STF afasta cobrança de ITCMD sobre doação ou herança no exterior

Por Marcela Villar — De São Paulo

Uma lacuna legislativa tem permitido a contribuintes receberem doações ou herança sem pagar o ITCMD. São casos envolvendo transmissões de bens instituídas no exterior. Em duas decisões recentes, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), afastou a cobrança do imposto estadual. Uma delas já foi ratificada pela 1ª Turma e a outra é analisada nesta semana, no Plenário Virtual.

São as primeiras manifestações do Supremo sobre o assunto, de acordo com tributaristas. Nos dois processos, a ministra negou recursos do Estado de São Paulo e manteve o entendimento do Tribunal de Justiça (TJSP) de que não há respaldo legal para a tributação.

A tese dos contribuintes é que não há norma vigente válida que autorize a incidência do tributo – lei complementar federal ou estadual. Ao Valor, a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP) informou que vai recorrer.

O ITCMD incide sobre doações e heranças e a alíquota varia de 4% a 8%. De janeiro a julho deste ano, o governo paulista arrecadou R$ 2,7 bilhões com o tributo, 43% a menos que o mesmo período de 2024. Representou 12% da receita tributária em 2025, de R$ 22,3 bilhões até então.

A polêmica surgiu com a edição da Emenda Constitucional nº 132/23 – a reforma tributária. O texto estabelece que, enquanto não for editada lei complementar sobre o tema pelo Congresso Nacional, valem as normas estaduais. Só que a lei paulista foi considerada inconstitucional pelo TJSP, em 2011, e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2021, com repercussão geral – o que vale para outros Estados e o Distrito Federal.

Os ministros definiram que os Estados e o Distrito Federal não possuem competência legislativa para instituir a cobrança de ITCMD sobre doações e heranças no exterior (RE 851108). De acordo com eles, a Constituição Federal estabelece que cabe à lei complementar federal – e não a leis estaduais – regular a questão. Até hoje, a norma federal não foi editada, segundo advogados.

A Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (Sefaz-SP) entende que é possível cobrar o imposto mesmo sem nova lei estadual. Na visão do órgão, a EC 132/23 torna novamente válida a Lei nº 10.705, de 2000, considerada inconstitucional. Essa argumentação foi negada pelo TJSP, o que foi mantido pela ministra Cármen Lúcia.

Um dos casos trata de doação feita por contribuinte no Reino Unido para donatário em São Paulo (RE 1553620). Na visão da relatora, o TJSP aplicou de forma correta a tese de repercussão geral do STF. Ela seguiu o parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR). “Como assinalado no acórdão recorrido, a ausência de base legal a sustentar a cobrança do imposto estadual torna inviável o reconhecimento da incidência tributária na espécie em exame, mesmo após a edição da Emenda Constitucional nº 132/2023”, diz ela no voto.

A PGE-SP, no recurso, argumentava que o imposto poderia ser cobrado a partir de 2023, por conta da emenda constitucional. Mas sobre esse ponto, a ministra afirma que envolve reanálise de prova, o que não pode ser feito pelo STF.

No novo agravo em análise nesta semana no Plenário Virtual, a ministra voltou a rejeitar o pedido do órgão e aplicou multa de 1% por “abuso do direito de recorrer” se o entendimento for unânime. Ainda faltam os votos dos outros quatro ministros. A votação acaba na sexta-feira.

O segundo processo envolve a transmissão de quotas de uma empresa localizada nas Ilhas Britânicas, em razão de abertura de sucessão no Brasil – repasse de uma mãe aos filhos. Nesse caso, em segredo de justiça, a ministra frisou que é preciso não só lei estadual, mas lei complementar para permitir a incidência do ITCMD – na ação, o tributo cobrado é de R$ 3 milhões.

“É necessária, nos termos da alínea a do inciso III do parágrafo 1º do artigo 155 da Constituição da República, a edição de lei complementar federal disciplinando as normais gerais para a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD, quando envolver doador residente ou domiciliado no exterior e os bens doados estiverem localizados em território brasileiro”, afirma a relatora na decisão, mantida pela 1ª Turma por unanimidade.

Entendimento da ministra está alinhado com a jurisprudência do Supremo”
— Ricardo Santos
O advogado Ricardo Hiroshi Akamine, sócio do PK Advogados que atua no caso, entende que, numa visão conservadora, só é necessário hoje a lei estadual. “O artigo 16 da emenda constitucional permite que os Estados cobrem ITCMD até que a lei complementar seja editada”, diz.

Akamine afirma que já tem ação transitada em julgado sobre o tema em que o governo de São Paulo nem levou a questão aos tribunais superiores. Há outro caso em Minas Gerais, que não chegou no Supremo. “O STF tem declaração de inconstitucionalidade envolvendo praticamente todos os Estados, determinando lei complementar.”

O tributarista Luiz Gustavo Simionato, do LCSC Advogados que atua no caso de doação no Reino Unido, acredita ser difícil a Fazenda reverter o entendimento da decisão monocrática. “A própria ministra cita uma decisão do ministro Alexandre de Moraes em que ele deixa claro que o artigo 4º da lei de São Paulo, a nº 10.705, foi declarado inconstitucional. Então é como se não existisse legislação estadual atualmente que permita essa cobrança”, afirma o advogado, citando a Rcl 58187.

Simionato lembra do Projeto de Lei (PL) nº 7/2024 em trâmite na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), destinado à instituição do imposto, mas que ainda não foi aprovado – há ainda o PL nº 199/2025 tramitando na Casa, também pendente de aprovação. Antes da sanção de nova norma, não há como o Estado fazer a cobrança, diz. “A Constituição ainda exige a lei complementar, mas, com a emenda constitucional, entendo que a partir da edição dessa nova lei, o Estado poderá cobrar o imposto”, completa.

Segundo advogados, a situação ocorre em outros Estados, como Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro, que também não editaram novas leis sobre o assunto desde 2023. Já Paraná, Pernambuco, Amazonas, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte e Bahia criaram novas normas.

O advogado Ricardo Santos, sócio do Lefosse, afirma que as decisões de Cármen Lúcia chamaram a atenção do mercado. Na visão dele, o entendimento da ministra “está alinhado com a jurisprudência do Supremo”. “A tese do Fisco é a questão da constitucionalidade superveniente e já houve algumas decisões do STF que reconheceram não existir constitucionalidade superveniente”, diz ele, citando o RE 390840 e o RE 346084. “Se uma lei foi declarada inconstitucional, é necessário uma nova prevendo a instituição do tributo.”

Ele também lembra de dois julgados de 2025 em que o Supremo afirmou não ser necessário os Estados editarem novas leis para a cobrança, mas elas só produziriam efeitos a partir da edição da lei complementar (RE 1525264 e RE 1527727).

Santos reforça que entre 2021, quando o Supremo declarou a lei de São Paulo inconstitucional, e 2023, quando foi editada a EC 132, não se pode cobrar o tributo. “A partir de 2023, com a lei nacional, aí sim todos os Estados puderam passar a ter uma lei cobrando o imposto, mas nem todos editaram”, diz.

Em nota, a PGE-SP afirma que recorrerá das decisões, para que se reconheça a vigência do artigo 16 da EC nº 132/2023 e “a plena eficácia do artigo 2º da Lei Estadual nº 10.705/2000”. “A PGE-SP permanece convicta de que a reforma tributária realizada pelo artigo 16 da Emenda Constitucional nº 132/2023 supriu diretamente o vácuo legislativo identificado pelo STF no Tema 825 da repercussão geral e na ADI 6.830 e ampliou a eficácia da legislação tributária estadual para autorizar a cobrança do ITCMD sem distinção entre transmissões nacionais e internacionais”, diz.

Por Valor Econômico

23/09/2025 00:00:00

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