ICMS – Demanda Contratada – Repetição – Instabilidade jurisprudencial

José Benedito Miranda

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, formada a propósito da legitimidade ativa ad causam do consumidor final, tem experimentado oscilações que conduzem a decisões díspares, traduzindo, por isso mesmo, falta de unidade na aplicação do direito entre os Tribunais de sobreposição, exprimindo, com isso, resultados indesejáveis pelo sistema.

Essa instabilidade jurisprudencial exsurge manifesta quando se controverte sobre a incidência do ICMS sobre a diferenciada tarifa cobrada pela concessionária a título de demanda contratada, a que está autorizada a fazer em razão das características técnicas e dos custos específicos do fornecimento de energia elétrica (art. 15, da Lei nº 8987/95), que, no caso, envolve elevados investimentos na rede para atendimento das cargas instaladas na unidade consumidora, atendida em média e alta tensão, que o sistema elétrico não está normalmente capacitado a acudir, a exemplo do que ocorre com as indústrias e grandes conjuntos comerciais.

Ainda em passado recente, o intérprete máximo do direito federal tinha jurisprudência consolidada no sentido de que o consumidor de energia elétrica, por assumir suposta condição de contribuinte de direito e contribuinte de fato do imposto, estaria legitimado para agir em juízo e repetir o indébito tributário, segundo colhe-se, entre outros, dos seguintes julgados: REsp 1.106.590-MG, AgRg no Ag nº 1.235.384/MG, AgRg no REsp 868.518, REsp 797.826, REsp 853.258 e REsp 806.467, Rel. Min. Luiz Fux; REsp 829.490, REsp 1.059.346 e REsp 1.002.383, Rel. Min. Teori Albino Zavascki; Ag 1.307.725, Rel. Min. Asfor Rocha; Ag 910. 226 e AgRg no REsp 1.001.537, Rel. Min. Humberto Martins; REsp 1047773, REsp 343.952/MG e REsp 989.565, Rel. Min. Eliana Calmon; AgRg no Ag 970.758, Rel. Min. Herman Benjamin; Ag 902. 230 e REsp 952.834, Rel. Min. Denise Arruda; REsp nº 949.327, Rel. Min. José Delgado; REsp 983. 038 e REsp 897.521, Rel. Min. Mauro Campbell Marques; Ag 883.352 e REsp 857.543, Rel. Min. Francisco Falcão; REsp 1.125.264 e REsp 838.542, Rel. Min. Castro Meira; Ag 834.538, Rel. Min. João Otávio de Noronha e AgRg no REsp 1.189.744, Rel. Min. Benedito Gonçalves.

Posteriormente, ao julgar o REsp nº 903.394, Relator Min. Luiz Fux (DJe de 26.04.2010), cujo acórdão foi tomado sob o regime do artigo 543-C do CPC, o Tribunal teve oportunidade de rever sua jurisprudência, ao concluir que o contribuinte de fato, no caso, uma distribuidora de bebidas, por não se revestir da condição de contribuinte do imposto, não tem legitimidade ativa para repetir o IPI pago por valor superior ao devido, somente assegurada ao fabricante, eleito pelo legislador responsável pelo pagamento do imposto.

Embora a hipótese dissesse respeito à restituição de um imposto de competência de entidade política diversa e incidente sobre a saída de produtos industrializados – IPI -, importa considerar que a tese posta em discussão mostrar-se-ia também aplicável quando o imposto pago a maior ou indevidamente é o ICMS, uma vez que, no Sistema Tributário Nacional, os dois impostos constituem tributos que apresentam pontos de inegável semelhança, valendo destacar que ambos são impostos não cumulativos e plurifásicos, que comportam, por natureza, transferência do respectivo encargo financeiro, na dicção do artigo 166 do CTN.

A aplicação analógica realmente se imporia, visto que o precedente jurisprudencial, mercê de timbrar a interpenetração dos sistemas do “civil law” e do “common law”, consubstancia técnica de aprimoramento da aplicação isonômica do Direito, a recomendar, portanto, que, para “casos iguais”, “soluções iguais” (Min. Cármen Lúcia).

Tal foi, aliás, a conclusão a que chegou o Ministro Herman Benjamin, Relator do REsp nº 928.875 (DJ de 01.07.2010), em que a matéria examinada envolvia, especificamente, controvérsia sobre a legitimidade ativa do consumidor final de energia elétrica, oportunidade em que, adotando igual orientação, o órgão fracionário do Tribunal que integra reafirmou o tradicional entendimento, segundo o qual a repetição somente pode dizer respeito ao contribuinte do imposto, tal como definido pelo art. 4º, da Lei Complementar nº 87/96, único que importa à obrigação tributária e que o legislador reconhece. O acórdão ficou assim ementado, em sua parte útil:

“3. No caso da energia elétrica, embora o consumidor possa ser considerado contribuinte de fato, jamais o será de direito nas operações internas, pois não promove a circulação do bem, e tampouco há previsão legal nesse sentido.

4. Contribuinte de direito é o sujeito passivo que tem relação pessoal e direta com o fato gerador, nos termos do art. 121, parágrafo único, I, do CTN. Indicado na lei para ocupar o pólo passivo da obrigação tributária, é também quem deve, em última análise, recolher o tributo ao Fisco.

5. Assim, contribuinte de direito é, por definição, aquele e somente aquele determinado pela lei.

6. Contribuinte de fato é quem suporta o ônus econômico do tributo, ou seja, a quem a carga do tributo indireto é repassada, normalmente o consumidor final.

7. No caso do ICMS sobre energia elétrica, a Constituição Federal e a LC 87/1996 não deixam dúvidas quanto ao contribuinte de direito: a) nas operações internas, contribuinte é quem fornece a energia, nos termos do art. 4º, caput, da LC 87/1996; e b) nas operações interestaduais, há imunidade nos termos do art. 155, § 2º, X, da CF.

8. Nas operações internas, não há como afirmar que o consumidor possa ser contribuinte de direito do ICMS. Inexiste lei que o inclua no pólo passivo da relação tributária. A ele não compete recolher o imposto ao Fisco estadual. Em sentido inverso, a Fazenda não cogita promover Execuções Fiscais contra o consumidor nessa hipótese, o que certamente seria rejeitado pelo Judiciário. (…)

16. Trata-se de operações internas de energia elétrica, em que contribuinte de direito é quem promove a saída, aquele indicado na lei para ocupar o pólo passivo da relação tributária, que não se confunde com o consumidor, nos termos do art. 4º, caput, da LC 87/1996.

17. Adotando a nova orientação do STJ, fixada no julgamento do REsp 903.394/AL sob o regime dos repetitivos, somente o contribuinte de direito tem legitimidade ativa ad causam para a demanda relativa ao tributo indireto, o que não é o caso da recorrida”.

Esse entendimento, que se afeiçoa à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, chegou a ser observado em diversos julgamentos proferidos pelas Turmas de Direito Público do Tribunal que compõem a 1ª Seção: REsp nº 1.213.567-MG, Rel. Min. Asfor Rocha; AgRg no AgRg nos EDcl no Ag nº 1.144.147 – MG, Rel. Min. Teori Albino Zavascki; AgRg no AgRg no AG 1.319.819, Rel. Min. Benedito Gonçalves; REsp 1.170.968, Rel. Min. Eliana Calmon; REsp 972.018, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima; REsp1.230.351, Rel. Min. Hamilton Carvalhido; REsp 1.236.368, Rel. Min. Mauro Campbell Marques; AgRg nos EDcl no REsp 1.052.168, Min. Humberto Martins; REsp 1.192.624/MG, Rel. Min. Castro Meira; REsp 1.305.244, Rel. Min. Francisco Falcão, inter plures e por dezenas de sucessivas decisões individuais.

Entretanto, ainda mais recentemente, repristinando anterior orientação, que se supunha superada, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1.229.303/SC, Relator, Min. César Asfor Rocha, em 08.08.2012, submetido ao regime de recursos repetitivos, concluiu por conferir ao adquirente de energia elétrica e, por extensão, aos tomadores de serviços objeto de concessão pelo Poder Público, legitimidade ativa para questionar em juízo sua tributação pelo ICMS e repetir o imposto repercutido no preço.

Consignou o eminente relator, em seu voto, que, não obstante a existência vários julgados estendendo ao fornecimento de energia elétrica a mesma orientação adotada no REsp 903.394/AL, a matéria deveria ser examinada com profundidade quando se cuidar de serviço público objeto de concessão, ante a existência de legislação específica que devesse ser também interpretada.

O que ali decidido, segundo deixou consignado, estaria impedindo que o consumidor de energia elétrica ajuizasse demandas discutindo temas relacionados ao recolhimento do ICMS, pelo que o precedente jurisprudencial revelar-se-ia perverso no contexto das relações existentes entre a concessionária de serviço público e o Poder Concedente, em face do qual a concessionária se encontraria em posição de quase total submissão, a ponto de ver rescindido o contrato de concessão, na hipótese de desrespeito a alguma diretriz, política pública ou norma imposta pelo Estado-concedente.

Ademais disso, tendo a garantia legal da revisão periódica das tarifas e na ocorrência de instituição ou majoração dos tributos, estaria atuando como mera repassadora do custo tributário à tarifa cobrada, nos termos do art. 9º, §§ 2º e 3º, da Lei n. 8.987/1995, mostrando-se desinteressada em litigar com o Poder Público, pelo que assume, então, o papel de contribuinte de direito apenas “formalmente”, assim como o consumidor também assume a posição de contribuinte de fato em caráter meramente “formal”.

Diante dessa polarização de forças em favor do Estado-concedente e da concessionária, como a lei de concessões, em seu art. 7º, define como direitos do usuário do serviço o acesso às informações para a defesa de seus interesses, isso significaria dizer que a legitimidade do consumidor final permanece, uma vez que lhe garante o direito de defender os seus interesses diante do Estado-concedente e da concessionária, preservando os princípios da ampla defesa e do acesso ao Poder Judiciário.

Aduziu também, em reforço à tese sustentada no voto, que, tratando-se de uma atividade monopolizada, inexiste concorrência capaz de impor à concessionária atitudes no sentido de defender o interesse do consumidor, que fica impossibilitado de se insurgir contra exigência fiscal por ele tida por ilegítima e reaver o imposto supostamente indevido, permanecendo, por conseguinte, totalmente desprotegido e prejudicado..

Em reforço à tese sustentada, acrescentou o eminente Relator que os consumidores atendidos em alta tensão e com carga acima de 3.000 KW – denominados “consumidores livres” – podem adquirir a energia de qualquer produtor, ao contrário do que ocorre com os demais consumidores, que, sendo dela cativo, só podem adquirir a energia elétrica da distribuidora local, o que, segundo sua compreensão, agravaria ainda mais a situação destes últimos, impossibilitados de ter acesso ao mercado, onde supostamente poderiam adquirir a energia em melhores condições de preço.

Convencido do acerto das premissas assentadas, concluiu o voto do Relator:

“Sem dúvida, no caso das concessionárias do serviço público, diante de tudo o que foi dito acima, entendo que a legitimidade do consumidor final permanece. Decidir de forma diversa impede qualquer discussão, por exemplo, sobre a ilegalidade – já reconhecida neste Tribunal Superior – da incidência do ICMS sobre a demanda “contratada e não utilizada”, contrariando as normas que disciplinam as relações envolvidas nas concessões de serviço público. Isso porque, volto a afirmar, em casos como o presente, inexiste conflito de interesses entre a Fazenda Pública, titular do tributo, e as concessionárias, que apenas repassam o custo tributário à tarifa por força do art. 9º, §§ 2º e 3º, da Lei n. 8.987/1995”, razões pelas quais, “não há como reconhecer a ilegitimidade ativa do consumidor do serviço de energia elétrica, lembrando que, em Direito Tributário, o que vale é a verdadeira natureza das coisas e das suas relações”.

O voto obteve a adesão explícita do Min. Teori Albino Zavascki, que, ao revelar suas severíssimas reservas à jurisprudência objeto de revisão, consignou que o Relator apontava para uma hipótese em que se deve relativizar a afetação do precedente. Afinal de contas, observou, o voto condutor do acórdão “deixou bem demonstrado, ou legitimamos quem assumiu encargo financeiro ou, na prática, inviabilizaremos a tutela jurisdicional contra eventuais exigências arbitrárias por parte do fisco”, razão pela qual, “a solução proposta atenderia, portanto, ao princípio do acesso à justiça”.

Para a unanimidade que se formou, a legitimidade ativa de quem realiza o fato gerador do imposto para agir em juízo não poderia afastar a aplicação da norma específica inscrita no art. 7º, II, da Lei nº 8.987/95, que, ao assegurar ao usuário do serviço concedido amplo acesso às informações para defesa de seus interesses, ter-lhe-ia conferido, por extensão, legitimidade ativa para a ação.

Premido, por conseguinte, pela necessidade vislumbrada de remediar a situação do consumidor final, uma vez que o ordenamento jurídico não lhe proporciona meios para reaver o valor do imposto embutido no preço da mercadoria, tido por ilegítimo – suprindo a omissão do legislador – optou o Tribunal por restaurar sua anterior jurisprudência, em acórdão assim sumariado:

“Diante do que dispõe a legislação que disciplina as concessões de serviço público e da peculiar relação envolvendo o Estado-concedente, a concessionária e o consumidor, esse último tem legitimidade para propor ação declaratória c/c repetição de indébito na qual se busca afastar, no tocante ao fornecimento de energia elétrica, a incidência do ICMS sobre a demanda contratada e não utilizada. – O acórdão proferido no REsp 903.394/AL(repetitivo), da Primeira Seção, Ministro Luiz Fux, DJe de 26.4.2010, dizendo respeito a distribuidores de bebidas, não se aplica ao casos de fornecimento de energia elétrica”.

Essa nova orientação jurisprudencial, fixada em julgamento unânime e sem qualquer debate – circunstância que faz presumir a aversão dos integrantes da Seção ao dissenso – tem presidido as decisões individuais que a ela se seguiram: REsp 1.349.645; AREsp 241.468; REsp 1.330.196; REsp 1.349.944, REsp 1.328.833, REsp 1.325.747 e REsp 1.316.944, entre outros, encontrando o precedente aplicação a casos similares, alheios até mesmo às operações realizadas fora do âmbito dos serviços objeto de concessão – a que presumivelmente restrita – a ele reconhecendo-se até mesmo suposto efeito vinculante, a exemplo do que decidido no AgRg no RMS nº 28.044/ES.

Algumas considerações a propósito se impõem, ante a insuficiência das premissas que conduziram à formação dessa mais recente orientação, fixada pelo guardião do direito federal.

Com efeito, a alusão feita pelo voto condutor da decisão a uma “relação paradisíaca” estabelecida entre o Poder concedente e a concessionária diz com uma relação contratual de natureza diversa, de direito administrativo, estabelecida entre terceiros, no caso, entre a concessionária e a União Federal, a quem compete a outorga de concessão para prestação dos serviços públicos de telecomunicações e energia elétrica (CF, art.s 21, XI e XII, b), não dizendo respeito, por conseguinte, com a entidade a quem a Constituição conferiu competência para instituir o ICMS, cuja incidência sobre fatos determinados, por ela alcançados, o consumidor final estivesse legitimado a questionar.

Por outro lado, não deve causar espécie a previsão legal de que os contratos contenham mecanismos de revisão das tarifas, visto que sua admissibilidade está condicionada à comprovação de seu impacto sobre o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, podendo ela se dar para mais ou para menos, conforme o caso, ante a ocorrência da criação, alteração ou mesmo extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, matéria, de resto, que se insere no âmbito da política tarifária formulada pelo titular do serviço concedido (CF, art. 175, parágrafo único, III), com vistas à manutenção do próprio sistema de prestação da atividade (Celso Antônio Bandeira de Mello, “Curso de Direito Administrativo”, 21ª Ed., p. 702), não interferindo, por conseguinte, no âmbito de aferição da legitimidade da incidência do imposto, da identificação das pessoas a ela vinculadas e da determinação de sua base de cálculo.

Por outro lado, diversamente do que ocorre no mercado das relações de consumo, a revisão tarifária não pode ocorrer unilateralmente, uma vez que dependente de homologação do Poder Público.

Como, em uma economia de mercado o contribuinte goza de ampla liberdade para computar todos os custos incorridos, inclusive fiscais, para efeito de estipular o preço de seus produtos e serviços e calcular a margem de lucro – procedendo a qualquer tempo seu reajuste, independentemente de autorização do Poder Público – as razões de decidir não encontram então correspondência com os fatos considerados, parecendo de todo modo injustificada, por conseguinte, a discriminação procedida pelo acórdão entre os consumidores finais de produtos e serviços objeto de concessão pelo Poder Público e os demais, que os adquirem à margem dos serviços concedidos e da tutela do Estado, cujos preços, ao contrário daqueles, achando-se expostos às oscilações momentâneas do mercado, deixam o consumidor ao desamparo.

Irrelevante, por outro lado, o fato de parte expressiva dos consumidores constituir mercado cativo da distribuidora local, enquanto o consumidor intensivo tem a opção de adquirir a energia elétrica do produtor que bem lhe convier, visto que, em razão de sua reduzida capacidade de negociação do preço, submetido à tutela do Estado, o pequeno consumidor estará infenso às oscilações dos preços do mercado. O argumento utilizado, portanto, prova demais e nada aproveita à tese sustentada no voto condutor do acórdão, mesmo porque atua precisamente em desfavor do pequeno consumidor, que não reúne condições para negociação do preço da energia com terceiros.

Nota-se, de resto, a impropriedade em que incorreu o acórdão, quando, valendo-se de uma lei que dispõe sobre a concessão de serviços públicos e define os direitos do usuário, dela extrai interpretação segundo a qual, a despeito do que dispõe o art. 4º da Lei Complementar nº 87/96, o consumidor assumiria também a condição de sujeito passivo da obrigação tributária, a ele conferindo legitimidade para suscitar a ilegalidade da tributação e repetir o imposto supostamente indevido – tal como assentado na jurisprudência restaurada – visto que a norma inscrita na lei de concessões, atuando em domínio temático próprio, não ofereceria suporte normativo adequado para definição do contribuinte do ICMS, para conferir, por arrastamento, legitimidade a terceiros para questionar em juízo a legalidade de determinada exigência tributária.

Com efeito, o direito do usuário de receber da concessionária informações para a defesa de seus interesses, assegurado pela Lei n 8078/90, não gera qualquer desdobramento no plano tributário e nem interfere na relação jurídica, de natureza tributária, estabelecida entre o sujeito ativo e a pessoa obrigada ao pagamento do imposto, a ela não dizendo respeito, e nem pode transmudar a relação de direito público, de natureza tributária, numa relação de consumo, de natureza privada, portanto, como deixa antever o acórdão, como é, de resto, da jurisprudência do próprio Tribunal (REsp 478.958, Relator Min. Luiz Fux).

Por conseguinte, o consumidor tem ação, se e quando for o caso, somente contra a concessionária, no âmbito das relações de consumo, e não contra o sujeito ativo da obrigação tributária, com o qual não mantém qualquer relação jurídica material. São campos diversos e autônomos, cada qual sujeito a disciplina jurídica própria, que não se sujeitam a aproximações e interferências recíprocas.

A mudança da orientação jurisprudencial – é a inferência que se permite extrair – acaba por proporcionar ao consumidor intensivo meio para suportar a repercussão econômica do imposto em valor inferior àquele que teria servido como base de cálculo do ICMS e recolhido pelo fornecedor, em face do qual, em razão do disposto no art. 12, do Decreto nº 62.724/68, o valor da tarifa devida deve corresponder ao da demanda de potência contratada, salvo se superior à demanda medida no período de faturamento.

A solução proposta conduziria, assim, ao rompimento da lógica do sistema, em ordem, inclusive, a autorizar à concessionária adotar como base de cálculo do ICMS um valor eventualmente inferir ao cobrado na fatura de energia elétrica, à revelia, portanto, do que dispõe o art. 13, § 1º, II, “a”, da Lei Complementar nº 87/96, que, assim, extrairia proveito de uma decisão judicial ofertada a pedido e em benefício de terceiro.

Ademais disso, é manifesta a precariedade da “ratio decidendi”, quando consigna, na linha de conhecido magistério doutrinário, que “a concessionária assume o papel de contribuinte de direito apenas “formalmente”, assim como o consumidor também assume a posição de contribuinte de fato em caráter meramente “formal”, pois tal afirmativa “leva a classificar o contribuinte ora como sujeito passivo, ora como mero coletor do imposto, que o arrecada e transfere para o Estado por conta e à custa do terceiro: se o tributo é legítimo, o contribuinte assume a posição de sujeito passivo, que responde perante o Estado, ainda que não logre repassar ao consumidor o respectivo ônus financeiro; se o tributo é ilegítimo, o contribuinte se transforma então conceitualmente em arrecadador de imposto, hipótese em que a obrigação tributária teria de subsistir sem sujeito passivo, uma vez que o Estado, não reconhecendo o consumidor como devedor, dele não pode cobrar o tributo” (Brandão Machado, “Repetição do Indébito no Direito Tributário”. “In” Direito Tributário: Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. SP. Saraiva, 1994).

Observa ainda o mesmo jurista, a propósito do tema, que, “ao pagar o preço contratado, o terceiro nunca faz um pagamento indevido de tributo, pois não paga dívida inexistente. Para caracterizar o enriquecimento injustificado, necessário seria que o tributo constituísse obrigação do terceiro e que, não sendo devido, lhe fosse indevidamente exigido pelo “solvens”. Como, porém, o tributo é de responsabilidade de quem satisfaz o pressuposto da incidência, o seu único devedor, e não do terceiro, não há possibilidade lógica de ocorrer a hipótese de o terceiro pagar o indevido”.

Por conseguinte, “o elemento tributo que se insere na relação entre o vendedor e o comprador é de conteúdo econômico, não jurídico: tributo é apenas o nome de uma parcela dentre outras tantas, que compõem o preço, mas que não é paga pelo terceiro a título de tributo, uma vez que o terceiro nada deve a esse título”, conclui.

Se não bastasse, a atual orientação jurisprudencial rompe com toda a dogmática jurídica construída em torno do tema e destoa da jurisprudência de há muito consolidada no âmbito do STF, em face da qual, “Não é possível opor a realidade econômica à forma jurídica para excluir uma obrigação fiscal precisamente definida em lei. O contribuinte de fato é estranho à relação tributária e não pode alegar, em seu favor, a imunidade recíproca” (RE 71.300, Relator Min. Bilac Pinto), razão pela qual a imunidade prevista na alínea “a” do inciso VI, do art. 150, da CF, não beneficia a entidade pública em relação ao ICMS incidente sobre operações relativas à aquisição de energia elétrica e prestação de serviços de telefonia, visto que não é contribuinte de direito, dado tratar-se precisamente de um contribuinte de fato (AI 844.401-AgR/MG, Rel. Min. Ayres Britto; AI 671.412-AgR, Rel. Min. Eros Grau; RE 626.541 e AI 664.610, Rel. Min. Celso de Mello; AI 652.207, Rel. Min. Cármen Lúcia; AI 805.295-AgR/MG; ARE 663.552-AgR/MG, AI 634.050-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; AI 629.785-AgR e AI 550.300, Rel. Min. Gilmar Mendes; AI 574.042-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie; AI 488.132, Rel. Min. Marco Aurélio; RE 485.855, Rel. Min. Dias Toffoli e RE 344.729, Rel. Min. Joaquim Barbosa).

A tese consagrada no acórdão teria melhor sorte se Rubens Gomes de Sousa, no Anteprojeto do Código Tributário Nacional, tivesse cogitado de trazer para a relação jurídica entre o Es¬tado e o credor do tributo passível de restituição a figura do chamado contribuinte econômico, que Gilberto de Ulhôa Canto, também integrante da Comissão, chegou a sugerir, para permitir ao terceiro que houvesse suportado o ônus do tributo a sub-rogação no direito à restituição (“Codificação do Direito Tribu¬tário”, publicação do IBDF nº 4, Rio de Janeiro, 1955, p. 309). A proposta, entretanto, a princípio acolhida pela Comissão, acabou recusada.

O que foi até agora exposto permite concluir que deve ser afastada qualquer cogitação do ICMS como categoria ou fenômeno econômico, como já advertia Cléber Giardino (RDT, 25/26, p. 189), pois, embora seja perfeitamente admissível considerar o tributo estadual como um elemento componente dos custos e preços da mercadoria, algo, portanto, que se encontra pressuposto na atividade negocial, que acaba onerando o preço das mercadorias, tais considerações são válidas e corretas, mas apenas à ótica econômica, mesmo porque, a quem se impõe a obrigação do pagamento, defere-se o poder de exigir, correspondentemente, sua restituição, quando a exigência fiscal se mostre ao desamparo da lei. Ou, por outras palavras, tem pretensão de restituição contra o Estado somente aquele a quem a lei impõe a obrigação de pagar o imposto.

Como, para o Direito, só importam aqueles aspectos que tenham sido incorporados à norma jurídica, as considerações de ordem econômica, a despeito de versarem aspectos da realidade do imposto, não são contempladas nas normas jurídicas editadas com fundamento imediato na Constituição, que a nenhum deles dizem respeito.

Entretanto, no caso, não é difícil constatar que o entendimento adotado repousa em considerações meramente extrajurídicas, cujas premissas, de resto, não encontram suporte fático adequado, deixando órfãs de igual solução, de resto, pretensões idênticas, formuladas pelos demais “contribuintes de fato”, destinatários de mercadoria e usuários de serviços tributados pelo imposto estadual, excluídos do regime da exploração de atividade econômica objeto de concessão.

A contaminação dos conceitos do direito tributário com os princípios que informam as ciências das finanças compromete, sem dúvida, a correta prestação jurisdicional, e, além do mais, a nova orientação jurisprudencial não parece conformar-se com expressa e específica disposição legal, inscrita no art. 4º da Lei Complementar nº 87/96, editada que foi para conferir especificidade, no caso do imposto por ela disciplinado, à generalidade do enunciado do art. 121, do Código Tributário Nacional, visto que a definição do contribuinte do ICMS, por ele ofertada, constitui mesmo matéria sob reserva de lei constitucionalmente qualificada (CF, art. 155, § 2º, XII, “a”), além de inscrever-se também no elenco de normas gerais de direito tributário (CF, art. 146, III, “a”).

A exigência dessa espécie normativa para dispor sobre a matéria se explica, visto que “expressa a predisposição normativa para submeter todos os entes federados e administrados à mesma pauta de conduta, como instrumento de harmonização e estabilização de expectativas próprio do pacto federativo e do sobreprincípio da segurança jurídica” (RE 228.339, Rel. Min. Joaquim Barbosa).

Diante disso, a definição do contribuinte do ICMS constitui, portanto, matéria que, à ótica do constituinte, pareceu exigir tratamento uniforme, de âmbito nacional, não permitindo a Constituição que outras categorias de contribuintes possam ser criadas por construção jurisprudencial ou mesmo pela lei ordinária instituidora do tributo, visto que, como o tema tem a ver com a própria competência tributária, só a lei complementar poderá dispor sobre tal matéria (Hamilton Dias de Souza, “Curso de Direito tributário”, Saraiva, 1982, p. 35-6)).

Tem-se, então, que a equiparação da figura do consumidor final à pessoa legalmente obrigada ao pagamento do imposto, simplesmente por que suporta o respectivo ônus, feita pelo acórdão, incursiona em domínio normativo constitucionalmente reservado à lei complementar, incidindo, por efeito de direta transgressão ao que prescreve a própria Constituição da República, em situação de evidente contrariedade a normas constitucionais, como o reconhece o magistério de autorizada doutrina (Geraldo Ataliba, “Lei Complementar na Constituição”, p. 30, 1971, RT; Souto Maior Borges, “Lei Complementar Tributária”, p. 34/35, 1975, RT/EDUC; Celso Bastos, “Lei Complementar”, p. 16/17, 1985, Saraiva), entre outros.

Por último, já se observou, o princípio da reserva de lei complementar contém limites não só para o Legislativo, mas também para o Poder Executivo e para o Poder Judiciário (Gilmar Mendes, in RDA 195/43), uma vez que o sistema constitucional não prestigia qualquer correção interpretativa, juridicamente equivalente a manifestação legislativa nova, por órgão que não detém poderes para tanto (o intérprete ou o aplicador da lei), como é da jurisprudência da Suprema Corte, pelo que não se admite ao aplicador da lei, a partir de uma exegese própria, distanciando-se do direito posto e atuando como legislador ocasional, modificar o discurso normativo, para criar nova categoria de contribuinte, legitimando-o a repetir o indébito.

Nesse contexto, a produção heterônoma de atos de natureza legislativa não encontra respaldo em nosso ordenamento constitucional, e, além do mais, o disposto no art. 4º, da Lei Complementar nº 87/96, não constitui um enunciado aberto, portador de mais de um significado, que pudesse comportar a interpretação ofertada pelo acórdão.

De resto, decidindo na forma exposta, é dado concluir que acabou o acórdão revelando incondicional adesão de seus fautores à doutrina da interpretação econômica do direito tributário, esvaziando, por último, o principal escopo do recurso especial, vocacionado que é, precisamente, a proporcionar ao Tribunal de sobreposição a fixação de uma correta, uniforme e, na medida do possível, duradoura interpretação do direito federal.

José Benedito Miranda

Procurador do Estado (MG) e ex-Procurador-Geral da Fazenda Estadual (MG).

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