A ilegitimidade das penalidades na valoração aduaneira

Thales Belchior, Leonardo Branco

Ultimamente, os atuantes na esfera aduaneira acompanham um incremento nas fiscalizações de valoração aduaneira assim como uma sofisticação da Receita Federal em relação ao procedimento de contestação do valor adotado. Se antes eram mais usuais os questionamentos sobre a inclusão ou não de rubricas mais claras no cômputo do valor aduaneiro (v.g. capatazia, royalties e os próprios tributos), hoje são costumeiros questionamentos sobre a aceitabilidade do preço de transação para fins de valoração e adoção de métodos substitutivos, assim como a inclusão de rubricas secundárias (v.g. Taxas CE Mercante), situação que faz com que o AVA-Gatt e seus ditames e princípios sejam cada vez mais acionados no dia a dia dessa relação.

O AVA-Gatt visa prevenir que (a) importadores ou exportadores erodam a base tributável, ilegitimamente transladem lucros e despesas ou pratiquem competição predatória pela redução excessiva de preços; e (b) que Autoridades Fiscais apurem um valor artificial para a operação com o objetivo de aumentar a exigência tributária direta ou indiretamente.

Para atingir esse objetivo e criar um ambiente seguro, previsível e cooperativo, o AVA-Gatt (a) vedou a sub-precificação na operação, criando mecanismos contra a omissão ou camuflagem dos valores; e (b) criou uma metodologia para definição do valor a ser adotado para tratamento aduaneiro pelas partes envolvidas, estabelecendo um procedimento em larga escala consensual em que cada parte contribuiria com suas informações e dados para que se chegasse num resultado justo e coerente.

Essa metodologia se inicia pela conceituação do “valor aduaneiro” (valor a ser considerado por ambas as partes na aplicação das normas jurídicas), englobando o valor a pagar pela mercadoria além (a) de adições obrigatórias quando não inclusas no valor da transação (v.g. comissões, embalagens, custo de embalar, materiais incorporados, descontos não usuais etc.); e (b) adições facultativas para os signatários (frete, aos gastos relativos ao carregamento, descarregamento e manuseio, associados ao transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação e o custo do seguro), vedando que os signatários estabelecessem a qualquer inclusão de qualquer item adicional (artigo 8º).

E prossegue pela fixação de que o valor da transação deve ser presumido como legítimo e aceitável até que provado irreal ou inadmissível à luz dos princípios de troca e tributação justa do Acordo, finalizando com a definição de formas para (a) validar o preço praticado objetivamente mediante a realização de testes de valor critério; e (b) para apurar o valor aduaneiro em substituição, caso tal valor se prove admissível.

Ao traduzir o artigo 8º do AVA-Gatt, ao optar pelo uso da expressão “gastos” e não “encargos” ou “cobrança” (que seria a tradução de “charges”) e “até o porto” e não “para o porto” (“to the port”), o legislador deu margem a interpretações arrojadas para inclusão de valores que jamais deveriam ser consignados como parte do valor aduaneiro como a capatazia interna e até mesmo as Taxas do CE Mercante.

Para piorar, o Brasil nunca se limitou a exigir os tributos aduaneiros sobre o “valor aduaneiro”. Tanto o IPI-Importação quanto ao ICMS-Importação possuem a base de cálculo inflada por outros tributos aduaneiros (esse último, então, inflado também por despesas aduaneiras) e ao instituir o PIS/Cofins-Importação por meio da Lei nº 10.865/04, foi exigida a inclusão do valor das próprias contribuições e do ICMS, o que se manteve por quase uma década até a declaração da inconstitucionalidade pelo STF.

Como se não bastasse, questiona-se diuturnamente a aceitabilidade do preço de transação para fins de valoração aduaneira mediante a comparação com o de outras importações realizadas por importadores brasileiros diversos com a mesma mercadoria (ou similares) na mesma época, usualmente fixando a média de preços como “o padrão do mercado” de modo a exigir que o importador justifique a diferença.

Essa exigência costuma pegar os importadores no contrapé, já que os dados de outras importações não são franqueados publicamente. Embora a regulamentação aduaneira permita que o importador solicite acesso, é raríssimo que sejam fornecidos previamente a uma fiscalização, sendo invocada a alegação de “sigilo fiscal” e mesmo durante uma fiscalização nem sempre são abertos a contento, o que dificulta a avaliação da higidez da comparação. Não é raro que o Primeiro Método seja rejeitado pelo grande rigor probatório imposto na aceitação das nuances da operação e das práticas comerciais usuais.

Assim, a valoração aduaneira é marcada pelo (a) emprego de expressões com alto grau de indeterminação; (b) acesso limitado dos importadores a dados essenciais; (c) dificuldade na comprovação da aceitabilidade do preço, seja pela complexidade dos testes ou pelo subjetividade relativa às especificidades de cada operação.

Diante dessa dificuldade e insegurança, o AVA-Gatt determinou em seus artigos 11.1 e 11.2 que “com relação à determinação do valor aduaneiro, a legislação de cada Parte disporá quanto ao direito a recurso, sem sujeição a penalidades por parte do importador ou por qualquer outra pessoa responsável pelo pagamento dos direitos aduaneiros” e que “o direito a recurso de primeira instância, sem imposição de penalidades poderá ser exercido perante um órgão da administração aduaneira ou perante um órgão independente. Todavia, a legislação de cada Parte disporá quanto ao direito a recurso a instância judiciária sem imposição de penalidades”.

A Nota Explicativa nº 2 ao Artigo 11 esclarece que “‘Sem sujeição a penalidades’ significa que o importador não estará sujeito a uma multa ou ameaça de uma multa pela simples razão de ter optado por exercer seu direitos de recorrer”, ao passo que a Nota Explicativa nº 3 expõe que essa exoneração não impede “uma parte de exigir o pagamento integral dos direitos aduaneiros antes de um recurso ser interposto”, estando livre para implementar tal exigência em sua legislação interna, caso assim deseje.

Por sua vez, o Comitê Técnico de Valoração Aduaneira expediu a Opinião Consulta 17.1 ponderando que o direito a recurso do importador, sem penalidades, “diz respeito às decisões tomadas pelas administrações aduaneiras com relação à determinação do valor aduaneiro, de conformidade com o Acordo” e que “casos de fraude não foram alcançados por esse artigo; nestes casos, o exercício do direito de recurso deveria ajustar-se às disposições da legislação nacional, que poderia prever tanto o pagamento das multas como o dos direitos aduaneiros antes da interposição do recurso”.

Diferentemente da primeira leitura, no sentido de que a suspensão da exigibilidade da multa seria suficiente para se concretizar o comando encartado pelo acordo, como se demonstrará, a experiência dos demais países não têm sido neste sentido, mas no de que em momento algum seja aplicada uma penalidade, pois não se está diante de caso de subfaturamento doloso por parte do importador, mas de subvaloração aberta a debate mediante acesso mitigado de provas ao particular.

O sentido do dispositivo, neste contexto, passa a ser permitir que os importadores possam recusar uma revaloração promovida pelas autoridades aduaneiras e exercer seu direito de defesa contra ela tanto na esfera administrativa e judicial sem que isso atraia a aplicação de penalidades contra ele, rumo a um amadurecimento institucional da questão em um debate livre de ameaças de lado a lado.

O artigo parte do pressuposto que uma divergência, ainda que tenha causado um recolhimento de tributos a menor ou a não submissão do produto a determinado tratamento exigível, não é, individualmente, uma infração penalizável, diante da natureza cooperativa do procedimento e por não ser legítimo punir em um cenário em que o importador reconhecidamente não dispõe de todos os dados para decidir pela aceitabilidade do seu preço de transação para fins de valoração aduaneira (sendo autorizado, pelo AVA-Gatt, que a presuma até segunda ordem).

Há forte tendência internacional de rejeição da nefasta “responsabilidade objetiva” para penalizar independentemente da culpa, sobretudo quando tal sanção se revelar excessiva diante da reprovabilidade da conduta, conforme artigos 6º, itens 3.3 e 3.4 e 12, item 1 do AFC (Decreto nº 9.326/2018), no item 3.39 da CQR (Decreto nº 10.276/2020) e no artigo 15, itens 3 e 4 do Acordo de Comércio e Cooperação Econômica (Decreto nº 11.092/2022).

Diversos países explicitamente acatam a previsão do artigo 11 do AVA-Gatt e exoneram por completo as penalidades por declaração errônea de valores aduaneiros, quando não comprovada uma fraude ou negligência.

Um dos países mais vocais nessa exoneração e na necessidade de ser leniente nos casos de erros justificáveis na valoração aduaneira é a Índia [1], mas isso se repete em diversos outros países, como por exemplo: Dubai, Jamaica, Arábia Saudita, Hong Kong e Estados Unidos (países com informações disponíveis em inglês).

O Brasil historicamente adota postura inversa à da comunidade aduaneira internacional quanto a penalidades, sendo, a título exemplificativo, um dos únicos países que apenam a simples ausência de recolhimento dos tributos que o Fisco entende devidos, mesmo nos casos em que não há qualquer suspeita de fraude ou negligência e em que é evidente se tratar de erro escusável, no patamar mínimo de 75% uma vez aberta a fiscalização (artigo 725, inciso I do RA).

Apesar do artigo 11 do AVA-Gatt estar em vigor, ele nunca impediu a imposição de penalidades nos casos de revaloração aduaneira. Mais do que isso, ele sequer é citado ou reproduzido em qualquer uma das normas internas infralegais, mesmo naquelas cujo objetivo é a consolidação da legislação aduaneira.

É como se o dispositivo não existisse, já que a única forma de encontra-lo é baixar o Anexo (digitalização cujo texto não é selecionável, não tem sumário e possui trechos de difícil leitura) do Decreto Legislativo nº 30/94 e o Decreto nº 1.355/94, que internalizaram o Gatt/94 na legislação brasileira.

Pretende-se responder às duas perguntas mais importantes em relação a esse debate, que são: (a) se o Artigo 11 do AVA-Gatt de fato age como um limitador à aplicação de quaisquer penalidades relativas à revaloração, não apenas a eventuais aplicáveis pelo exercício do direito a recurso; e (b) caso confirmada a premissa acima, se ele seria um óbice à aplicação das penalidades brasileiras.

Deve-se ter em mente as regras de interpretação dos artigos 31 e 32 da Convenção de Viena dos Tratados, dos quais se extrai que: (a) deve prevalecer o sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e finalidade; (b) deve ser levada em consideração as práticas comuns dos signatários e os acordos existentes e firmados posteriormente; e (c) não se adota interpretação que torne a norma ambígua ou que faça com que sua aplicação conduza a um resultado manifestamente absurdo ou desarrazoado. Além disso, deve-se ter em mente o princípio internacional de interpretação de normas sancionatórias que impõe a adoção, dentre as legitimamente possíveis, da que seja mais favorável ao acusado (e aqui se trata de pena).

Dado não ser comum do ponto de vista internacional a responsabilização objetiva de importadores e a existência de normas posteriores rechaçando tal possibilidade, torna-se viável a interpretação de que o artigo 11 do AVA-Gatt adotou tal redação mais arrojada focada no direito de impugnar a revaloração até uma decisão definitiva sem que em momento algum seja aplicada uma penalidade por partir do pressuposto de que (a) os países não tentariam penalizar a simples divergência de valoração; e (b) caso contrário, seu óbice já englobaria o direito de não sofrer a penalidade quando da revaloração.

Além disso, interpretação diversa do artigo 11 tornaria a norma inútil, já que não localizamos um único país dentre os signatários do Gatt que aplica penalidades pelo simples exercício do direito de petição em defesa de direitos em qualquer esfera.

Tampouco prospera a argumentação de que o sentido da norma seria a postergação da aplicação da penalidade, como poderia parecer em um primeiro momento, já que, além dessa interpretação ser incompatível com a redação adotada (sem sujeição a penalidades é diferente de sem obrigação de recolher a penalidade), essa circunstância temporal seria abordada nas Notas Explicativas, como acontece, por exemplo, com o valor principal. Em realidade, a menção ao “pagamento de custas judiciais normas e honorários advocatícios”, devidos usualmente após o desfecho definitivo, escancara que se trata de óbice total e não postergação temporal.

Por fim, ainda que remanescessem dúvidas ao intérprete, como a posição de que o Artigo 11 do AVA-Gatt seria uma negativa total à penalização está dentro do espectro interpretativo legítimo, sua aplicação seria imposta por gerar o cenário mais favorável aos acusados, pela regra do artigo 112 do CTN, que consagra a dúvida objetiva.

Assim, a correta conclusão nos parece ser, a exemplo da interpretação dos demais países, que o Artigo 11 do AVA-Gatt impede a aplicação de penalidades nos casos de revaloração aduaneira, exceto nos casos de fraude, não sendo apenas (a) um limitador à exigência da penalidade lavrada antes do encerramento do processo; ou (b) uma regra para evitar a aplicação de penalidade pelo exercício do direito de petição e de recurso contra um ato administrativo.

Ao obstar a aplicação das penalidades previstas na legislação brasileira para punir, em abstrato, a ausência de recolhimento tempestivo do tributo ou a inexatidão das informações consignadas em Declarações de Importação, sua prevalência é decorrente (a) do critério de especialidade na solução de antinomias no direito brasileiro, sendo que a regra específica relacionada à valoração aduaneira prevalece sobre a previsão genérica de sanções por falta de recolhimentos de tributos ou informações na Declaração de Importação; e (b) da previsão de prevalência das previsões de tratados e acordos internacionais sobre a legislação interna, anterior ou posterior, em linha com o artigo 98 do CTN e 26 e 27 da Convenção de Viena dos Tratados.

Portanto, é de se concluir que (a) a aplicação das penalidades que historicamente ocorrem em casos relacionados à valoração aduaneira é ilegítima por violar a previsão legal explícita, vigente e aplicável do artigo 11 do AVA-Gatt, o que autoriza o expurgo dessas multas quando do julgamento administrativo ou judicial dos Autos de Infração correlatos, assim como a solicitação de repetição do indébito daqueles que injustamente recolheram tais multas nos últimos cinco anos; e (b) a União Federal deveria consignar tal norma de maneira clara no Regulamento Aduaneiro por uma questão de transparência e para resguardar que os administrados brasileiros tenham fácil acesso a potenciais argumentos de defesa para exercício pleno do contraditório.

[1] Q73. Should the national legislation provide for penalties and fines for wrong declaration of customs value?
Ans: The ACV does not support or encourage fraudulent declaration of value. However, it does not contain any provision or guidelines for penalties and fines. Each country has to provide for adequate penal provisions in its domestic legislation to tackle valuation fraud. Such fraud needs to be curbed with a heavy hand as it not only deprives the state of its legitimate revenue but also causes trade distortion and puts honest traders at a disadvantage. At the same time, unintentional mis­declaration on account of a wrong understanding of the valuation provisions should be dealt with leniently.
Q76. Does the importer have a right to appeal against determination of customs value by the customs authorities?
Ans: Yes. Article 11 of the ACV lays down that legislation of each Member country should provide rights of appeal, without penalty, against determination of customs value. The first appeal can be to a higher authority within the customs administration or to an independent body. It also requires a final right of appeal to a judicial authority to be provided in the national law.

Thales Belchior, Leonardo Branco

Thales Belchior é membro da Comissão de Política Fiscal e Proteção aos Contribuintes da OAB-RJ, especialista em Direito Tributário pela FGV/Direito-RJ, professor de Direito Tributário e Aduaneiro convidado na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e advogado especializado em Direito Aduaneiro.

Leonardo Branco é conselheiro titular e vice-presidente de Turma no Carf, doutorando, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP, com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU-Münster) como bolsista DAAD, coordenador do curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio internacional" no IBDT e do curso "Tributação do Mercado Financeiro e de Capitais" no IBDT e na Apet, professor de Direito Tributário e Aduaneiro no IBDT, Ibet, FGV, FIA, Fipecafi, Inova e IDP (pós-graduação) e FK-Partners (exame CFP). Pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV-Direito/SP.

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