Vinculação do Tribunal Administrativo e decisões transubjetivas do STF e STJ

Ramon Leandro Freitas Arnoni e Rodrigo Dalla Pria

O debate acerca da necessária racionalidade do sistema tributário nacional, tido por complexo, não envolve apenas a legislação tributária atinente aos tributos e seus respectivos deveres instrumentais, passando também pelo contencioso tributário judicial e administrativo.

Em busca desse desiderato no ambiente do contencioso administrativo, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei Complementar nº 124/2022, que visa a “dispor sobre normas gerais de prevenção de litígio, consensualidade e processo administrativo, em matéria tributária” [1].

Dentre as disposições normativas desse projeto, destacamos o artigo 194-B, que pretende vincular os pronunciamentos da administração tributária às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ), julgadas segundo o procedimento da repercussão geral ou repetitivo, respectivamente.

O presente estudo intenta discutir se o instrumento normativo utilizado (Lei Complementar) possui autoridade constitucional suficiente para atribuir efeito vinculante às decisões dos Tribunais Superiores a órgãos julgadores que não o Poder Judiciário.

Pois bem.

A Constituição Federal de 1988 não estabelece expressamente a forma de produção de leis sobre processo administrativo tributário, tão somente aponta que as normas de Direito Administrativo estão sujeitas à competência exclusiva dos entes federados no exercício de suas funções administrativas, como a de cobrar tributos consoante suas competências (ex.: artigos 149, 153, 155 e 156, CF/88) e as atividades decorrentes, as normas de direito processual estão jungidas à competência exclusiva da União (artigo 22, inciso I, CF/88), as normas de Direito Tributário sujeitam-se à competência concorrente da União, dos estados e do Distrito Federal (artigo 24, inciso I, CF/88) e as normas sobre procedimentos em matéria processual, igualmente estão sujeitas à competência concorrente da União, dos estados e do Distrito Federal (artigo 24, inciso XI, CF/88).

Parece-nos que as normas de processo administrativo tributário não podem ser inseridas no âmbito exclusivo das normas de Direito Administrativo ou qualificadas como normas sobre procedimento em matéria processual e, muito menos, assumem natureza processual na acepção do artigo 22, inciso I da CF/88, essas últimas, conforme bem relembra Rodrigo Dalla Pria, porque tratam do que a doutrina chama de “direito judiciário” [2].

Reputamos que as normas de processo administrativo tributário assumem natureza tributária, portanto, sujeitas às regras dos artigos 24, inciso I, §§ 1º a 4º, e 146, inciso III, da CF/88, o que se coaduna com a atual estrutura normativa das diversas legislações dos entes federados, na medida em que inexistente na atualidade uma norma geral nacional editada pela União (artigo 24, § 1º), o que legitima as leis estaduais em vigor sobre a matéria, (artigo 24, § 3º, CF/88).

Assim, o caminho da lei complementar nacional em matéria tributária escolhido para a Proposta de Lei Complementar nº 124/2022 em trâmite no Senado Federal foi adequado, já que dispõe sobre normas gerais de prevenção de litígio, consensualidade e processo administrativo, em matéria tributária.

Ocorre que, esse Projeto de Lei Complementar trata também de matéria constitucional, na medida em que projeta a imposição da eficácia vinculante às administrações tributárias as questões tributárias definidas na sistemática da repercussão geral e de recursos repetitivos.

A dúvida que se coloca, portanto, é se a Lei Complementar, ainda que admitida como apta a introduzir normas gerais de processo administrativo tributário, seria o instrumento normativo adequado para impor efeito vinculante às decisões dos Tribunais Superiores a outros órgãos julgadores que não o Poder Judiciário? Entendemos que não.

Isto porque, o efeito vinculante para a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal às decisões do Supremo Tribunal Federal está definido no texto constitucional. A referência é ao artigo 102, § 2º, ao artigo 103-A [3]. E quanto às decisões do STJ, sequer há previsão constitucional de vinculação para a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

Soma-se a isso, o fato de que a proposta de Artigo 194-B [4] afronta princípio constitucional bastante sensível, qual seja, o da separação dos poderes, consubstanciado no artigo 2º da CF/88 e posto como cláusula pétrea em seu artigo 60, § 4º, inciso III, além de potencial ofensa à isonomia quanto aos jurisdicionados litigantes em outros ramos do direito.

Mas não só pelos dois motivos adrede referidos, as hipóteses constitucionais de imposição de efeito vinculante das decisões do Poder Judiciário à administração estabelecem procedimento próprio e especial, limitando os legitimados (artigo 103 da CF/88), impondo quórum especial de 2/3 (artigo 103-A) bem como instrumento adequado para controlar a inobservância da vinculação (reclamação), justamente porque mitigam a tripartição dos poderes tal como posta no texto constitucional, diferentemente do que ocorre com as decisões proferidas sob a sistemática da repercussão geral em matéria constitucional e dos recursos repetitivos em matéria de lei federal, vazias de um rito especializado.

Então, qual seria a solução?

Dentre os possíveis caminhos, o primeiro, já delineado, é o de alteração da Constituição, a fim de manter intacta a divisão tripartite de Poderes da República.

Um segundo caminho, já adotado por alguns Tribunais Administrativos que julgam matéria tributária, é a previsão na lei do respectivo tribunal da necessidade incorporação das decisões do STF e STJ proferidas sob o procedimento da repercussão geral e dos repetitivos [5].

Um terceiro caminho possível para aderência das decisões pela administração fazendária é a adoção de súmulas vinculantes pelos tribunais administrativos que tratem das matérias já definidas pelos Tribunais Superiores julgadas em repercussão geral ou como repetitivo [6].

Outra saída de ordem legislativa do ente tributante seria a criação de instância recursal com a atribuição para avaliar eventual incoerência entre a decisão administrativa e as decisões judiciais transubjetivas dos Tribunais Superiores.

Para a etapa não litigiosa, seria pertinente a edição de atos normativos que tenham por objeto as matérias tratadas nas decisões dos tribunais superiores ou de pareceres vinculantes à administração, nos termos do artigo 100, incisos I e II do CTN [7].

*Texto oriundo dos debates deflagrados nas aulas do crédito de “Direito Processual Tributário” do curso de mestrado do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), ministrado pelo professor Rodrigo Dalla Pria.

[1] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei Complementar n° 124, de 2022. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/154736. Acesso em: 11 jan. 2023.

[2] DALLA PRIA, Rodrigo. Reforma do contencioso tributário. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-10/processo-tributario-reforma-contencioso-administrativo-tributario. Acesso em 5 de jan. 2023.

[3] Sob uma perspectiva histórica da normatização, é possível perceber claramente que o legislador constituinte, nas hipóteses em que pretendeu impor à Administração (Poder Executivo) a vinculação às decisões do Poder Judiciário, o fez pela via de Emendas Constitucionais.

[4] “Art. 194-B. O trânsito em julgado de controvérsia tributária decidida pelo Supremo Tribunal Federal, sob a sistemática da repercussão geral em matéria constitucional, ou pelo Superior Tribunal de Justiça, sob a sistemática dos recursos repetitivos em matéria infraconstitucional, favoravelmente a contribuintes ou responsáveis, terá eficácia vinculante para a Administração Tributária.

Parágrafo único. No prazo máximo de 90 (noventa) dias, a contar do trânsito em julgado, a Fazenda Pública, por

parecer devidamente fundamentado e publicizado:

I – aplicará a orientação adotada pelo STF ou STJ em relação aos seus créditos tributários;

II – indicará os casos em que a Fazenda Pública, tanto na esfera administrativa quanto na judicial, deixará de

impugnar pleitos de contribuintes ou responsáveis;

III – indicará os casos em que Fazenda Pública, tanto na esfera administrativa quanto na judicial, desistirá de

impugnações ou recursos já formulados.” (NR)

[5] Não se olvida que essa alternativa tem o inconveniente de remeter apenas à fase de controle de legalidade do lançamento, isto é, do contencioso administrativo, a aderência administrativa às decisões judiciais, não evitando, assim, os lançamentos dos créditos, pautados que são pela vinculação e legalidade estrita do art. 142 do CTN.

[6] Exemplo desta iniciativa foi a revisão da Súmula nº 10/2017 pelo Tribunal de Impostos e Taxas que aderiu à posição já consolidada dos tribunais sobre a limitação da taxa de juros a ser aplicada aos créditos tributários paulistas.

[7] Nesta coluna temos os seguintes outros textos sobre a reforma do contencioso tributário, os quais sugerimos a leitura:

https://www.conjur.com.br/2021-set-19/processo-tributario-efetividade-processo-problema-contencioso-tributario-brasil

https://www.conjur.com.br/2022-abr-10/processo-tributario-reforma-contencioso-administrativo-tributario

https://www.conjur.com.br/2022-mai-01/processo-tributario-reforma-contencioso-tributario-parte

https://www.conjur.com.br/2022-jul-10/processo-tributario-reforma-contencioso-tributario-parte

Ramon Leandro Freitas Arnoni e Rodrigo Dalla Pria

Ramon Leandro Freitas Arnoni é mestrando e especialista em Direito Tributário pelo Ibet, especialista em Gestão Pública pela Universidade Federal de São Carlos, especialista em Direito Público, Direito da Seguridade Social, Direito Empresarial, Direito do Consumidor, Ciências Criminais, Prevenção e Combate à Corrupção, auditor fiscal da Receita Estadual de São Paulo, juiz titular do Tribunal de Impostos e Taxas-SP.

Rodrigo Dalla Pria é advogado, doutor em Direito Processual Civil e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado) do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), professor e coordenador do curso de extensão de "Processo tributário analítico" do Ibet, coordenador das unidades do Ibet em Sorocaba e Presidente Prudente e coordenador do grupo de estudos de "Processo tributário analítico" do Ibet.

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