Da teoria ao fato: reorientando os debates sobre os limites do planejamento tributário
Sergio André Rocha
Um dos temas tributários que desperta debates mais acalorados é o planejamento tributário ou, mais especificamente, os seus limites. Muitas vezes tenho a impressão de que a maioria dos especialistas em tributação que lidam com esta matéria, seja profissionalmente, seja academicamente, acreditam que existem dois grupos que defendem posições absolutamente opostas: um primeiro que defenderia um direito fundamental à economia tributária e, portanto, sustentaria uma liberdade absoluta do contribuinte de praticar atos e negócios jurídicos lícitos com a finalidade de deixar de pagar, reduzir ou postergar o dever tributário, desde que antes da ocorrência do fato gerador; e um segundo grupo que defenderia a existência de um dever fundamental de pagar tributos e, consequentemente, a existência de limites ao planejamento tributário legítimo.
Uma classificação binária como esta é, sem a menor sombra de dúvidas, redutora das complexidades e particularidades das diversas teorias sobre os limites do planejamento tributário que buscam protagonismo nos debates nacionais. Esse reducionismo binário, tão ao gosto de alguns setores da literatura tributária brasileira, mostra-se simplesmente incorreto e mal representa a realidade.
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Tenho sustentado que o debate sobre o planejamento tributário tem sido obscurecido pela interposição de uma camada de teórica — ideológica, axiológica e principiológica — que desloca a discussão da realidade fática para questões teórico-abstratas, criando falsas controvérsias. [1]
Comecei minha carreira na área tributária em 1998, em uma empresa de auditoria das então chamadas “Big 5”. Ainda como um assistente, dando os primeiros passos na tributação, fui apresentado à operação que hoje conhecemos como “casa e separa”. Em um resumo ultrasimplificado, o que se passa em um “casa e separa” é que, ao invés de realizar uma compra e venda de uma participação societária, que geraria um ganho de capital tributável, realizam-se uma série de atos societários que fazem com que a empresa compradora vire sócia da empresa vendedora, aportando o preço como aumento de capital, para, no instante seguinte, deixar a sociedade com o ativo que seria objeto da venda, que em casos concretos poderia ter valor patrimonial centenas de vezes inferior ao montante aportado. Tudo isso, naquele meu período de tributarista iniciante, acontecia no mesmo dia. Então, de manhã um investidor aportava R$ 1 bilhão na empresa para, ao fim do dia, após uma cisão, sair com uma participação societária de R$ 100 mil de valor patrimonial. Era como se fazia a compra e venda de participações societárias na década de 1990.
Nos primeiros anos dos anos 2000 o “casa e separa” foi se tornando um “planejamento tributário” proscrito. Me recordo que, em 2005, estava trabalhando com um grande grupo alemão na aquisição de uma empresa em São Paulo. O vendedor brasileiro propôs ao comprador fazer um “casa e separa”. Meu cliente reagiu indignado. Como poderia confiar na empresa brasileira se tinham a coragem de apresentar uma estrutura tão evidentemente ilegítima para estruturar a operação? Atualmente, qualquer empresa brasileira de grande porte teria a mesma reação e dificilmente um consultor tributário apresentaria um “casa e separa” como uma alternativa válida de economia de tributos. Nessa mais de uma década houve, certamente, uma mudança na mentalidade tributária brasileira sobre os limites do planejamento tributário.
Quantos autores, hoje, independentemente da sua filiação teórica a correntes de segurança jurídica ou de justiça/solidariedade, defenderiam um “casa e separa” com todos os atos societários praticados no mesmo dia como uma forma planejamento tributário legítimo? Quantos diriam que está contido nos limites do direito fundamental à economia tributária? Muitos autores que são ferrenhos defensores da proteção em grau máximo da segurança jurídica dos contribuintes traçariam uma fronteira pra dizer que, neste caso, estaríamos diante de uma simulação e, portanto, de uma forma ilegítima de planejamento tributário.
Como no “casa e separa”, há diversos outros exemplos entre os casos que são objeto de autuações fiscais e chegam ao Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) para julgamento, de situações onde a maioria dos especialistas em tributação concordariam com a desconsideração dos atos e negócios jurídicos praticados pelos contribuintes pelas autoridades fiscais.
A mesma situação é verificada em casos concretos de planejamento tributário legítimo. Quem duvida que a segregação de pessoas jurídicas, quando há linhas de negócio, atividades e infraestruturas independentes, ou seja, quando realmente existem duas empresas, é válida mesmo que tenha como consequência a redução da carga tributária?
Ao participar do 7º Congresso Brasileiro de Direito Tributário Internacional, organizado pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário, causei alguma controvérsia ao dizer que o tributarista médio brasileiro tem um raciocínio conceitual que reduz os problemas tributários a questões relacionadas a conceitos e definições. Naturalmente que:
esta crítica não tinha nenhum caráter ofensivo, não tendo se tratado de uma análise qualitativa do pensamento defendido por este ou aquele autor; e
que a crítica não pode ser compreendida como uma rebelião contra os conceitos, devendo ser vista como um reconhecimento de que, não raro, enquanto estamos debatendo conceitos, a realidade já está a anos luz de nossa retórica. É o que se passa na questão do planejamento tributário.
De fato, autores podem passar páginas e mais páginas, congressos, seminários e conferências divergindo sobre o conceito de abuso de direito, ou se este é um critério válido para fundamentar a desconsideração e requalificação de atos ou negócios jurídicos privados pelas autoridades fiscais. Quando o debate se centra nessas questões conceituais as divergências parecem ser irreconciliáveis. Contudo, diante de um caso concreto, como um “casa e separa” implementado em um dia, as questões conceituais são irrelevantes. No fundo a questão é: é uma forma legítima de economia tributária? Ou estaríamos diante de uma simulação?
Em outras palavras, a discussão sobre conceitos é incapaz de avançar na construção de um sistema de controle de planejamentos tributários ilegítimos. [2] Muito mais produtiva seria o estudo sobre casos concretos, na busca pela determinação de critérios que separam planejamentos tributários legítimos de planejamentos tributários ilegítimos, independentemente do nome atribuído ao critério jurídico de ilegitimidade – se simulação, abuso de direito, fraude à lei, abuso de formas jurídicas, etc.
Estou cada vez mais convencido de que boa parte do debate sobre planejamento tributário está viciado por pontos de partida equivocados. Os casos concretos não se resolvem a partir da afirmação do direito fundamental de economia tributária ou do dever fundamental de contribuir. É hora de se atribuir maior relevância às situações concretas do que aos debates conceituais e teóricos. [3]
O que estamos sugerindo é que, antes de professar a filiação a alguma corrente absoluta pró ou contra planejamento, qualquer estudioso do Direito Tributário deve testar suas convicções diante de casos concretos, sendo que o tal “casa e separa” é certamente um bom ponto de partida. Se, ao rever um “casa e separa”, onde nenhum ato formalmente ilícito é praticado, a conclusão for no sentido de que seria legítima a tributação do ganho de capital que foi formalmente afastado pela série de atos societários praticados no mesmo dia, a posição de que há limites à economia tributária além da legalidade dos atos e da anterioridade do fato gerador se imporá. É claro que este é um exemplo extremo, mas é bom um começo.
Percebe-se, portanto, que a defesa do direito fundamental à economia tributária ou do dever fundamental de contribuir, sem o estudo dos critérios concretos de legitimidade do planejamento tributário, salvo em suas versões extremadas — a legitimidade de qualquer ato lício e anterior ao fato gerador como forma de economia fiscal legítima, com uma versão limitadíssima de simulação, de um lado; e a legitimidade da tributação por analogia, do outro — são posições vazias. Não conheço nenhum autor que negue o direito do contribuinte de pagar menos tributos de forma legítima. A questão está em saber quais são os limites da legitimidade. [4]
A discussão sobre os conceitos fundamentais que desafiam o tributarista é certamente relevante, e nada neste breve estudo sugere que devamos abandonar os debates conceituais por completo. Nada obstante, temos que reconhecer que, em alguns casos, o foco nos conceitos nos desvia dos verdadeiros problemas enfrentados pelos contribuintes. Isso é certamente o que se passa no planejamento tributário, onde nossos debates sobre a filosofia do planejamento tributário certamente tem deixado de lado o estudo dos limites concretos da liberdade do contribuinte de economizar tributos.
[1] Como já observamos, “o problema fulcral no debate sobre o planejamento tributário é uma preocupação excessiva com divergências de fundo axiológico. Quando se fala em solidariedade, justiça, segurança, dever fundamental de contribuir, iniciam-se discussões de fundo ideológico que opõem leituras completamente distintas da Constituição. Contudo, ao se deixar o plano principiológico constitucional para analisar os casos concretos, percebe-se que certamente existem diferenças entre os autores, contudo, elas são menos marcantes do que se imagina” (ROCHA, Sergio André. Para que Serve o Parágrafo Único do Artigo 116 do CTN Afinal? In: GODOI, Marciano Seabra de; ROCHA, Sergio André (Coords.). Planejamento Tributário: Limites e Desafios Concretos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018. p. 498).
[2] Já pontuamos, em outro estudo, que “o debate sobre o planejamento tributário calcado em questões axiológicas e princípios, de um lado, e na suposta monossemia de conceitos como simulação, abuso de direito, fraude à lei e abuso de forma, de outro, gerou uma verdadeira Torre de Babel tributária em que cada um fala sua língua e, o que é pior, com pretensões de universalidade, como se o seu conceito fosse, ou devesse ser, ‘o conceito’” (ROCHA, Sergio André. Planejamento Tributário na Obra de Marco Aurélio Greco. 2 ed.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. p. 112).
[3] Trazendo, aqui, nossa conclusão em outro texto: “[…] o debate sobre planejamento tributário calcado exclusivamente em aspectos axiológicos e principiológicos se esgotou. Não ajuda em nada à solução das controvérsias reais entre Fisco e contribuintes e alimenta uma secção doutrinária irreal. Já é passada a hora de entendermos o que pensa a doutrina Brasileira diante de casos concretos. Não se duvide que a questão central do planejamento tributário não é a interpretação da legislação tributária, é a análise dos fatos praticados pelo contribuinte. Assim, enquanto o foco da literatura estiver exclusivamente nos princípios e regras, estaremos condenados a replicar as lições que já eram enunciadas por Sampaio Dória e Amílcar de Araújo Falcão décadas atrás” (ROCHA, Sergio André. Para que Serve o Parágrafo Único do Artigo 116 do CTN Afinal? In: GODOI, Marciano Seabra de; ROCHA, Sergio André (Coords.). Planejamento Tributário: Limites e Desafios Concretos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018. p. 510).
[4] Ver: ROCHA, Sergio André. Planejamento Tributario e Liberdade Não Simulada. 2 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022. p. 17-18.
Sergio André Rocha
Professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), livre-docente em Direito Tributário pela USP (Universidade de São Paulo), diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), advogado e parecerista.