A expansão das contribuições e o pacto federativo no contexto da crise fiscal

Raquel de Andrade Vieira Alves

A Constituição de 1988, além de promover uma descentralização política e financeira em favor de estados e municípios, trouxe importantes modificações no campo social, inserindo direitos que, ao contrário dos existentes até então, exigiam uma postura mais ativa por parte do Estado com o fim de garantir o seu cumprimento; são os chamados “direitos sociais” ou “direitos de segunda geração”. Dentre eles, estão: a saúde, a educação, a assistência social e a previdência.

Dessa forma, o Estado chamou para si essas novas atividades e as qualificou como serviço público, assumindo o papel de principal promotor dos direitos e garantias fundamentais da coletividade, em contraposição àquela visão estática de Estado, que marcou o início do Constitucionalismo até a metade do século XX. Essa transformação política e social também se refletiu na política fiscal da época, implementada em diversos países, com reflexo direto no modelo fiscal brasileiro, e vem causando impactos político-financeiros até os dias atuais.

Isso porque, com o agigantamento das atividades estatais, tornou-se necessária a busca por novas formas de financiamento, evitando-se, contudo, a imposição de encargos financeiros sobre toda a sociedade, que visariam somente o benefício de alguns. Ademais, havia a necessidade de aumentar a arrecadação tributária, sem que isso gerasse descontentamentos, como ocorre no aumento de tributos tradicionais, mostrando à sociedade que os novos recursos teriam uma arrecadação vinculada a um determinado fim, sem possibilidade de desvios[1].

Estes fatores justificaram a necessidade de criação de exações próprias para o custeio do novo modelo protetivo, diversificando as bases de financiamento, a fim de evitar a dependência das contribuições incidentes sobre a folha de salários – mais sensíveis aos ciclos econômicos – e, ao mesmo tempo, blindando os recursos destinados ao atendimento dos direitos sociais da interferência do Tesouro Nacional[2].

A solução encontrada pelo Brasil, nesse sentido, foi a instituição de contribuições para o financiamento dessas novas atividades que demandavam uma intervenção estatal, bem como a criação de um orçamento específico para a seguridade social, separado do orçamento das demais receitas da União.

Assim, o crescimento dos compromissos financeiros estatais, decorrente do novo papel assumido pelo Estado, levou o governo federal à instituição das contribuições previstas pelo artigo 195 da Constituição Federal, de modo que o orçamento da seguridade social passou a ser constituído pelas antigas contribuições previdenciárias incidentes sobre a folha de salários e pelas novas contribuições incidentes sobre o faturamento e o lucro das empresas.[3]

Instaurou-se, desse modo, uma dualidade tributária a que Fernando Rezende denomina de “irmãos siameses”. Em suas precisas palavras: “O sistema tributário e o regime de financiamento da seguridade social, embora concebidos para serem entidades independentes, acabaram nascendo unidos pelo abdômen. ” [4]

Ao mesmo tempo em que a Constituição estabeleceu um novo regime para o financiamento da seguridade social, exclusivo para o custeio de atividades relacionadas à previdência, à assistência social e à saúde, permitiu também à União a instituição de outras espécies de contribuições, destinadas ao custeio das demais atividades de cunho social, bem como ao custeio das atividades de intervenção do Estado na economia e em setores de interesse das categorias profissionais e econômicas, cujas balizas foram trazidas no artigo 149 da Carta Magna.

Desde então, com o aumento acentuado da demanda por prestações de serviços sociais, a União tem aumentado vertiginosamente a arrecadação das contribuições sociais, tanto as destinadas ao custeio da seguridade social quanto as demais, através da revisão das suas bases de cálculo, do aumento de suas alíquotas e de sucessivas prorrogações de medidas que seriam supostamente transitórias, como foi o caso da Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF), instituída pela Lei 9.311, de 24 de outubro de 1996.

Não bastasse a incoerência do modelo pátrio, em que contribuições para a seguridade social não previdenciárias são utilizadas para o custeio de benefícios assistenciais e para a manutenção do próprio sistema previdenciário, restando inviável qualquer tentativa de segregação da clientela beneficiada, é recorrente a instituição e a majoração de contribuições pela União, sob o pretexto de financiar a seguridade social, mas que, na verdade, têm a sua arrecadação utilizada para outros fins.

E mais: a União, não apenas tem destinado ao seu orçamento fiscal as contribuições que deveriam integrar o orçamento autônomo da seguridade social, como tem interpretado o artigo 149 da Constituição como uma autorização para o estabelecimento de qualquer contribuição que intervenha na economia ou qualquer contribuição que possua uma finalidade social, abrindo um amplo leque de possibilidades para a instituição de contribuições com base nesse dispositivo, já que as do artigo 195 da Constituição devem necessariamente ser destinadas ao custeio da saúde, assistência e previdência.

Como exemplo mais recente, pode-se citar o aumento das alíquotas do PIS e da Cofins, incidentes sobre a importação e a comercialização de gasolina, óleo diesel, gás liquefeito de petróleo (GLP) e querosene de aviação e álcool, promovido pelo Decreto Federal 9.101, de 20 de julho de 2017, e alvo, inclusive, de decisões judiciais determinando a sua suspensão[5]. Conforme amplamente noticiado, o referido aumento faz parte da tentativa do Governo Federal de reduzir o déficit no cumprimento da meta fiscal do exercício e não propriamente para o financiamento de programas vinculados à seguridade social[6].

Ainda que se sustente a finalidade eminentemente extrafiscal do PIS e da Cofins incidentes na importação dos referidos produtos, o único objetivo possível seria o custeio de atividades relacionadas à seguridade, não só em virtude da vinculação da destinação, como também pelo fato de que há espécie própria de contribuição, cuja finalidade é justamente a de promover a intervenção do Estado na economia. É o caso da Cide-combustíveis, em que a natureza comporta essa justificação.

O cenário de crescimento extraordinário da arrecadação tributária via contribuições pode ser explicado, basicamente: (i) pela facilidade na sua arrecadação e controle, por parte da União; (ii) pela maleabilidade da legislação de regência; (iii) e, finalmente, o ponto que mais interessa ao presente artigo, pela sua exclusão do sistema de participação na arrecadação, representando uma receita exclusiva da União.

Tal fato explica, inclusive, o porquê de se majorar as alíquotas do PIS e da Cofins, ao argumento da observância à sua finalidade extrafiscal, ao invés de utilizar a Cide-combustíveis. É que esta última deve ter a sua receita partilhada com os Estados e os Municípios, de acordo com o mandamento constitucional do artigo 159, III e parágrafo 4º, o que já não ocorre com as contribuições destinadas à seguridade social.

Ressalte-se que, ao apreciar a constitucionalidade da contribuição de 10% sobre os depósitos ao FGTS, na ADI 2.556[7], o ministro Joaquim Barbosa fez uma importante digressão acerca das contribuições, reconhecendo que, tendo em vista não terem a sua arrecadação partilhada com os entes subnacionais, as mesmas escapam ao Pacto Federativo:

[…] A espécie tributária “contribuição” ocupa lugar de destaque no sistema constitucional tributário e na formação das políticas públicas. Espécie tributária autônoma, tal como reconhecida por esta Corte, a contribuição caracteriza-se pela previsão de destinação específica do produto arrecadado com a tributação. As contribuições escapam à força de atração do pacto federativo, pois a União está desobrigada de partilhar o dinheiro recebido com os demais entes federados. Por outro lado, a especificação parcimoniosa do destino da arrecadação, antes da efetiva coleta, é importante ferramenta técnica e de planejamento para garantir autonomia a setores da atividade pública. […]

Todo esse contexto tem causado um sensível desequilíbrio no sistema de participação na arrecadação tributária, não só porque a União passou a ter uma forte arrecadação com a instituição de tributos não partilháveis, como porque isso possibilita a ela uma significativa redução nos impostos federais partilhados com os estados e municípios, através das políticas desonerativas. Então, quando o governo federal prefere a instituição de uma contribuição ao incremento na arrecadação do imposto de renda e do imposto sobre produtos industrializados, com o único intuito de aumentar a receita tributária, ela está retirando uma boa parte dos recursos que seriam distribuídos aos estados e municípios.

Contudo, não é demais lembrar que, ao contrário dos impostos, as contribuições possuem, por imposição constitucional, a sua destinação vinculada a determinadas atividades estatais, não podendo ser aplicadas livremente pelo Executivo, ainda que os termos “finalidade social” ou “intervenção estatal” sejam abrangentes. Com efeito, a contribuição não é um fim em si mesmo, devendo estar indissociavelmente ligada ao custeio de determinada atividade, seja ela de cunho social ou interventivo[8].

Não obstante, o que se tem observado na prática é um abuso na instituição de contribuições pela União através, basicamente: (i) do desvirtuamento da finalidade de suas receitas; (ii) da instituição ou manutenção de contribuições, cujas finalidades não são ou já deixaram de ser atendidas; (iii) da instituição de contribuições, cujo grupo beneficiado se confunde com toda a coletividade, rompendo com a lógica da solidariedade de grupo; (iv) da sua exigência com base em alíquotas absolutamente descoladas da realidade, ou a partir de bases de cálculo que não guardam relação com a finalidade almejada, padecendo de ausência de referibilidade; e (v) da desvinculação de parte de sua arrecadação das finalidades que justificaram a sua instituição, através da manutenção de um mecanismo originalmente criado para ser temporário (Ver: http://www.conjur.com.br/2016-set-15/raquel-alves-dru-pacto-federativo).

Em um cenário como este, para conciliar a centralização de receitas através da expansão das contribuições com a descentralização dos gastos – já que boa parte da responsabilidade pela efetivação dos direitos sociais continua sendo da competência dos estados e dos municípios –, a solução tem sido ampliar as transferências intergovernamentais não previstas constitucionalmente.

Ocorre que a excessiva dependência dos estados, e principalmente dos municípios, em relação às transferências federais, assim entendidas como as voluntárias, realizadas mediante convênios para o cumprimento de programas governamentais específicos, fere a autonomia dos entes subnacionais e acentua os desequilíbrios federativos.

Nesse ponto, a descentralização fiscal só é saudável quando os governos subnacionais são responsáveis por financiar com recursos próprios uma boa parte de seus gastos e quando aquelas unidades federativas que não dispõem de bases tributárias suficientes financiam seus gastos através de transferências compensatórias que obedecem a princípios de equalização fiscal e a regras transparentes de repasse[9], o que não ocorre no caso das transferências voluntárias no Brasil.

Desse modo, a tentativa da União de “substituir” a arrecadação federal dos principais impostos de sua competência pelas contribuições, nos últimos anos, representa o grande desafio do federalismo fiscal brasileiro, com vistas ao aperfeiçoamento das relações entre as esferas de governo e à manutenção da autonomia dos entes subnacionais. Além disso, constitui um entrave à aproximação do modelo de tributação do país dos modelos adotados em países desenvolvidos, nos quais o imposto sobre a renda adquire especial importância em termos de justiça fiscal.

Em tempos de crise fiscal, ao invés de aumentar a arrecadação através do incremento da receita das contribuições, melhor seria que o Governo Federal investisse em soluções que, ao lado do corte de gastos, privilegiassem, ao mesmo tempo, a qualidade na tributação e o reequilíbrio do pacto federativo. Um primeiro passo para tanto, seria assumir o enorme papel que as participações na arrecadação possuem atualmente no federalismo pátrio, prestigiando-se a arrecadação dos principais impostos federais em detrimento da arrecadação baseada em contribuições.

Imersa no contexto apresentado neste artigo, será lançada a obra Federalismo Fiscal Brasileiro e as Contribuições, no dia 23 de agosto às 18hs, na Biblioteca do Supremo Tribunal Federal. Com prefácio escrito pelo ministro Luiz Fux, o livro é fruto da dissertação de mestrado defendida pela autora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), dentro da linha Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento.

[1] IBRAHIM, Fábio Zambitte. A Previdência Social no Estado Contemporâneo: fundamentos, financiamento e regulação. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p. 248.

[2] REZENDE, Fernando. Desafios do Federalismo Fiscal. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 84.

[3] Ibid. p. 85.

[4] Ibid. p. 84

[5] Vide: Ação popular nº 1007839-83.2017.4.01.3400, 20ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, em 25/07/17.

[6] http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-07/governo-divulga-aumento-de-aliquota-do-piscofins-sobre-combustiveis

[7] BRASIL. STF. Tribunal Pleno. ADI nº 2556/DF. Ministro Relator Joaquim Barbosa. Julgada em 13.06.12. DJ de 20.09.12.

[8] Nesse sentido: Ricardo Mariz de Oliveira in “Contribuições de intervenção no domínio econômico – Concessionárias, permissionárias e autorizadas de energia elétrica – ‘Aplicação’ obrigatória de recursos (Lei n. 9.991)” In: GRECO, Marco Aurélio (coord.). Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico e Figuras Afins. São Paulo: Dialética, 2001. p. 379-381.

[9] REZENDE, Fernando. Op. Cit. p. 95.

Raquel de Andrade Vieira Alves

Assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal e mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Uerj.

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