Tributação e segurança jurídica

Luiz Fux

“O direito é senhor do tempo. Controla a bidirecionalidade passado/futuro das relações jurídicas que ele mesmo prescreve, fundando o clima de segurança que o sistema exige de si mesmo como condição para sua própria existência, motivo por que dissemos que o sobreprincípio da segurança jurídica depende de fatores sistêmicos. A irretroatividade é o primado que se ocupa do passado; enquanto que, para o futuro, muitos são os expedientes principiológicos necessários para que se possa falar na efetividade do primado da segurança jurídica.”

Com essas palavras, Paulo de Barros Carvalho[1] capta o que está em jogo quando se discute a modulação de efeitos das decisões proferidas pela Suprema Corte.

Em nosso sistema jurídico a questão está positivada. Inicialmente para as ações de controle abstrato: artigo 27 da Lei 9.868/99 e artigo 11 da Lei 9.882/99; e, mais recentemente, para os casos de controle difuso, mas julgados em regime de repercussão geral (artigo 927, § 3º do Código de Processo Civil de 2015).

Em comum entre os dois textos legais, duas exigências se mostram inegociáveis — o interesse social e a segurança jurídica.

O jurista e sociólogo francês Jean Carbonnier, em seu “Flexible droit – pour une sociologie du droit sans rigueur” (Paris, LGDJ, 1998, páginas 193/194), traz considerações extremamente pertinentes sobre a segurança jurídica em tópico da obra entitulado “Les Incertitudes des Droits Subjectifs”:

Um valor que os teóricos do direito, como Paul Roubier, consideram fundamental: a segurança jurídica. Eles a colocam diante da própria justiça e antes do progresso: é ela que deve ser sacrificada em último lugar, porque condiciona os outros dois[2].

Na mesma obra, linhas adiante, o próprio autor cunhou célebre frase a respeito da segurança jurídica:

Essa é a necessidade legal básica e, ousa-se dizer, animal (C’est le besoin juridique élémentaire et, si l’on ose dire, animal).

Assumindo, então, a segurança jurídica como essa necessidade imanente ao ser humano, cabe ao Direito estabelecer um sistema que a proveja, exatamente na intenção de estabilizar as relações sociais.

Sindicando tais pressupostos ao que pertine às decisões do Supremo Tribunal Federal, especialmente aquelas que dizem respeito a exigências decorrentes da relação Fisco-contribuinte, é forçoso encetar que as situações em que se modifica o posicionamento que vinha sendo tomado até então pelos órgãos judicantes reclamam análise a partir da leitura dos primados da segurança jurídica.

A convivência em sociedade pressupõe o cumprimento da norma com os consectários de sua interpretação, oferecida pelo Poder Judiciário. A presunção de constitucionalidade das leis impõe ao cidadão obedecê-las em conformidade com a hermenêutica disposta por um dos Poderes da República. No momento em que um dos vetores do sistema se altera, está o cidadão liberado de cumprir as exigências da maneira anteriormente definida, ficando os atos já praticados resguardados pelo passado.

As decisões das Cortes Constitucionais que reconhecem a incongruência das regras com o sistema jurídico ou mesmo que definem a maneira pela qual a regra se coaduna ao sistema tem exatamente o condão de abalar essa legítima confiança na presunção estabelecida de antemão entre cidadão e Estado.

Nos autos do RE 590.809, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 22/10/2014, DJe 24/11/2014 tive a oportunidade de me manifestar, ainda que brevemente, acerca da relação entre a própria segurança jurídica, a isonomia e os precedentes jurisprudenciais, verbis:

Então, o que se espera da jurisprudência se ela é um fator de previsibilidade e segurança jurídica? Que ela seja estável. Mas se ela não for estável, que, quando houver uma modificação dessa jurisprudência, haja, efetivamente, uma modulação temporal, para não criar um estado de surpresa no cidadão jurisdicionado. E não é uma inovação. Vai ser uma inovação do novo Código, mas já calcada na prospective overruling da Suprema Corte Americana, porque isso é uma maneira não só de se aplicar o princípio da isonomia – porque, se todos são iguais perante a lei, são iguais perante a jurisprudência -, e conferir essa segurança jurídica, que, com muita propriedade, a Professora Tereza Alvim, na exposição de motivos do projeto de lei que nós entregamos ao Senado, e que está para ser apreciado pela Câmara dos Deputados, baseada numa afirmação de Caenegem, numa obra específica sobre juízes, professores e legisladores, ela afirmava que “O cidadão jurisdicionado não pode ser tratado como um cão, que só sabe o que é proibido quando um taco de beisebol lhe toca o focinho”, que é mais ou menos o que está acontecendo. Quer dizer, a jurisprudência era pacífica, o juiz seguiu a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os Tribunais — não são os Regionais Federais, não, Ministro Marco Aurélio —, nós seguimos essa jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça também; e, aí, vem a jurisprudência e sofre uma modificação. E essa modificação pega de surpresa a todos. Então, evidentemente, ela tem que ter eficácia ex nunc .”

Em voto-vista nos autos do RE 363.889, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 02/06/2011, consignei o seguinte:

O princípio da segurança jurídica é tão relevante que, além de contribuir para a duração de um sistema político, na sua ausência, qualquer sociedade entra em colapso. Ela é um dos mais elementares preceitos que todo ordenamento jurídico deve observar. Nesse diapasão, cumpre a todo e qualquer Estado reduzir as incertezas do futuro, pois, segundo pontifica Richard S. Kay, “um dos mais graves danos que o Estado pode infligir aos seus cidadãos é submetê-los a vidas de perpétua incerteza”1.

Tratando especificamente da segurança jurídica em matéria tributária e sua relação direta com a modulação de efeitos das decisões proferidas pelo STF, calha mencionar recente precedente formado no Plenário da Suprema Corte. Com voto condutor de minha autoria entendeu a Corte que os efeitos da exigência do ICMS sobre a assinatura básica mensal dos serviços de telefonia deve operar apenas a partir do momento em que o STF julgou a exigência constitucional (RE 912.888-ED, Rel. Min. Alexandre de Moraes, redator para o acórdão Min. Luiz Fux, julgado em 1/12/2022)

Àquele momento, consignei em meu voto, sagrado vencedor, os seguintes termos:

Historicamente, nossa tradição acadêmica tem dificuldade de levar em consideração as consequências das normas jurídicas e das decisões judiciais. Na aula inaugural do curso de Direito da Faculdade Nacional, em 1955, San Tiago Dantas prelecionou:
“No estudo das instituições jurídicas apresentadas em sistema perde-se facilmente a sensibilidade da relação social, econômica ou política, a cuja disciplina é endereçada a norma jurídica. O sistema tem um valor lógico e racional, por assim dizer, autônomo. O estudo que dele fazemos, com métodos próprios estritamente dedutivos, conduz a uma autossuficiência, que permite ao jurista voltar as costas à sociedade e desinteressar-se da matéria regulada, como do alcance prático de suas soluções.”[3]

Ainda hoje há uma resistência considerável a levarem-se as consequências a sério, amparada por algumas falácias que buscam exaltar um purismo da Teoria Analítica ou uma falta de sensibilidade humana, uma espécie de assepsia moral de quem ousa apontar que as escolhas implicam custos e que não existe almoço de graça.

Uma das vantagens de destacar as consequências das interpretações jurídicas, num ambiente de ambiguidade de vagueza típicos da linguagem[4], é identificar quem está a se sacrificar, e em qual medida, nas escolhas políticas e judiciais.

De fato, a Constituição possui uma série de normas que estabelecem parâmetros de controle baseados nas consequências das ações públicas, como a eficiência e o fomento à livre-iniciativa e às condições equilibradas de concorrência.

O problema que a Corte está a enfrentar é típico desse cenário. O constituinte originário optou por utilizar a materialidade dos fatos como critério para repartir a competência tributária entre os entes federados. Essa divisão revela-se garantia ambivalente, tanto aos entes tributantes, como aos contribuintes. Aos entes tributantes ela assegura instrumentos para custeio de seus deveres constitucionais e legais, sem sobreposição nem risco de usurpação por seus análogos.

Contudo, num fenômeno semelhante àquele que Paulo Otero chama de erosão da legalidade[5], essa divisão vai perdendo sua capacidade de salvaguarda, pressionada pela sempre crescente complexidade e contingência da vida em sociedade.

Paradoxalmente, o apego isolado à análise supostamente “pura” dos textos legais, como proteção contra os males da interpretação econômica, impede que o jurista e o Judiciário deem máxima efetividade às próprias normas jurídicas.

Examinar o cenário ajuda a compreender como esta questão chegou ao escrutínio do Supremo Tribunal Federal.

Numa quadra de despesas sempre crescentes, os estados, o Distrito Federal e os municípios veem suas receitas pressionadas pelas mudanças de paradigmas econômicos, com a troca dos meios tradicionais de empreender pelas chamadas “tecnologias disruptivas”, pelas externalidades de um mercado em arrefecimento e pelas tensões federativas.

Cotidianamente testemunhamos mudanças na forma de realizar negócios e atividades simples da vida privada, como a transição do consumo de entretenimento para os suportes digitais. Essa mudança ameaça a matriz calcada na distinção que deu origem à divisão da competência para instituir impostos, ou seja, industrialização, mercadorias e serviços. Estados, Distrito Federal e municípios também ressentem-se do que percebem como um abandono da União, na recomposição dos valores devidos no âmbito da LC 87/1996.

Aliás, os estudiosos debruçados sobre a reforma tributária poderiam aprender muito a partir da experiência desta Suprema Corte na mediação de conflitos federativos de índole financeira e em seus desdobramentos litigiosos, dado que parte cardeal da proposta depende da transferência desembaraçada de recursos do centro à periferia das esferas federativas[6].

O contribuinte também está em posição delicada. O sistema tributário brasileiro é um dos mais confusos e custosos do mundo, conforme atestado ano após ano no estudo Paying Taxes[7], do Banco Mundial. O empreendedor brasileiro assume riscos elevados, diante da tendência de abandono da função econômica da limitação da responsabilidade[8]. Isto é especialmente contraproducente para o modelo de alocação de recursos adotado pela Constituição Federal de 1988, que rompeu com a matriz anterior, bem documentada e descrita por economistas como Nathaniel Leff[9].

Conforme observaram BUCHANAN e BRENNAN[10], a racionalidade subjacente à adoção de constituições alia-se à previsão de eleições periódicas e universais para assegurar que o exercício do poder não destoe dos marcos estabelecidos no momento idealizado da posição original (prévio à alocação de papéis sociais), sob o “véu de ignorância” proposto por RAWLS[11].

BUCHANAN e BRENNAN concluem:

“The analysis [referem-se ao modelo proposto, baseado na Public Choice Theory] can also be employed normatively to identify perverse elements in observed fiscal arrangements, elements that tend to create incentive structures that oppose those which efficiency in revenue disposition would require.”[12]

Nesse contexto, faz sentido agregar à racionalidade de uma “constituição fiscal” o apego à segurança jurídica, como instrumento para garantir expectativas normativas legítimas dos contribuintes. Ignorar essa expectativa legítima vai além de violar textualmente a Constituição Federal, na medida em que ela também é contraproducente a uma série de metas impostas, como a redução das desigualdades regionais, o fomento do pleno emprego e o próprio reforço da base de arrecadação.

In casu, havia expectativa legítima dos contribuintes à não incidência do ICMS sobre as atividades custeadas pela assinatura básica sem franquia de minutos. A estabilidade decorria das seguintes circunstâncias:

O STJ possuir jurisprudência pacífica em favor dos contribuintes;
A existência de decisões desta Suprema Corte dando por infraconstitucional ou dependente de reexame de provas a análise da matéria;
A robustez do argumento pela inconstitucionalidade e a complementar contingência do argumento contrário, demonstrada na formação da linha vencida (de modo a afastar a unanimidade).

O artigo 927, § 3º do Código de Processo Civil materializa as hipóteses em que a mudança no cenário jurídico enseja a modulação de efeitos da decisão judicial. In verbis:

Art. 927. (…)
(…)
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
Conjurando o contexto fático com a disposição legal, impõe-se a necessidade de estabelecimento de um termo para a cobrança do ICMS sobre os serviços de assinatura.

No que se refere à jurisprudência predominante e sedimentada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, é de se ver que aquela Corte já havia decidido a questão em sede de recurso repetitivo, hipótese expressamente mencionada pelo art. 927, § 3 do CPC, transcrito alhures. Refiro-me ao REsp n. 1.176.753/RJ. Eis a ementa:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. SERVIÇOS CONEXOS (SUPLEMENTARES) AO DE COMUNICAÇÃO (TELEFONIA MÓVEL): TROCA DE TITULARIDADE DE APARELHO CELULAR; CONTA DETALHADA; TROCA DE APARELHO; TROCA DE NÚMERO; MUDANÇA DE ENDEREÇO DE COBRANÇA DE CONTA TELEFÔNICA; TROCA DE ÁREA DE REGISTRO; TROCA DE PLANO DE SERVIÇO; BLOQUEIO DDD E DDI; HABILITAÇÃO; RELIGAÇÃO. NÃO INCIDÊNCIA DO ICMS.
A incidência do ICMS, no que se refere à prestação dos serviços de comunicação, deve ser extraída da Constituição Federal e da LC 87/96, incidindo o tributo sobre os serviços de comunicação prestados de forma onerosa, através de qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza (art. 2º, III, da LC 87/96).
A prestação de serviços conexos ao de comunicação por meio da telefonia móvel (que são preparatórios, acessórios ou intermediários da comunicação) não se confunde com a prestação da atividade fim processo de transmissão (emissão ou recepção) de informações de qualquer natureza, esta sim, passível de incidência pelo ICMS.
Desse modo, a despeito de alguns deles serem essenciais à efetiva prestação do serviço de comunicação e admitirem a cobrança de tarifa pela prestadora do serviço (concessionária de serviço público), por assumirem o caráter de atividade meio, não constituem, efetivamente, serviços de comunicação, razão pela qual não é possível a incidência do ICMS.
Não merece reparo a decisão que admitiu o ingresso de terceiro no feito, pois o art. 543-C, § 4º, do CPC autoriza que o Ministro Relator, considerando a relevância da matéria tratada em recurso especial representativo da controvérsia, admita a manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na questão jurídica central.
Agravo regimental de fls. 871/874 não provido. Recurso especial não provido. Acórdão sujeito ao regime previsto no art. 543-C do CPC, c/c a Resolução 8/2008 – Presidência/STJ.
(REsp n. 1.176.753/RJ, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator para acórdão Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 28/11/2012, DJe de 19/12/2012.)

O julgado referido resulta da consolidação de entendimento anterior, formado em ambas as Turmas de Direito Público daquela Corte, tal como demonstra, dentre outros, o acórdão no EDcl no REsp n. 1.022.257/RS, relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 9/12/2008, DJe de 12/2/2009). Verbis:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ART. 535 DO CPC. CORREÇÃO DE ERRO MATERIAL. EFEITOS INFRINGENTES. OBSCURIDADE E CONTRADIÇÃO. AUSÊNCIA.
O acórdão embargado reconheceu a incidência do ICMS sobre os valores cobrados a título de assinatura básica, pois abrangem uma franquia de pulsos mínimos por mês e, portanto, remuneram, pelo menos em parte, o próprio serviço de comunicação.

No presente caso, entretanto, não se trata de assinatura básica, com inclusão de franquia mínima de pulsos, mas de simples assinatura, que apenas remunera os custos de manutenção do sistema de telecomunicações colocado à disposição do usuário dos serviços de telefonia. Necessidade de correção de erro material.

Tratando-se de simples assinatura – que não abrange franquia de pulsos —, tal como prevista na cláusula 1º do Convênio ICMS 69/98, deve ser reconhecida a ilegalidade da incidência do ICMS sobre valores cobrados a esse título, por tratar-se de serviço preparatório e atividade-meio, que não se confunde com o próprio serviço de comunicação, este sim tributado pelo imposto. Precedentes de ambas as Turmas de Direito Público.

O aresto embargado foi expresso em prover o recurso especial para excluir da incidência do ICMS o serviço de habilitação. Obscuridade não reconhecida.

Como a impetrante, ora embargante não especificou em que consistiriam os “serviços suplementares e facilidades adicionais”, o mandado de segurança foi denegado por ausência de direito líquido e certo em face da generalidade do pedido. A denegação da segurança por ausência de direito líquido e certo não impede a repropositura da ação, por não ter sido enfrentado o mérito da impetração, não fazendo, portanto, coisa julgada material, mas apenas formal. Ausência de contradição.

Embargos de declaração acolhidos em parte, com efeitos infringentes, para dar provimento também em parte ao recurso especial.

O entendimento, em verdade, decorre de outros precedentes que já haviam estabelecido interpretação restritiva à materialidade do ICMS relativamente à tributação dos serviços de comunicação. Adotou-se entendimento no sentido de que serviços meio não poderiam ser objeto da exação. Anote-se a existência da Súmula 350 da jurisprudência daquele Tribunal: “O ICMS não incide sobre o serviço de habilitação de telefone celular”.

Àquele momento, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal caminhava para reconhecer a discussão como de índole infraconstitucional, o que reforçava a definitividade do entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Veja-se, v. g., os arestos RE 781841 AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, julgado em 17/12/2013, DJe 07/02/2014 e AI 683.929-AgR-segundo, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJe 25.11.2010.

Entretanto, amadurecendo na discussão, a Suprema Corte examinou discussão quanto à materialidade do serviço de comunicação para fins de incidência do ICMS nos autos do RE 572.020, do qual fui redator para o acórdão. Firmou-se o posicionamento no sentido do que já vinha sendo estabelecido no Tribunal da Cidadania. É dizer, não seria possível a tributação pelo ICMS das atividades ancilares ao serviço de comunicação. Eis a ementa do acórdão:

Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. ICMS. HABILITAÇÃO DE APARELHOS CELULARES. A LEI GERAL DE TELECOMUNICAÇÕES (ART. 60, § 1º, DA LEI Nº 9.472/97) NÃO PREVÊ O SERVIÇO DE HABILITAÇÃO DE TELEFONIA MÓVEL COMO ATIVIDADE-FIM, MAS ATIVIDADE-MEIO PARA O SERVIÇO DE COMUNICAÇÃO. A ATIVIDADE EM QUESTÃO NÃO SE INCLUI NA DESCRIÇÃO DE SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÃO CONSTANTE DO ART. 2º, III, DA LC 87/1996, POR CORRESPONDER A PROCEDIMENTO TIPICAMENTE PROTOCOLAR, CUJA FINALIDADE REFERE-SE A ASPECTO PREPARATÓRIO. OS SERVIÇOS PREPARATÓRIOS, TAIS COMO HABILITAÇÃO, INSTALAÇÃO, DISPONIBILIDADE, ASSINATURA, CADASTRO DE USUÁRIO E EQUIPAMENTO, ENTRE OUTROS, QUE CONFIGURAM ATIVIDADE-MEIO OU SERVIÇOS SUPLEMENTARES, NÃO SOFREM A INCIDÊNCIA DO ICMS, POSTO SERVIÇOS DISPONIBILIZADOS DE SORTE A ASSEGURAR AO USUÁRIO A POSSIBILIDADE DO USO DO SERVIÇO DE COMUNICAÇÃO, CONFIGURANDO AQUELES TÃO SOMENTE ATIVIDADES PREPARATÓRIAS DESTES, NÃO INCIDINDO ICMS. INOCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO AOS ARTS. 2º, 150, I, E 155, II, DA CF/88. DESPROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. Os serviços preparatórios aos serviços de comunicação, tais como: habilitação, instalação, disponibilidade, assinatura, cadastro de usuário e equipamento, entre outros serviços, configuram atividades — meio ou serviços suplementares. O serviço de comunicação propriamente dito, consoante previsto no art. 60, § 1º, da Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações), para fins de incidência de ICMS, é aquele em que um terceiro, mediante prestação negocial- onerosa, mantém interlocutores (emissor/receptor) em contato por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza (REsp. 402047/MG, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, 1ª TURMA, julgado em 04/11/2003, DJ 09/12/2003). 2. A interpretação conjunta dos arts. 2º, III, e 12, VI, da Lei Complementar 87/96 (Lei Kandir) leva ao entendimento de que o ICMS somente pode incidir sobre os serviços de comunicação propriamente ditos, no momento em que são prestados, ou seja, apenas pode incidir sobre a atividade-fim, que é o serviço de comunicação, e não sobre a atividade-meio ou intermediária como são aquelas constantes na Cláusula Primeira do Convênio ICMS nº 69/98. Tais serviços configuram, apenas, meios de viabilidade ou de acesso aos serviços de comunicação, et por cause, estão fora da incidência tributária do ICMS. 3. A Constituição autoriza sejam tributadas as prestações de serviços de comunicação, não sendo dado ao legislador, nem muito menos ao intérprete e ao aplicador, estender a incidência do ICMS às atividades que as antecedem e viabilizam. Não tipificando o fato gerador do ICMS- Comunicação, está, pois, fora de seu campo de incidência. Consectariamente, inexiste violação aos artigos 2º, 150, I, e 155, II, da CF/88. 4. O Direito Tributário consagra o princípio da tipicidade, de maneira que, sem lei expressa, não se pode ampliar os elementos que formam o fato gerador, sob pena de violar o disposto no art. 108, § 1º, do CTN. 5. In casu, apreciando a questão relativa à legitimidade da cobrança do ICMS sobre o procedimento de habilitação de telefonia móvel celular, a atividade de habilitação não se inclui na descrição de serviço de telecomunicação constante do art. 2º, III, da Lei Complementar 87/96, por corresponder a procedimento tipicamente protocolar, cuja finalidade prende-se ao aspecto preparatório e estrutural da prestação do serviço, serviços meramente acessórios ou preparatórios à comunicação propriamente dita, meios de viabilidade ou de acesso aos serviços de comunicação. 6. O ato de habilitação de aparelho móvel celular não enseja qualquer serviço efetivo de telecomunicação, senão de disponibilização do serviço, de modo a assegurar ao usuário a possibilidade de fruição do serviço de telecomunicações. O ICMS incide, tão somente, na atividade final, que é o serviço de telecomunicação propriamente dito, e não sobre o ato de habilitação do telefone celular, que se afigura como atividade meramente intermediária. 7. Ex positis, nego provimento ao recurso extraordinário.

(RE 572020, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 06/02/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-199 DIVULG 10-10-2014 PUBLIC 13-10-2014)

Em vista deste posicionamento, compus a corrente minoritária no julgamento deste caso, o que denota a candência da matéria.

Tal era a tenacidade e a consistência do quadro favorável aos contribuintes, que a respectiva reversão afeta negativamente a capacidade de investimento e de expansão das atividades. Parece claro que o destinatário desse revés será o consumidor, quer pela redução dos investimentos, quer pela pressão pela recomposição tarifária.

Ex positis e pedindo vênia ao ministro relator, CONHEÇO dos embargos de declaração e dou-lhes PARCIAL PROVIMENTO, para modular os efeitos da declaração de constitucionalidade no tempo, de modo que o ICMS incida sobre a “assinatura básica mensal sem franquia” a partir da data da publicação da ata de julgamento do acórdão no qual o mérito foi apreciado, isto é, 21/10/2016 (no sentido da ata de julgamento como marco para modulação de efeitos: RE 605552 ED-segundos, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 15/03/2021, DJe 12/04/2021; ADI 2040 ED, Rel. Min. Marco Aurélio, Relator(a) p/ Acórdão: Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJe 08/09/2021; ADI 1220, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 13/03/2020; ADI 3498, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, DJe 01/06/2020).

Sobressai, do julgado em questão, a conjugação dos elementos nos quais a Suprema Corte vem se fiando para fazer cumprir o primado da segurança jurídica em matéria tributária a partir da modulação dos efeitos das decisões judiciais, especialmente aquelas tomadas em controle concentrado e mesmo em recursos extraordinários julgados em regime de repercussão geral.

[1] CARVALHO, Paulo de Barros. “Segurança Jurídica e Modulação dos Efeitos” in “A Constituição Cidadã e o Direito Tributário – Estudos em homenagem ao Ministro Carlos Ayres Britto”. Coordenação Saul Tourinho Leal e Eduardo Lourenço Gregório Júnior.

[2] Il est une valeur que les théoriciens du droit, tel Paul Roubier, regardent comme fondamentale: c’est la sécurité juridique. Ils la placent avant la justice même, et avant le progrès: c’est elle qu’il convient de sacrifier em dernier lieu, parce qu’elle conditionne les deux autres.

[3] SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino de. “A educação jurídica e a crise brasileira”. Revista Forense, v. 159, p. 449–459, 1955, p. 454.

[4] Sobre a inescapabilidade de um quadro de soluções possíveis derivado da ambiguidade e da vagueza dos textos jurídicos, cf., e.g., AARNIO, Aulis. La tesis de la única respuesta correcta y el principio regulativo del razonamiento jurídico. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 8, p. 23–38, 1990; GUASTINI, Riccardo. Defettibilità, lacune assiologiche, e interpretazione. Revus, n. 14, p. 57–72, 2011. doi:10.4000/revus.1342; Vilanova, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: M. Limonad, 1997.

[5] OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública: O sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Lisboa: Almedina, 2017

[6] Cf. a ACO 2.865, de minha relatoria.

[7] PWC. Paying Taxes 2019: Fourteen years of data and analysis of tax systems in 190 economies: how is technology affecting tax administration and policy? Disponível em:

. Acesso em: 22 de dezembro de 2.022.

[8] Cf. SALAMA, Bruno Meyerhof. O fim da responsabilidade limitada no Brasil: História, direito e economia. São Paulo: Malheiros, 2014.

[9] “O lucro dos homens de negócios, entretanto, dependiam largamente de sua habilidade em expandir sua própria capacidade, a fim de suprir o crescente mercado interno; e as indústrias teriam preferido um apoio mais direto para si próprios, recebendo do governo empréstimos, créditos estrangeiros e raras importações. O caso de Brasília mostra claramente que o governo decide as alocações da maneira como julga melhor”. LEFF, Nathaniel. Política e Desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 45.

[10] BRENNAN, Geoffrey; BUCHANAN, James M. The power to tax: Analytical foundations of a fiscal constitution. Indianapolis: Liberty Fund, 2000 (The Collected Works of James M. Buchanan, v. 9), p. 7 e seg.

[11] RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge, Mass.: Belknap Press of Harvard University Press, 1999.

[12] BRENNAN, Geoffrey; BUCHANAN, James M. Ob. Cit., p. 178.

Fonte; Conjur

Luiz Fux

ministro do STF (Supremo Tribunal Federal)

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