, v. DANIEL NETO, Carlos Augusto; LAURENTIIS, Thais De. Normas Antielisivas e Segurança Jurídica: Análise da Jurisprudência do CARF sobre a Tributação na Segregação de Atividades Empresariais. Revista Direito Tributário Atual, n.42. ano 37. p. 188-213.

[14] Por todos, v. MOLINA, Pedro Herrera. Nuevas perspectivas sobre el fraude de ley en materia tributaria. Quincena Fiscal n. 13, 2003, p. 14.

Carlos Augusto Daniel Neto

Sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf e professor em cursos de pós-graduação.

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