Modulação do PIS/Cofins e o desrespeito aos contribuintes litigantes

Fernando Facury Scaff

Começo o texto com uma profissão de fé. Acredito que o sistema de controle difuso de constitucionalidade é uma das garantias fundamentais dos indivíduos no Brasil. Através do controle difuso, qualquer indivíduo, em qualquer dos 5.540 municípios brasileiros, pode alegar que uma determinada norma é inconstitucional. Penso que isso complementa o sistema democrático ativo brasileiro, que não se encerra apenas no direito de voto.

O outro sistema, de controle concentrado, está nas mãos de apenas nove legitimados listados no artigo 103 da Constituição, dos quais apenas as confederações sindicais (patronais e obreiras) e as entidades de classe de âmbito nacional são tipicamente privadas. Todos os demais têm vinculação com o poder público.

Penso com muito carinho na imagem de um indivíduo procurando um advogado, em qualquer lugar do Brasil e relatando um problema a ele, que diz: “Seu problema não decorre de um ato de autoridade pública (quando então seria cabível o uso do mandado de segurança), mas de uma norma que não está de acordo com a Constituição”. E, a partir daí, promove uma ação judicial para arguir a inconstitucionalidade daquela norma, iniciando seu trâmite perante um juiz singular, podendo chegar até o Supremo Tribunal Federal, que declara sua invalidade.

Isso aconteceu recentemente no RE 574.706, proposto por uma empresa localizada no interior do Paraná. Não sei ao certo quando o processo foi iniciado, mas chegou ao STF em dezembro de 2007, tendo sido reconhecida a repercussão geral da tese em abril de 2008. O julgamento foi realizado em 15 de março de 2017 pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, tendo por relatora a ministra Cármen Lúcia. Por maioria de votos, foi assentada a tese (tema 69 da repercussão geral): “O ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”. Foram vencidos os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

Surpreendentemente, não foi proposto pedido de modulação dos efeitos do julgamento. Dizem as notícias, contudo, que serão interpostos embargos de declaração pelos advogados do Fisco, tão logo seja publicado o acórdão.

A possibilidade de modulação dos efeitos está prevista no artigo 27 da Lei 9.868/99, assim lançada: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

Lendo o texto, duas dúvidas iniciais assomam: 1) a Lei 9.868/99 dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, e, no caso, a decisão decorreu da análise de um recurso extraordinário, ou seja, através do controle difuso (concreto) de constitucionalidade e não pelo controle direto (abstrato) que prevê a referida lei; 2) o que quer dizer a parte final da norma: “…ou de outro momento que venha a ser fixado”?

A primeira questão é facilmente ultrapassada pela própria jurisprudência do STF, que admite a modulação dos efeitos das decisões em julgamento realizado pelo controle difuso de constitucionalidade, a despeito de não existir norma a respeito do assunto. Vê-se que tal procedimento ocorreu no RE 500.171, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, em julgamento ocorrido em 16/3/2011. Não há norma, mas há precedente. Portanto, tudo indica que esse pode ser o caminho a ser trilhado.

A segunda questão também possui fácil explicação. O “outro momento”, mencionado no artigo 27, acima transcrito, implica na possibilidade de que a norma, mesmo declarada inconstitucional, venha a ser mantida vigorando até momento futuro, a ser determinado pelo acórdão. Vê-se isso no julgamento da ADI 875 (que englobou outras ADI), relatada pelo ministro Gilmar Mendes, julgada em fevereiro de 2010, declarando inconstitucional o artigo 2º da Lei Complementar 62/89, que regulava o rateio do FPE, cuja validade e vigência foram mantidas até 31/12/2012 (para mais detalhes, veja artigo de Celso Correia). Outro exemplo, em controle difuso, vê-se no RE 197.917, de relatoria do ministro Maurício Corrêa, julgado em 2002, acerca do número de vereadores em diversos municípios brasileiros, quando também foi atribuído pelo STF efeitos pro futuro.

Ultrapassadas as duas primeiras dúvidas, outras assomam. Será possível atribuir efeitos retroativos, imediatos ou pro futuro no caso em apreço, do afastamento da base de cálculo do ICMS na incidência do Pis e da Cofins?

Como se vê nos precedentes antes mencionados, o STF pode vir a fazê-lo, invocando o artigo 27 da Lei 9.868/99, desde que hajam razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social.

Porém, haverá mesmo uma situação que envolva segurança jurídica no presente caso? Tudo indica que não, pois, uma vez decidido o processo, nada haverá de juridicamente inseguro para sua aplicação. Juridicamente, a situação tornou-se segura, a partir da decisão proferida. Será suficiente um clique nos sistemas de informática para que, em todas as notas ficais que venham a ser emitidas, a base de cálculo do Pis e da Cofins seja corrigida, deixando de nela constar o ICMS. Logo, não se vislumbra nenhuma insegurança jurídica a frente.

Por outro lado, haverá um excepcional interesse social nessa modulação de efeitos? Também não parece ser esse o caso. Onde residiria o interesse social? O que se vê é um interesse estatal em tal procedimento, afastado do interesse social, este ínsito à sociedade, e aquele próprio do aparato governamental. Ou seja, o governo tem interesse em modular os efeitos, não a sociedade. Onde está o dissenso? Alega o governo que terá menos de R$ 20 bilhões/ano para fechar as contas, porém, considere-se que essa é uma alegação que vem desde tempos remotos, e de lá para cá muita coisa mudou, dentre elas a EC 95, que estabeleceu um teto de gastos. Ora, se há um teto para os gastos, seguramente a receita não necessita ser ampliada, e a modulação não mais se faz necessária (esse aspecto foi tratado anteriormente). Aqui, haverá no máximo um interesse estatal, não um interesse social em jogo — o que foge ao preceito normativo em questão.

Por outro lado, isso pode ocorrer através do mecanismo de embargos de declaração, uma vez que, tecnicamente, esses servem para suprir omissões, afastar contradições e obscuridades e corrigir erros materiais (artigo 1.022, CPC)?

Não parece adequada essa via processual. Se até aqui não foi invocada a modulação dos efeitos, após incontáveis anos de trâmite processual, pode ser inovado o feito após a decisão de mérito? Seguramente, não. No caso, não se poderá alegar omissão, contradição ou obscuridade, e nem se há de falar em erros materiais. O que se pretenderá com os embargos de declaração é inovar nos autos — o que é ilegal, pois contraria o CPC e é vastamente coibido pelos tribunais.

Então, o que se tem até aqui é que: 1) é possível o STF modular os efeitos da decisão judicial que declare uma norma inconstitucional; 2) isso pode ocorrer através do sistema de controle difuso; 3) é necessário que estejam presentes os requisitos legais estabelecidos: hipóteses de segurança jurídica e excepcional interesse social; 4) e que tal pedido de modulação tenha sido formulado por uma das partes envolvidas, modificando a regra geral de aplicação dos efeitos retroativos; e que, por fim, 5) o STF delibere nesse sentido, por dois terços de seus membros, ou seja, 8 dos 11 ministros.

No caso em apreço, acerca do julgamento do ICMS na base de cálculo do Pis-Cofins, verifica-se que os itens 3 e 4 não estão presentes, o que impede a deliberação (item 5). Não há insegurança jurídica na matéria que justifique tal modulação, e muito menos excepcional interesse social; há interesse estatal, e apenas da esfera federal de governo, o que deve ser mitigado em face da recente aprovação da EC 95, que estabeleceu um teto de gastos, o que diminuirá fortemente a necessidade de ampliação das receitas. Além disso, os embargos de declaração não podem ser manejados nesse sentido, por ausência de previsão legal.

Caso o STF acate o pedido que, tudo indica, virá a ser formulado pelo governo federal, estará procedendo de forma claramente consequencialista, com forte viés de ativismo judicial, pois estará cedendo aos interesses governamentais em vez de respeitar as normas jurídicas e seus próprios julgados.

Proceder dessa forma será desrespeitar o enorme rol de contribuintes que, de forma difusa, bateram às portas do Poder Judiciário, um a um, buscando corrigir essa inconstitucionalidade, ora reconhecida. Modular será desrespeitar essa multidão de pessoas que, pouco a pouco, foram construindo a decisão que culminou no julgamento do RE 574.706.

A Constituição não estabelece que é para tratar desigualmente aos desiguais, buscando equipará-los? Pois bem, quer-me parecer que os indivíduos que se expuseram aos trâmites processuais devem ser tratados de forma desigual, pois foram eles que, ao fim e ao cabo, permitiram que o debate chegasse ao STF e o julgamento se completasse, expurgando a norma inconstitucional do ordenamento.

Caso o STF entenda que deve seguir esse caminho consequencialista, cedendo à pressão governamental já presente — verifica-se que não há pressão social nem sequer excepcional interesse social envolvido… —, que resguarde os efeitos passados daqueles contribuintes que trilharam todas as vias processuais. Os efeitos imediatos e futuros devem ser iguais para todos; não os passados.

Quem litigou, venceu. E tem o direito de ser tratado de forma desigual.

Fernando Facury Scaff

Advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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