Legitimidade ativa para restituição do IRRF sobre remessas ao exterior

Gabriella Saruhashi, Thais de Laurentiis

A prática do Direito Tributário nos mostra que determinados assuntos são como a fênix, figura da mitologia grega capaz de ressurgir de suas próprias cinzas. O tema abordado na coluna de hoje é um desses assuntos, que faz “renascer” o interesse sobre o já considerado “morto de discussões” artigo 166 do Código Tributário Nacional (CTN).

Trata-se da avaliação sobre a legitimidade ativa para o pleito de restituição, pela via administrativa ou judicial, de valores recolhidos indevidamente a título de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre as remessas ao exterior, haja vista a regra limitativa desse direito prevista no artigo 166 do CTN, cuja base é a repercussão econômica dos tributos.

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São muitas as particularidades dos casos que podem ser avaliados dentro desse tema e não pretendemos aqui esgotá-las todas, mas sim trazer algumas ponderações, especialmente sobre situações em que a entidade estrangeira não possui qualquer vínculo formal com o Brasil (DTE, CNPJ ou representante legal), as quais trazem ainda mais vida ao tema.

Para tratar da questão, cumpre pontuar que com o advento da Lei nº 13.105 (Código de Processo Civil/2015), a tão conhecida expressão “condições da ação”, bem como a figura da “possibilidade jurídica do pedido”, ambas previstas no Código de Processo Civil/1973 (Lei nº 5.869/1973) foram extirpadas. Todavia, a legitimidade das partes e o interesse de agir, figuras vinculadas às “condições da ação”, foram mantidos incólumes, notadamente no artigo 17 [1], o qual enuncia que “para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade”.

Assim, em que pese a categoria “condições da ação” (gênero) não mais existir, as figuras processuais da “legitimidade ad causam” e o “interesse de agir” (espécies) continuam a ser reguladas pelo Código de Processo Civil vigente [2]. Afinal, legitimidade ad causam e o interesse de agir são figuras processuais exigidas para qualquer postulação em juízo, uma vez que a composição do litígio (mérito) depende da satisfação ou cumprimento de condições processuais mínimas [3].

No campo tributário, tais diretrizes processuais se manifestam em diversas situações. Aqui, preocupar-nos-emos com o tema já lançado aos leitores: a legitimidade para o pleito da restituição do IRRF pago indevidamente, no contexto de remessas feitas ao exterior.

Em regra, o sujeito passivo detentor do direito subjetivo de crédito [4] em face do Fisco será a parte legitima para pleitear a restituição do indébito, em estrita consonância com o artigo 165 do CTN.

Ocorre que a retenção na fonte do imposto sobre renda, por sua natureza jurídica, torna complexa a discussão sobre quem seria o detentor do direito subjetivo de exigir a restituição da prestação pecuniária indevida. Afinal, aí entra em jogo uma terceira figura na relação jurídico tributária e exsurge a dúvida se não seria o caso de aplicação das limitações à legitimidade ativa para restituição de tributos do artigo 166 do CTN.

O tema é controverso no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

De um lado, vemos decisões recentes que, ao apreciar pedidos de restituição de IRRF pagos em razão de remessa de valores ao exterior, reconheceram a legitimidade ativa da fonte pagadora brasileira, afirmando a inaplicabilidade do art. 166 do CTN ao tema, uma vez que a incidência do IRRF ocorre de forma isolada e definitiva [5]. De outro lado, há precedentes que se utilizam da letra do art. 166, concluindo pela ilegitimidade de fontes pagadoras à restituição do IRRF quando não comprovem ter assumido o ônus econômico do tributo [6].

Lembremos que citado dispositivo legal de fato enuncia que a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.

A remissão da legislação tributária ao tributo que comporte, por sua natureza, a transferência do encargo financeiro trata da clássica (ou mais divulgada) classificação dos tributos em diretos e indiretos: “comumente define-se o tributo indireto como aquele que, apesar de ser devido por determinado sujeito passivo, é economicamente suportado por terceiro, sendo este o contribuinte de fato, e aquele o contribuinte de direito” [7].

Ao julgar os Embargos de Divergência nº 1.318.163-PR, em 2017, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) expressamente consignou que “o imposto de renda não se inclui dentre aqueles que se enquadram como ‘tributos indiretos’ a exigir qualquer análise quanto ao art. 166 do CTN, sendo desnecessário tecer mais comentários a respeito de referidos precedentes”. Esse entendimento está em linha com a jurisprudência do Tribunal, a qual vem se solidificando no sentido de que os tributos diretos não necessitam de comprovação da ausência de repercussão econômica do tributo (AgInt no REsp 1.774.837 / MG, e EREsp 775.761 / RJ o REsp 457.155-SE).

Entretanto, parece-nos que, até o presente momento, o STJ não se debruçou satisfatoriamente sobre o específico tema do presente artigo.

Isto porque, no ordenamento jurídico vigente, é possível verificar a existência de mais de uma espécie de IRRF [8], como: (1) o IRRF sobre o produto do capital ou do trabalho do contribuinte recebido por qualquer forma (parágrafo quarto, artigo 3º, da Lei nº Lei nº 7.713/1988); (2) o IRRF sobre os pagamentos sem causa ou a benefícios não identificados (parágrafo primeiro, do artigo 61, da Lei nº 8.981/1995); e (3) o IRRF sobre as remessas realizadas ao exterior (alínea “a”, caput, do artigo 97, do Decreto-Lei nº 5.844/1943).

Em 2012, a 1ª Turma do STJ, a despeito de ter sido provocada, não levou em conta a questão da diferença das espécies de retenção na fonte, analisando o caso sob a perspectiva de que a figura da retenção seria “responsabilidade tributária por substituição”, para consignar que o responsável pela retenção do imposto de renda devido em razão da remuneração paga a empresa estrangeira deteria legitimidade ativa ad causam (AgRg no REsp 1.041.032-ES).

Posteriormente, em 2018, a 2ª Turma do STJ afastou a legitimidade da empresa brasileira que reteve imposto de renda incidente sobre as remessas de lucros às sócias domiciliadas no exterior, sob o fundamento de que o IRRF seria “tributo indireto”, aplicando o disposto no artigo 166 do Código Tributário Nacional, em dissonância do quanto julgado no EREsp nº 1.318.163-PR, visto acima (AgInt no AREsp 974.997-SP).

Ao nosso sentir, a conclusão alçada no EREsp 1.318.163-PR deve ser aplicada ao IRRF sobre remessas ao exterior, o qual não pode ser classificado como “tributo indireto”. Como lembra Sérgio André Rocha, o IRRF é imposto sobre a renda e, por isso, deve seguir as balizas constitucionais a respeito desse tributo federal, bem como aquelas estabelecidas pelo artigo 43 do CTN a respeito da materialidade tributável [9].

A atribuição de responsabilidade de retenção e recolhimento do tributo (responsabilidade tributária por substituição, no caso da retenção na fonte sobre remessas ao exterior) [10], com fulcro no § único, do artigo 45 do CTN, não altera a natureza do tributo. A retenção na fonte é atribuição de responsabilidade a terceiro, que não é o contribuinte – esse está no exterior, aufere a renda em questão e detém a capacidade contributiva relativamente ao evento tributável -, de modo que inexiste qualquer alteração dessa figura ou da natureza jurídica do tributo que justifique a aplicação da regra do artigo 166 do CTN [11].

Ao contrário do IRRF sobre o produto do capital ou do trabalho do contribuinte, o IRRF sobre as remessas realizadas ao exterior não poderia ser cobrado diretamente pelo Fisco brasileiro do beneficiário dos rendimentos (contribuinte), em razão do princípio da territorialidade, que o torna inalcançável. Guardadas as devidas particularidades, é o que ocorre no caso do IRRF cuja materialidade pressupõe a ausência de identificação do beneficiário dos rendimentos, que, não podendo ser alcançado para realizar o pagamento dos montantes devidos aos cofres da União, responsabiliza-se a fonte pelo adimplemento do imposto (cf. artigo 61 da Lei nº 8.981/95).

Dessarte, para o caso das remessas ao exterior, o IRRF incide de forma isolada e definitiva, e não como mera antecipação do imposto sobre a renda do contribuinte. Nessa linha, a Solução de Consulta COSIT nº 255, de 26 de maio de 2017 consignou que “os rendimentos auferidos por residentes ou domiciliados no exterior, provenientes de fontes situadas no País, sujeitam-se à incidência do Imposto sobre a Renda na fonte, forma isolada e definitiva, no momento do pagamento, do crédito, da entrega, do emprego ou da remessa dos rendimentos” (destacamos).

Assim, a relação jurídico-material tributária do IRRF-remessas se estabelece, desde o momento da ocorrência do fato gerador, entre a União e a fonte pagadora, com ênfase no fato de que o beneficiário de rendimentos (contribuinte) não está sediado ou domiciliado no Brasil.

Por isso é que, a princípio, o beneficiário dos rendimentos localizado no exterior nada poderia requerer à Administração Tributária brasileira em termos de repetição de indébito [12]. A pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no exterior não apura imposto de renda devido ao Brasil e não possui qualquer viabilidade operacional para requerer a devolução de valores indevidamente pagos à União Federal. Não à toa que a Instrução Normativa RFB nº 2055/2021, em seu artigo 20, condiciona a possibilidade de restituição ao não residente à adesão ao Domicílio Tributário Eletrônico (DTE) e inscrição no CNPJ/CPF, quando inexistente representante legalmente constituído no Brasil. Nas demais situações, concede o direito ao responsável por substituição que está em território nacional, porém requerendo a demonstração da fonte ter arcado com o ônus financeiro do tributo ou cumprimento dos requisitos do seu artigo 17.

Ocorre que, eventual reconhecimento de ilegitimidade da fonte pagadora para pleitear a restituição de valores pagos a maior a título de IRRF relativamente a remessa de valores ao exterior, ensejaria enriquecimento sem causa da Fazenda Pública, eis que a pessoa física ou jurídica que recebe os valores no exterior jamais teria legitimidade para requerer a restituição de valores pagos indevidamente ao Fisco brasileiro afora das hipóteses previstas no art. 20 da IN 2055/2021. Nessa linha, foi proferido o voto vencedor do Acórdão nº 1201-005.988.

Como adiantado, o tema ora abordado possui inúmeras dificuldades, que muito se acentuam na diferenciação dos casos concretos. O presente texto tem com propósito apresentá-las e trazê-las para debate. Mas o grande ponto, que não deve(ria) ser passível de controvérsias, é que o direito (material) à restituição de tributos pagos indevidamente não pode ser amesquinhado. Ademais, deve-se lembrar que a legitimidade ativa (processual) para tal pleito não deve redundar numa ingerência do Direito Tributário na esfera negocial, a qual permite que os particulares resolvam entre si os haveres relacionados às suas transações, ainda mais em nível internacional, onde a territorialidade apresenta limites jurídicos e técnicos à atuação da administração tributária.

[1] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 66

[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17. ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 342

[3] THEODORO JR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum – vol. I. 56. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015 p. 1.022

[4] A relação jurídica de indébito tributário é o vínculo abstrato que enseja (i) o direito subjetivo do sujeito passivo de exigir do sujeito ativo a restituição da prestação pecuniária indevida (crédito) e, ao mesmo tempo, (ii) o dever jurídico do sujeito ativo de restituir essa mesma prestação (débito). Para tanto, o sujeito passivo poderá optar pela via judicial ou pela via administrativa.

[5] Acórdãos 1201-005.145, 1201-005.988, 1402-006.061, 1402-006.062, 1402-006.063, 1302-004.820, 1302-004.821, 1302-004.822 e 1302-004.823.

[6] Acórdãos nos 1201-005.452, 1201-005.145, 1301-005.523, 1401-005.629 e 1003-001.150.

[7] LAURENTIIS, Thais de. Restituição de Tributo Inconstitucional. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo: 2014, p. 113-114.

[8] Nessa linha, SERGIO ANDRÉ ROCHA consigna que “a figura da retenção é utilizada pela legislação tributária com vistas à realização de mais de uma finalidade, a depender da sua caracterização como antecipação ou como tributação definitiva”. (ROCHA, Sérgio André. Análise estrutural do IRRF de não residentes: fato gerador, sujeição passiva, base de cálculo e alíquota. Revista Fórum de Direito Tributário, Belo Horizonte. 2022 v. 20 n. 155 jan/.fev.)

[9] ROCHA, Sergio André. Análise estrutural do IRRF de não residentes: fato gerador, sujeição passiva, base de cálculo e alíquota. R. Fórum de Dir. Tributário – RFDT | Belo Horizonte, ano 20, n. 115, p. 29-70, jan./fev. 2022.

[10] “Haverá caso de substituição tributária, em nossa visão, apenas no caso de retenção exclusivamente na fonte de imposto sobre a renda. Afinal, neste caso, a responsabilidade tributária recairá sobre a fonte pagadora desde o momento do fato gerador e exclusivamente sobre ela. Assim, nessa hipótese, a dívida é da fonte pagadora e o impacto patrimonial, isto é, a responsabilidade, também o é.” (SANTOS, Bruno Cesar Fettermann Nogueira dos. A Natureza Jurídica da Fonte Pagadora no Imposto de Renda na Fonte e seu Regime Jurídico. Revista Direito Tributário Atual n. 55. ano 41. p. 73-104. São Paulo: IBDT, 3º quadrimestre 2023, p. 84).

[11] Trazendo diferentes ponderações sobre o tema, ver: NOGUEIRA, Julia de Menezes. Imposto Sobre a Renda na Fonte. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 215-216.

[12] Em sentido contrário, ver: ROCHA, Sérgio André. Estudos de Direito Tributário Teoria Geral, Processo Tributário, Fim do RTT e Tributação Internacional. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2015, p. 356.

Gabriella Saruhashi, Thais de Laurentiis

Gabriella Saruhashi
é mestranda em Direito Tributário, especialista em Direito Tributário, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e advogada.

Thais de Laurentiis
é conselheira titular do Carf, vice-presidente da Turma 1.201, árbitra no CBMA, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP — com período na Sciences Po/Paris —, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, associada do IBDT e professora de Direito Tributário e Direito Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

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