Novo CPC e processos em curso: atenção às armadilhas processuais

Marcelo Pacheco Machado

A incerteza é a maior doença do processo civil. Enquanto os filósofos da processualística preocupam-se com suas belas teorias, em positivá-las na lei, o aplicador, o advogado, a parte, todos sofrem as consequências desta erudição.

Escrevi em 2009 [1] sobre esse problema, assustado pela “revolucionária mudança do conceito de sentença” e pela criação do mítico “processo sincrético” ou “auto-satisfativo” (sic), e todo o debate etéreo que tivemos a respeito.

Lembram das sentenças agraváveis e das apelações contra interlocutórias? [2] Agora, todavia, parece-nos que a crise está ainda mais forte, que há mais problemas, que infelizmente não aprendemos com os erros do passado.

Diante de diferentes correntes, sempre aliadas a novos conceitos normativos, aquele que tem diante de si um problema do mundo real para resolver é colocado contra a parede, estuda, pensa e reflete, mas não consegue avaliar adequadamente como agir.

Não tem condições de antever, com uma mínima segurança, como as Cortes se manifestarão no futuro a respeito daquela crise na técnica processual. Não sabe como ultrapassar essas armadilhas criadas pelo legislador!

E não digamos que a incerteza é inerente ao direito, que faz parte do jogo… Não, esse argumento não cola, pelo menos não deveria em relação ao processo civil.

De fato, o processo existe, exatamente, porque há uma incerteza quanto ao seu futuro resultado, quem terá razão declarada no âmbito do direito material. O que não podemos admitir, todavia, é que a técnica (processo civil) que visa exatamente a eliminar incerteza (pacificar o conflito) seja ela, em si mesma, uma grande, enorme, produtora de crises, debates e discussões. Daí ficamos todos “brincando” de processo civil, enquanto as pessoas reais aguardam tutela jurisdicional.

Nosso quadro hoje é caricato nesse sentido.[3] Não bastassem as incertezas inerentes às invenções do Código, e.g. negócio jurídico processual (cláusula geral), precedentes vinculantes (no Código), estabilização de tutela antecipada,[4] coisa julgada sobre questão prejudicial,[5] etc.,[6] temos também agora duas grandes incertezas quanto ao momento em que esse novo código será aplicável.[7]

A primeira diz respeito à data inicial de vigência do Novo CPC. A doutrina diverge ferozmente entre dia 16, 17 ou 18 de março de 2016. O STJ tentou eliminar a polêmica, mediante a curiosa sessão administrativa de 02/03/2016, que interpretou lei em tese e declarou o início de vigência para 18 de março. Solução heterodoxa e sem precedentes, incapaz de eliminar por completo o estado de insegurança jurídica.[8] Trataremos desse tema na próxima coluna.

A segunda, por sua vez, pressupondo que tenhamos uma data como referência (talvez 18/3?), precisamos saber quais atos, dentro de um processo em curso, serão regulados pelo CPC/73 e quais atos serão regulados pelo CPC/2015.

Sabemos que a lei processual se aplica imediatamente aos processos em curso (CPC/2015, art. 1.046), mas o que é esse “imediatamente”? Se sou intimado em 15/3 de decisão que indefere provas (irrecorrível no Novo CPC), posso ainda me valer do art. 522 do CPC/73 para interpor agravo de instrumento no dia 19/3? Se em sessão de julgamento de 17.3 a apelação é provida, por maioria, para reformar a sentença de mérito, devo interpor embargos infringentes ou o caso será submetido automaticamente à técnica de julgamento do art. 942 do CPC/2015?[9]

Tentemos responder.

O processo tem como parte sua, constituinte, o procedimento: uma sequência pré ordenada de atos. Nesta, a demanda do autor justifica a citação. A citação, por sua vez, justifica a resposta do réu. A resposta do réu, se for o caso, justifica a intimação para réplica. A intimação, por sua vez, justifica o ato da parte em replicar. E assim por diante… um ato é causa, justifica a ocorrência do ato subsequente.

Quando a nova lei processual encontra um processo tramitando, ela tem que atingir essa sequência e gerar uma certa distorção no modelo iniciado. A chave é buscar o regramento jurídico aplicável ao ato anterior, que justifica, que promove o subsequente.

Isto ocorre, pois é exatamente a partir da prática desse ato anterior que nasce o ônus da parte de praticar o subsequente, seja para recorrer, para contestar ou simplesmente participar do contraditório. Vejamos exemplos.

Quando falamos do ato inaugural do processo, não temos dificuldades. Os novos requisitos da petição inicial, previstos no art. 319, II, do CPC/2015, somente serão aplicáveis às demandas propostas (ajuizadas) a partir da data de vigência deste. Ao rigor da lei, não poderá o juiz indeferir (ou sequer intimar para emenda), no dia 20.3, petição inicial protocolada dia 15.3 e.g. sem a indicação do CPF das partes.

Do mesmo modo, se a carta de citação é expedida dia 15.3, a parte citada no dia 20.3, mesmo sob a égide do Novo CPC, terá de oferecer resposta no prazo de 15 dias corridos, a contar da juntada do aviso de recebimento (CPC/73, art. 241, I), e não comparecer a audiência de conciliação ou mediação (CPC/2015, art. 334).

E quanto às decisões e sentenças? Bem, sabemos que o § 1º do art. 489 do CPC/2015 (dever minucioso de motivação) somente será aplicável aos atos judiciais efetivamente realizados na vigência da nova lei. Não importa, nesse ponto, se a intimação ocorreu sob a égide do CPC/2015, é dizer, quando foi o termo inicial para o prazo recursal, o que interessa, para esse fim, é a data de registro da decisão, quando o juiz a entregou ao cartório, tornando-a um ato processual, público.

A sentença, enquanto ainda existe apenas na mente do juiz, na tela do computador ou mesmo sobre sua mesa, ainda que assinada, não é uma sentença. Não é ato do processo. É o registro da sentença no cartório competente (verdadeira publicação) que a configura como tal. É nesse momento que sentença se torna sentença, sendo juntada aos autos e, depois, submetida à intimação das partes (atos de comunicação de um ato que já era público).[10]

Se registrada em 15.3, mesmo que a intimação seja publicada no diário oficial de 21.3, os requisitos de validade do ato serão avaliados com base no CPC/73 e, mais importantemente, o recurso cabível será aquele previsto pelo CPC/73, e não pelo CPC/15.

Esse ponto é mesmo importante, tendo em vista que, decisões como as que indeferem provas, não mais serão passíveis de agravo de instrumento. Nesse sentido, sendo a decisão registrada na vigência do CPC/73, o recurso é admissível, ainda que a intimação ocorra em data na qual o Novo CPC já se encontrava plenamente em vigor. Diferentemente, se a decisão é datada e assinada em 15.3, mas somente registrada no dia 21.3, aplicar-se-á o Novo CPC e não será cabível agravo.

Raciocínio similar ocorre em relação aos acórdãos. Como a sentença ainda na mente do juiz, as discussões e proclamações de voto em sessão de julgamento – mesmo que pública – não encerram o ato processual. O acórdão, como ato do processo, apenas existe com seu registro pelo órgão colegiado competente. A partir desse momento nasce o ônus de recorrer, muito embora o termo inicial para o cômputo do prazo preclusivo nasça muito depois, com a intimação “publicada no diário oficial”.[11]

Se o acórdão é registrado sob a vigência do CPC/73, este Código continuará a regular seus requisitos de validade, assim como a definir o recurso admissível para sua impugnação.

A situação dos embargos infringentes merece total atenção, e poderia configurar verdadeira armadilha. Se o acórdão é registrado sob a égide do CPC/1973, reformando a sentença por maioria de votos, estaríamos diante de hipótese de admissibilidade ainda dos embargos infringentes.

Este recurso, portanto, deve ser interposto, sob pena de, posteriormente, não restar configurado o exaurimento das instâncias ordinárias, impedindo a posterior interposição de recurso especial ou extraordinário. Diferentemente, caso ocorra o registro do acórdão na vigência do CPC/2015, embargos infringentes não mais serão cabíveis, devendo a própria corte remeter o caso a julgamento em sessão “com a presença de outros julgadores” em número suficiente para “garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial”, nos termos do art. 942.

Mas isso não é tudo. Há uma questão adicional.

Sabemos que os prazos processuais no CPC/2015 serão contados apenas nos dias úteis (art. 219), enquanto que o CPC/73 o faz em dias corridos. Nesse sentido, questionamos: mesmo em relação a aqueles prazos que nascem sob a égide do CPC/2015, mas em decorrência de atos praticados sob a vigência do CPC/73, deverão os prazos serem contados em dias corridos?

Talvez essa seja a pior das armadilhas. E a resposta é positiva: sim!

Ora, se dizemos que a lei a regular o ato subsequente, inclusive definindo o tipo recursal admissível, é a lei aplicável ao ato antecedente, que fez nascer o ônus de manifestação (recorrer, contestar, etc.), não é possível aplicar apenas parte do Código, rejeitando outra, relativa ao modo de cômputo de prazos. Se o ato impugnado foi realizado sob a égide do CPC/73 e o recurso cabível é aquele previsto pelo CPC/73, não faria sentido dizer que o prazo (requisito de admissibilidade do recurso) haveria de seguir critérios do Código Novo, ainda inaplicável ao ato!

Complexo sim. Talvez entediante. Mas, sobretudo, assustador, para nós advogados, principalmente, que jogamos o jogo das preclusões, e perdemos a noite com o computo mental de prazos. Muita atenção nessa hora para os detalhes e para as relações temporais entre os dois códigos. A revogação do CPC/73 não significa que este deixa de ser aplicado. Pelo contrário, os fatos do passado ainda continuam a ser por este regulados, adicionando complexidades e incertezas ao nosso claudicante sistema processual.

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[1] Refiro-me à minha dissertação de mestrado, defendida perante a USP sob a orientação do Prof. Roberto Bedaque, intitulada “Incerteza e processo”, a qual originou o livro de mesmo nome, publicado pela editora Saraiva em 2013. http://www.saraiva.com.br/incerteza-e-processo-col-theotonio-negrao-4955838.html

[2] Cf. Bruno Silveira de Oliveira, “Um novo conceito de sentença?”, Repro 149, p. 125; Heitor Sica, “Algumas implicações do novo conceito de sentença…”, Reflexões sobre a reforma…, 2007, p. 201 e ss; e Ricardo Aprigliano, A apelação e seus efeitos…, 2ª ed., pp. 17-19. Cássio Scarpinella, A nova etapa da reforma do código de processo civil, vol. 1, 2ª ed., p. 19.

[3] É necessário refletir se as “vantagens” trazidas pelo Novo CPC compensam o absoluto estado de incerteza no qual viveremos. A respeito disso, a avaliação de Fernando Gajardoni nessa mesma coluna http://jota.uol.com.br/o-novo-cpc-nao-e-o-que-queremos-que-ele-seja

[4] A respeito dessa crise, vale o texto de Zulmar Duarte http://jota.uol.com.br/acautelar-ou-satisfazer-o-velho-problema-no-novo-cpc

[5] Vejam o meu Novo CPC: Que coisa julgada é essa? http://jota.uol.com.br/novo-cpc-que-coisa-julgada-e-essa

[6] Vejamos o caso da incerteza quanto à multa diária, conforme ressaltou a Luiz Dellore http://jota.uol.com.br/aspectos-da-multa-diaria-no-novo-cpc ou mesmo as dificuldades de compatibilização com os Juizados especiais ou com o processo penal, conforme destacado por Gajardoni http://jota.uol.com.br/a-problematica-compatibilizacao-do-novo-cpc-com-os-juizados-especiais e http://jota.uol.com.br/impactos-do-novo-cpc-no-processo-penal%c2%b9

[7] Importante ainda ressaltar as armadilhas nos prazos do Novo CPC, como o fez André Roque nesta mesma coluna http://jota.uol.com.br/as-armadilhas-dos-prazos-no-novo-cpc

[8] A este respeito, cf. http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunicação/Notícias/Notícias/Pleno-do-STJ-define-que-o-novo-CPC-entra-em-vigor-no-dia-18-de-março

[9] Art. 942. Quando o resultado da apelação for não unânime, o julgamento terá prosseguimento em sessão a ser designada com a presença de outros julgadores, que serão convocados nos termos previamente definidos no regimento interno, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, assegurado às partes e a eventuais terceiros o direito de sustentar oralmente suas razões perante os novos julgadores.

[10] Conforme lição de Cândido Dinamarco “a publicação em sentido técnico a que a doutrina se refere não é aquela publicação a ser feita pelo órgão oficial com o objetivo de intimar os defensores das partes. Em sentido técnico, publicar é integrar o ato do juiz ou tribunal ao processo, convertendo-o em verdadeiro ato processual” (“Tempestividade dos recursos”, Fundamentos do direito processual civil moderno, Tomo II, 6ª ed., pp. 1094-1095).

[11] Cf. Candido Rangel Dinamarco, “Tempestividade dos recursos”, Fundamentos do direito processual civil moderno, Tomo II, 6ª ed., p. 1095.

Marcelo Pacheco Machado

Doutor e mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP. Professor da FDV – Faculdade de Direito de Vitória. Advogado.

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