STF acerta em cessar a coisa julgada individual, mas erra ao não modular efeitos

Carolina Schäffer Ferreira Jorge

Nas últimas semanas, dezenas de notícias e artigos tomaram os meios de comunicação trazendo, quase em uníssono, uma notitia criminis: a decisão do Supremo Tribunal Federal, envolvendo a cobrança da CSLL, ferira de morte a coisa julgada tributária e a perspectiva de segurança jurídica, fiada em pronunciamentos judiciais finais.

Sobre o acusado homicídio, a comunidade jurídica já elegeu o autor, as vítimas e o resultado. Entretanto, nessas situações, é indicado que se faça uma exumação do paciente, para que se investigue, com rigor científico, a causa mortis, esta sim capaz de determinar a eventual extensão da culpa dos autores.

Brincadeiras à parte, pretende-se neste artigo analisar o teor da decisão prolatada nos Temas nº 881 e 885, a fim de determinar se, naqueles processos, a coisa julgada tributária foi, de fato, vitimada pelo STF e, além disso, qual teria sido a sua causa determinante. Nesses temas, decidiu o Supremo que os acórdãos proferidos em ação direta e em sede de repercussão geral fariam cessar automaticamente a eficácia das sentenças transitadas, impedindo assim que regulassem fatos geradores futuros, inseridos em relações sucessivas.

Tão logo prolatada, a decisão causou perplexidade na comunidade jurídica, especialmente porque destoava da orientação firmada pelo STJ no REsp nº 1.118.893/MG (DJe 6/4/2011), em repetitivo. Provocou também dúvidas, em particular quanto aos seus impactos sobre o passado e sobre outros tributos, para além da CSLL, contribuição especificamente analisada nesses paradigmas.

Para a adequada compreensão do decisum, antes de tudo, é importante esclarecer que o Supremo não promoveu ali qualquer flexibilização ou relativização da coisa julgada. No ordenamento brasileiro, a res judicata é, por natureza, limitada, em seu aspecto subjetivo (partes) e objetivo (pedido e causa de pedir). Logo, havendo alteração substancial nesses elementos, a decisão se torna puramente ineficaz, não sendo capaz de projetar efeitos sobre a realidade.

Imagine-se que o contribuinte tenha impetrado mandado de segurança, visando ao reconhecimento do seu direito à fruição de crédito presumido. A sentença que concede a ordem se pautará em determinado substrato fático e jurídico, que compõe a causa de pedir deduzida. Caso haja modificação relevante nesses pressupostos (como, por exemplo, a revogação do benefício em tela), resta claro que tal decisão não mais subsistirá ou autorizará o aproveitamento dos créditos.

Com efeito, a garantia prestigiada pelo artigo 5º, XXXVI, da Constituição não tem como objetivo imunizar a sentença a fatos supervenientes, que alterem a relação travada pelas partes. Se o juiz não pode predizer o futuro, mas deve decidir com base nos elementos deduzidos no processo, é evidente que novas circunstâncias, fáticas ou jurídicas, que não foram ali consideradas e sobre as quais o magistrado não exerceu cognitio e muito menos iudicium, não estão sujeitas à estabilidade nela fixada. Importa, portanto, definir o que deve ser considerado uma “alteração do substrato”, apta a romper o silogismo do julgado.

Em diversas oportunidades, o STF e o STJ reconheceram que as modificações no estado de fato e nos textos normativos instaurariam uma nova causa de pedir, provocando a imediata cessação da eficácia da sentença, independentemente de ação rescisória ou, salvo nas hipóteses previstas em lei, da ação revisional[2].

Remanesciam, contudo, dúvidas na doutrina e na jurisprudência a respeito do enquadramento das decisões do Supremo como alterações de substrato jurídico.

Chamado a se pronunciar sobre o tema, inicialmente afirmou o STJ que apenas os acórdãos oriundos do controle abstrato de constitucionalidade e aqueles do controle concreto acompanhados de resolução do Senado poderiam afastar, automaticamente, a disciplina fixada na sentença (vide arestos proferidos no REsp nº 822.683/PR, DJ 26/10/2006, e REsp nº 1.103.584/DF, DJe 14/12/2010).

Posteriormente, contudo, o debate foi alçado à sistemática dos recursos repetitivos, nos autos do REsp nº 1.118.893/MG (DJe 06.04.2011), tendo a Corte consignado, na ementa do acórdão, que “o fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade”.

Em virtude da redação adotada naquele precedente, o STJ acabou por consagrar a prevalência da coisa julgada, ainda que contrariada por decisão do Supremo nos controles abstrato ou concreto. Prova disso é que o Carf cancelou, com base no repetitivo, débitos expressivos de CSLL[3], argumentando que sua constituição violava decisões detidas pelos contribuintes, não afetadas pelo julgamento da ADI nº 15/DF, em que declarada a validade da contribuição.

Doze anos depois, no entanto, o STF chegou à conclusão radicalmente diversa. Afirmou então que as decisões proferidas em ação direta, em virtude dos seus efeitos erga omnes e vinculantes, consagrados pelo art. 102, § 2º, da Constituição, provocariam a alteração do substrato jurídico da sentença, impedindo que regulasse os fatos geradores supervenientes. Idêntico impacto foi atribuído às decisões prolatadas em repercussão geral, em razão da sua eficácia expansiva e força obrigatória, hoje previstas pelo artigo 927 do CPC/2015.

Embora tenha havido nítida superação do entendimento estabilizado pelo STJ, Corte que tem função eminentemente orientadora no Judiciário brasileiro, o pedido de modulação foi rejeitado, por maioria. É interessante notar que, nos debates, os Ministros que integraram a corrente vencedora sustentaram não haver confiança legítima a ser preservada, já que, há décadas, a jurisprudência havia se consolidado pela constitucionalidade da CSLL, não sendo legítimo, portanto, privilegiar as empresas que deixaram de pagar o tributo nesse período.

Aqui nos parece ter havido confusão, pois o tema apreciado não era a validade da CSLL, mas a subsistência da coisa julgada em face de precedente do STF. Esta era a questão jurídica a ser dirimida e sob esse enfoque a segurança jurídica deveria ter sido examinada.

Ora, não há dúvida de que, por cerca de 12 anos, estabilizou-se a orientação favorável aos contribuintes, o que demonstra que a falta de pagamento da exação, longe de se pautar em mera aposta ou aventura jurídica, traduzia confiança legítima, baseada em julgado obrigatório oriundo de Tribunal Superior.

A modulação, portanto, não era só cabível, mas necessária.

A afirmação, trazida durante os debates, de que os prejuízos oriundos desse julgamento seriam minimizados pela prescrição e decadência, que permitiriam apenas a cobrança de tributos relativos aos últimos 5 anos, é também enganosa.

É sabido que, pautada nos Pareceres PGFN nº 1.277/94 e 492/2011, há muito a Receita Federal tem constituído dívidas relativas à CSLL em face de empresas detentoras de decisões transitadas, não havendo, quanto a elas, decadência. Em vários casos, também não houve decurso dos prazos prescricionais, dado que diversos contribuintes detinham ordem judicial que, prestigiando a coisa julgada, impedia a cobrança das dívidas. Logo, é provável que a orientação firmada nos Temas nº 881 e 885, para muitas empresas, possa gerar a exigência de dívidas dos últimos 10 ou até 16 anos, em valores de milhões ou mesmo bilhões de reais.

Se, com frequência, o STF busca enfrentar os desafios gerados pelas suas decisões, minimizando os impactos sobre os cofres públicos, a mesma preocupação deve nortear as decisões que afetam os contribuintes e que podem comprometer sua estabilidade financeira, admitindo também aqui a modulação.

Caso, contudo, esse pleito seja mais uma vez negado em declaratórios, será preciso examinar o alcance dessa decisão. A tese fixada nos Temas nº 881 e 885 é ampla, abarcando não apenas a CSLL, mas todos os tributos inseridos em relações sucessivas. Ocorre que as justificativas para o indeferimento da modulação não foram gerais, mas específicas para essa contribuição, baseando-se, em larga medida, no tempo transcorrido entre a declaração de validade da CSLL (2007) e o instante atual. De fato, o objetivo dos ministros foi evitar os prejuízos à União e o desequilíbrio à livre concorrência, que seriam supostamente provocados pela falta de pagamento por um intervalo de 16 anos.

No entanto, essas razões não podem ser extrapoladas para toda e qualquer hipótese de superação da coisa julgada, pois há casos em que a decisão do STF surgiu em momento muito mais recente ou então foi o resultado de intensa controvérsia jurisprudencial, abruptamente decidida pelo precedente do tribunal.

No julgamento, também salientou o STF que a interrupção da eficácia da sentença se daria de forma automática, em razão do surgimento do acórdão e independentemente da propositura de revisional.

Embora a Corte não tenha declinado, de forma clara, as razões para a dispensa desta ação, a conclusão nos parece acertada, já que, havendo uma alteração do substrato jurídico, os novos eventos escaparão automaticamente do alcance da coisa julgada, vez que ultrapassados seus limites objetivos, fixados pela decisão.

Ademais, a ação revisional tem aplicação restrita a determinadas relações, como aquelas concernentes a aluguéis e alimentos, nas quais é não só exigida expressamente por lei (Lei nº 8.245/91, artigo 19, e Lei nº 5.478/68, arts. 13 e 15), mas é também necessária à fixação do novo quantum da obrigação.

Com efeito, nesses casos, a mera alteração das circunstâncias fáticas, como o aumento ou a redução das possibilidades financeiras do alimentante, não é capaz de, por si só, implementar uma nova realidade ou de impor um novo regramento à relação, já que a definição do valor da prestação não parte de uma escolha binária, mas sim de um juízo de equidade, que visa ao equilíbrio dos interesses em questão.

É justamente por essa razão que a sentença proferida na revisional tem natureza constitutiva e efeitos ex nunc, pois não se pode esperar que o alimentante ou o inquilino pague valores ainda não determinados.

O mesmo tratamento, contudo, não se impõe nas relações tributárias, não havendo sequer regra de direito material que o determine. Vale frisar que a tanto não servem os arts. 471, I, do CPC/73 e 505, I, do CPC/2015, pois disciplinam relações continuativas, ao passo que as relações tributárias são sucessivas. A distinção é relevante pois, nas continuativas (como, por exemplo, naquelas de alimentos ou locação), a nova sentença versará sobre a mesma relação disciplinada pela decisão original, ainda que seus elementos quantitativos tenham se alterado com o tempo. Nas sucessivas, têm-se, ao contrário, relações distintas e que são tratadas de forma agrupada pelo comando judicial unicamente em virtude da sua homogeneidade.

Se tal uniformidade se perde, em virtude da modificação dos contornos fáticos ou jurídicos, há uma fuga dos limites objetivos da coisa julgada, tendo em vista a falta de aderência entre os novos eventos e aqueles apreciados pelo juiz.

A nosso ver, a exigência da revisional é também incompatível com a natureza da relação estabelecida entre Fisco e contribuinte, na medida em que se atribui à parte a faculdade de pleitear a alteração do seu regime jurídico, com efeitos ex nunc, escolha esta que se mostra mais adequada às relações de índole privada.

No entanto, conforme decidido pelo STF, embora automática, a interrupção dos efeitos da sentença nem sempre é imediata, devendo ser respeitadas as regras da anterioridade anual e da noventena, de acordo com a natureza do tributo. A aplicação do artigo 150, III, “b” e “c”, da Constituição revela-se cabível, não porque tais decisões criem tributos, mas porque estabelecem uma nova disciplina para relações antes regidas pela res judicata, na medida em que a regra fixada pelo precedente do Supremo irá se sobrepor ad futurum àquela fixada pela sentença.

Por fim, um último ponto merece atenção: nas teses firmadas, afirmou a Corte que suas decisões devem respeitar também a irretroatividade, impedindo, assim, que acórdãos do Supremo afastem a regulação dada pela sentença, quanto a fatos ocorridos antes do seu surgimento.

A afirmação é relevante e deve repercutir não apenas no tema ali examinado, mas também, em homenagem à coerência, na análise de matérias conexas e, em especial, nos debates sobre o cabimento da ação rescisória pautada em precedente superveniente. Como é sabido, os artigos 525, § 15 e 535, § 8º, do CPC/2015 autorizam expressamente a desconstituição dos julgados, quando em descompasso com os acórdãos do STF, ainda que prolatados depois do trânsito.

Até hoje, a Corte não se pronunciou sobre a validade desses dispositivos, havendo séria controvérsia acerca da sua compatibilidade com a Constituição.

Mas, se entende o STF que, para os casos regidos por decisão transitada, suas decisões não podem retroagir, tornando ilícito o comportamento adotado pelas partes com base na res judicata, a mesma premissa deve ser aplicada para se afastar o cabimento da rescisória fundada em precedente superveniente. De fato, tendo a decisão se pautado, ao tempo da prolação, em uma interpretação possível do texto normativo, o surgimento do acórdão do STF em ação direta ou repercussão, embora possa interromper sua atuação prospectiva, não pode invalidá-la quanto ao passado, sob pena de grave violação à segurança jurídica.

Pois bem. Feitas todas essas considerações, podemos avançar para concluir a nossa análise sobre a notitia criminis acima referida.

A causa mortis, com a devida vênia aos que defendem o contrário, não foi a cessação dos efeitos da coisa julgada individual, em razão de decisão posterior em controle abstrato ou em repercussão geral. Tampouco pode-se dizer que a causa seria o reconhecimento, pelo STF, de que a interrupção de efeitos se dá automaticamente após o seu acórdão, independente de rescisória ou revisional.

A causa da morte da segurança jurídica, afinal, e onde reside a nossa crítica ao julgado, foi a negativa de modulação dos efeitos da decisão, desconsiderando-se a base de confiança fundada em precedente vinculante do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Não se pode punir o contribuinte que crê no Judiciário e observa a orientação fixada pela Corte. Em um sistema que prestigia as decisões tomadas em repetitivo, cumpri-las merece ser valorizado, e não se tornar uma armadilha para os administrados.

[1] Doutoranda em Processo Civil pela USP. Mestre em Direito Tributário pela USP. Professora do Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Sócia do escritório Mauler Advogados.

[2] Vejam-se, por todos, os acórdãos proferidos no RE nº 596.663/RJ (Pleno, DJ 26.11.2014) e no MS nº 11.045/DF (Corte Especial, DJe 25.02.2010).

[3] Veja-se, dentre outros, o Acórdão nº 9101-005.705, proferido pela Câmara Superior em 2021, em que aplicado o repetitivo para cancelar débito de CSLL relativo ao ano-calendário de 2009.

Carolina Schäffer Ferreira Jorge

Doutoranda em Processo Civil pela USP. Mestre em Direito Tributário pela USP. Professora do IBDT (Instituto Brasileiro de Direito Tributário). Sócia do escritório Mauler Advogados.

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