Reforma prevê mecanismos para evitar litígios sobre novos tributos
Por Jéssica Sant’Ana e Beatriz Olivon — De Brasília
O principal projeto de lei de regulamentação da reforma tributária (PLP nº 68/2024) prevê a criação de um comitê e de um fórum de harmonização das regras da Contribuição (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que entrarão em vigor a partir de 2027. O primeiro colegiado será formado por representantes dos Fiscos e do Comitê Gestor do IBS e o segundo, pelas procuradorias da União, Estados e municípios. O objetivo é que essas duas instâncias atuem em conjunto para garantir que haja um único entendimento sobre a aplicação dos tributos, prevenindo litígios e insegurança jurídica.
As duas novas instâncias, que ainda serão criadas, vão atuar, por exemplo, quando houver interpretação diferente dada pela União e pelo Comitê Gestor do IBS. A CBS e o IBS terão um mesmo regramento, mas há a possibilidade de haver divergência entre os contribuintes e os entes sobre a aplicação desses tributos. É nesse contexto que serão criados o comitê e o fórum, que buscarão harmonizar o entendimento.
O fórum poderá ser provocado pelo presidente do Comitê Gestor e pelo ministro da Fazenda, enquanto o projeto de lei não delimitou a iniciativa para provocação do comitê de harmonização, que deverá atuar de ofício, se não houver mudanças no texto da proposta. As reuniões serão periódicas, observado o quórum de participação mínimo de três quartos dos representantes. As decisões serão por consenso entre os presentes.
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As resoluções que forem aprovadas pelo comitê de harmonização terão de ser seguidas pelas administrações tributárias da União, dos Estados e dos municípios. Já as resoluções do fórum valerão para as procuradorias da Fazenda Nacional e dos entes subnacionais. Também pode haver ato conjunto do comitê e do fórum de harmonização. Nesse caso, o entendimento deverá ser aplicado para os Fiscos e as procuradorias.
“São [o comitê e o fórum] um incentivo à harmonização. Não faz sentido o Comitê Gestor [do IBS] e União terem interpretações jurídicas diferentes de tributos que são gêmeos. Então, espero que a cada apontamento de divergência, tudo seja rapidamente harmonizado, que o contribuinte não tenha sinais diferentes”, afirma Leonardo Alvim, procurador da Fazenda Nacional e assessor do advogado-geral da União para questões tributárias. Ele é membro da Comissão de Sistematização criada pelo governo para tratar dos projetos de regulamentação da reforma tributária.
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Alvim esclarece que não há uma obrigatoriedade de harmonização, mas ela será importante para garantir isonomia e evitar judicialização. Não há uma definição para o início do funcionamento das duas novas instâncias, mas deve acontecer tão logo entrem em vigor os novos tributos.
Os dois colegiados não vão substituir o trabalho que já é hoje desempenhado pela Receita Federal ao responder consultas públicas de contribuintes, nem o da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), que tem como missão a interpretação da legislação tributária e o assessoramento dos órgãos do Executivo.
A novidade é que será acrescida a participação da Receita e da PGFN no comitê e no fórum de harmonização, respectivamente, com o objetivo de manter a simetria de tratamento entre os dois tributos. A harmonização buscada será para a edição e aplicação de normas, interpretações, obrigações acessórias e procedimentos relativos.
O ganho maior será para os Estados, já que alguns adotam modelo de interpretação da legislação realizada somente pelas secretarias de Fazenda, sem a participação das respectivas procuradorias estaduais. “O modelo federal, por sua vez, tem a atividade de interpretação da legislação tributária realizada pela PGFN e pela RFB [Receita Federal], o que reforça a segurança jurídica e o princípio da legalidade”, explicou a PGFN. Há, ainda, a Câmara de Promoção de Segurança Jurídica no Ambiente de Negócios (Sejan), que atua para resolver divergências entre órgãos da administração pública federal – que podem, inclusive, ser apontados por contribuintes.
“No âmbito estadual e municipal, é um ganho imensurável [a criação do comitê e do fórum de harmonização]. Você tem um lugar para fazer a interpretação”, diz Alvim, já que o IBS será aplicado a todos os Estados e municípios, ao contrário do ICMS e do ISS, com regramentos distintos.
Para a advogada Thais Shingai, sócia no Mannrich e Vasconcelos Advogados, “existirem estruturas eficientes para os tributos serem o espelho um do outro é essencial para que o sistema funcione como deveria”. Por isso, acrescenta, estruturas como o comitê e o fórum de harmonização são muito importantes.
Segundo Maria Raphaela Matthiesen, do mesmo escritório, ficou faltando apenas a questão do contencioso em si. “Havia a expectativa no PLP 108 [do Comitê Gestor] que houvesse algum órgão dedicado a harmonização de jurisprudência administrativa”, diz.
Já a advogada Ana Carolina Brasil Vasques, fundadora do escritório Brasil Vasques Advogados, destaca que a criação do fórum e, principalmente, do comitê é relevante, mas não obrigatória. “Estamos falando de tributos gêmeos, se tivermos interpretações diferentes teremos mais complexidade, que é contra a base da reforma”, afirma. “A interpretação é o que mais causa instabilidade tributária.”
De acordo com a advogada, ainda não está totalmente claro quando será usado o comitê e seria relevante existir a obrigatoriedade. “Poderia haver a previsão de que o contribuinte não pode ser autuado enquanto o entendimento não for harmonizado”, diz.
Em nota técnica, a Procuradoria-Geral de Goiás alerta para “potencial submissão” do comitê de harmonização aos interesses da União, já que as disposições comuns ao IBS e à CBS serão aprovadas por ato conjunto do Comitê Gestor do IBS e pela União. Também há uma crítica ao poder dado ao Comitê Gestor na indicação dos nomes participantes do comitê e do fórum.
Procurados, Receita Federal e o Comsefaz (Comitê Nacional de Secretários de Fazenda dos Estados e dos Distrito Federal) não deram retorno até o fechamento da edição.