Base de cálculo do ITBI

Kiyoshi Harada

Essa é uma das matérias em que continua reinando divergências doutrinárias e jurisprudenciais, sem perspectivas de pacificação.

É fácil abraçar uma tese equivocada, porém, é extremamente difícil, senão impossível, abandoná-la após a consagração do equívoco por uma parcela ponderável da doutrina e da jurisprudência. É o caso da base de cálculo do ITBI.

Como se sabe, a base de cálculo do ITBI é o valor venal, conforme prescreve o art. 38 do CTN. E o valor venal do imóvel em termos doutrinários é o preço que seria alcançado em uma operação de compra e venda à vista em condições normais do mercado imobiliário, admitindo-se a diferença de até 10% para mais ou para menos.

Pois bem, alguém plantou a idéia de que a base de cálculo do ITBI é o preço real do imóvel no mercado em condições normais. Fez-se uma mera operação algébrica: base de cálculo =  valor venal; valor venal = valor de mercado; logo base de cálculo = valor de mercado.

Com base nessa operação algébrica o conceito doutrinário de valor venal vem sendo utilizado por parcela ponderável da doutrina e da jurisprudência como base de cálculo do ITBI. O equívoco é manifesto, bastando a simples lembrança dos princípios da legalidade e da isonomia tributária.

Consoante escrevemos o conceito doutrinário serve de “mero parâmetro dirigido ao legislador, a quem incumbe a definição da base de cálculo, de sorte a não extrapolar o valor de mercado, admitindo-se a diferença aí apontada. Sendo o tributo um conceito determinado, o que é raro em Direito, resta evidente que descabe a cogitação de incidência de uma alíquota sobre um valor que não seja certo. Quem exige tributo deve apontar o seu exato valor, o que se obtém por meio de lançamento tributário, um procedimento administrativo vinculado, na forma do art. 142 do CTN. Logo, pressupõe preexistência de uma lei definindo critérios objetivos para a apuração do valor unitário do metro quadrado da construção e do terreno considerando os diferentes tipo e padrões de construção, bem como sua localização nas diferentes zonas fiscais em que se subdividem a zona urbana do Município.” [1]

O preço de mercado, como querem alguns estudiosos,  prestigiados por forte corrente jurisprudencial,  sempre tem natureza estimativa, o que, por si só, já conflita com o conceito de tributo, além de ferir o princípio da legalidade e da isonomia, à medida em que esse preço depende da subjetividade de quem o busca mediante livre pesquisa do mercado imobiliário, fazendo com que imóveis em situações idênticas tenham valores diferentes. Pelo critério da pesquisa de mercado nunca se encontrará um valor exato incluindo os centavos, como exige o lançamento tributário.

A base de cálculo, como um dos elementos constitutivos do fato gerador do imposto, está inteiramente submetido ao princípio de reserva legal consoante dispõe o art. 146, III, a da CF.

Por isso, quando o art. 38 do CTN prescreve que a base de cálculo do ITBI “é o valor venal dos bens ou dos direitos transmitidos” [2] deve-se entender como aquele valor que resulta da aplicação da lei de regência da matéria.

E a única lei existente no Município de São Paulo que define critérios objetivos para a apuração do metro quadrado da construção e do terreno é a Lei de nº 10.235/86 para fins de cálculo do IPTU.

O trabalho do agente fiscal não é o de avaliar cada imóvel tributando mediante pesquisa de mercado, [3] mas o de enquadrar cada imóvel dentro dos tipos e padrões previstos na citada lei para aplicar em concreto o valor unitário do metro quadrado do prédio e do terreno sobre o imóvel objeto de tributação. O aspecto quantitativo do fato gerador expresso em forma de base de cálculo e alíquota não deve depender do subjetivismo do agente fiscal, mas de critério objetivo previsto em lei que respeite os princípios tributários, dentre os quais, o da legalidade, o da anterioridade e o da isonomia.

Nada impede de o Município aprovar uma outra lei específica regulando a apuração do valor venal do imóvel para fins de lançamento do ITBI. Os valores não precisam necessariamente coincidir com aqueles resultantes da aplicação da lei que rege o lançamento do IPTU. Porém, enquanto não existir essa lei específica deverá ser aplicada a Lei nº 10.235/86 que aprovou a planta genérica de valores para apuração do valor venal de imóvel a ser tributado pelo IPTU em respeito ao princípio da legalidade do imposto, que abarca a definição do seu fato gerador em seus aspectos objetivo, subjetivo e quantitativo.

Não faz menor sentido a costumeira alegação de que o valor venal está aquém do valor de mercado, por três razões básicas adiante mencionadas: (a) o nível de imposição tributária insere-se no campo da política tributária de cada município, imune ao controle da legalidade, exceto quando o tributo assume efeito de confisco; (b) o peso da carga tributária pode ser adequado por meio simples e transparente expresso pela elevação de alíquotas; não existe uma alíquota teto em matéria de ITBI; (c) nada há na ordem constitucional vigente que conduza a incidência do ITBI sobre o valor real da propriedade imobiliária, nem isso é desejável ou aconselhável tendo em vista a insegurança jurídica que isso geraria pela possibilidade e probabilidade de extrapolação do valor de mercado, a exigir a dispendiosa e demorada atuação do Judiciário para a correção do erro de lançamento. Muito ao contrário, os princípios da legalidade, da razoabilidade  e da segurança jurídica estão a indicar a adoção de uma base de cálculo que corresponda a um valor inferior ao valor real do imóvel, dosando o aspecto quantitativo do imposto pela variação de alíquotas. É o único critério seguro de lançamento, embora inconveniente para o administrador desleal, por revelar com clareza solar o nível da elevada carga tributária. Só que a transparência tributária é um princípio inserto no § 5º, do art. 150 da CF. É, portanto, um direito do contribuinte. Contudo, esse direito vem sendo driblado pelo esperto e astuto legislador por meio de inúmeras artimanhas jurídicas que tornam o sistema tributário extremamente complexo, dúbio, nebuloso e inseguro.

Concluindo, não há razão para prestigiar a tese que se afasta dos princípios da legalidade, da isonomia  e da transparência tributária, além de ferir o princípio da segurança jurídica se o Município dispõe de mecanismo para arrecadar a título de ITBI o que for necessário dentro da sua política tributária por meio simples e transparente, visível aos olhos do cidadão-contribuinte.

É preciso não confundir o valor venal em termos doutrinários, com o valor venal enquanto base de cálculo do ITBI que só pode derivar de lei, isto é, aquele valor que resulta da aplicação do valor unitário do metro quadrado da construção e do terreno previsto na lei, e não aquele valor que se apura caso a caso no mercado imobiliário, mediante livre pesquisa que resulta invariavelmente em um valor estimativo e não em um valor exato como impõe a lei. Base de cálculo que não derive diretamente do valor unitário do metro quadrado previsto em lei, qualquer que seja a denominação dada, [4]  é inconstitucional.

Mas, como se disse no início, querer fazer valer a tese da legalidade a essa altura dos acontecimentos é como dar murros em ponta de faca, de sorte que o presente artigo é escrito a título de recordação de um dos aspectos da teoria geral do lançamento tributário.

Notas

[1] Cf. nosso ITBI doutrina e prática. São Paulo: Atlas, 2010, p. 144-145.

[2] Em uma leitura atualizada seria “valor venal do imóvel ou dos direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia”.

[3] Operação que antecede a elaboração da lei.

[4] Valor de referência, valor de mercado, valor pesquisado etc.

Kiyoshi Harada

Sócio fundador da Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos - CEPEJUR. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo e ex-Diretor da Escola Paulista de Advocacia.

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