Receita exige declaração e tributação de trust constituído no exterior por offshore
Por Beatriz Olivon — De Brasília
Igor Nascimento: “Interpretação da Receita Federal vai além do que a lei estabelece” — Foto: Divulgação
A Receita Federal esclareceu que potencial beneficiário de trust constituído no exterior por offshore, com patrimônio para ser utilizado apenas em situações de extrema necessidade, deve declarar e tributar rendimentos e ganhos de capital no Imposto de Renda (IRPF), conforme a Lei das Offshores e Fundos Exclusivos, a nº 14.754, de dezembro de 2023. Este é o primeiro ano em que pessoas físicas devem declarar investimentos no exterior.
O entendimento está na Solução de Consulta nº 75, publicada ontem pela Coordenação-Geral de Tributação (Cosit). No texto, a Receita Federal afirma que a expectativa de direito, em caso de trust irrevogável e discricionário, é suficiente para caracterizar a condição de beneficiário. “Todas as pessoas indicadas, que possuem a expectativa de eventualmente receber uma distribuição do trust podem ser consideradas beneficiárias”, diz o órgão no parecer que vincula todos os auditores fiscais do país.
A resposta da Receita Federal preocupa advogados tributaristas. Para eles, o caso levado à consulta não seria abrangido pela lei e o entendimento poderia ser estendido para outras situações – abre brecha, em caso de trust revogável, para a declaração ser exigida de sócio de offshore. A consulta foi feita por um pai em nome do filho, potencial beneficiário de um trust irrevogável e discricionário, instituído em Delaware, em janeiro de 2008.
Na consulta, ele relata que o patrimônio inicial do trust foi aportado por empresas estrangeiras ligadas indiretamente a uma sociedade brasileira, sem envolvimento direto de uma pessoa física residente no Brasil. Por isso, o contribuinte perguntou se esse trust estaria sujeito às obrigações fiscais previstas na lei, considerando que nenhum beneficiário tinha acesso imediato ao patrimônio.
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O pai explicou à Receita Federal que a manutenção do patrimônio intocado no trust se justifica porque a família do acionista (que criou o trust) tem recursos suficientes para sua subsistência, deixando no trust uma reserva para “situações excepcionalíssimas”, como a necessidade de algum descendente sair do país por razões políticas ou sociais ou a falta de recursos para educação ou saúde, “situações estas que, considerando a realidade familiar, provavelmente nunca venham a ocorrer”.
“É muito possível e até previsível que os recursos do trust jamais venham para o patrimônio do consulente ou de algum descendente do acionista que hoje esteja vivo ou ainda venha a nascer, bem como é muito possível e previsível que isto ocorra somente ao término dos 150 anos de existência do trust, quando poderá haver transferência do patrimônio em favor de algum descendente que hoje nem está vivo, ou ainda pode ocorrer que um tal beneficiário seja residente fora do Brasil”, explica ele na consulta.
Na interpretação da Receita Federal, porém, para efeitos tributários, a mera expectativa de recebimento já é suficiente para que alguém seja considerado beneficiário, sem exigir que exista um direito adquirido imediato. Em trusts irrevogáveis, como o do caso, os beneficiários já são considerados titulares do patrimônio desde o momento inicial do trust, devendo cumprir imediatamente as obrigações tributárias previstas na legislação, inclusive declarando os ativos e tributando rendimentos e ganhos obtidos no exterior.
De acordo com a Receita, a Lei nº 14.754, de 2023, estabeleceu um regime de transparência fiscal para os trusts instituídos no exterior. Isso significa desconsiderar a estrutura jurídica do trust e atribuir, para fins tributários, a titularidade do patrimônio diretamente aos integrantes daquela estrutura. Por isso, conforme previsão do artigo 10 da norma, durante o prazo de vigência do trust, os rendimentos e os ganhos de capital relativos aos bens e direitos objeto do trust serão tributados na pessoa que for considerada como titular na data do fato gerador. No caso de trusts irrevogáveis, essa pessoa será o beneficiário.
Para a Receita, no caso concreto, admitir que o trust não teria um instituidor ou o instituidor deveria ser considerado o próprio trustee, esvaziaria de qualquer eficácia as disposições da Lei nº 14.754, de 2023, referentes ao instituidor. “Para contornar o regime de transparência, bastaria instituir um trust por meio do patrimônio de pessoas jurídicas – em especial, pessoas jurídicas residentes no exterior”, afirma a Receita na solução de consulta.
O advogado Daniel Loria, que liderou na Fazenda Nacional os projetos de alteração na tributação de offshores e fundos fechados em 2023, lembra que a declaração de Imposto de Renda de 2025 será a primeira sob os efeitos da lei. E que a norma veio para acabar com a postergação indefinida da tributação dos trusts no Brasil e trazer uma regra mais parecida com as aplicações financeiras no país (tributação com a alíquota de 15%).
Ainda segundo o advogado, o objetivo da lei era que os ativos não ficassem em um “limbo”. “Ou está com quem instituiu o trust ou com o beneficiário”, diz o advogado, acrescentando que a norma não traz expressamente a tributação para esse caso concreto, mas que ela é permeada pela preocupação de que os ativos não caiam nesse limbo. “Não sei se é o ideal forçar a transparência fiscal e jogar para a pessoa física. Mas deveria, pelo menos, forçar a ficar no balanço da offshore se ela é a instituidora.”
Para Igor Nascimento, sócio de tributário do SouzaOkawa, pela literalidade da Lei nº 14.754, no caso, o trust não deveria estar submetido à norma. “É uma total desconsideração da existência das pessoas jurídicas”, afirma. Para ele, a interpretação da Receita Federal vai além do que a lei estabelece e vai dar margem a discussões judiciais. “Vai dar confusão nas declarações de IRPF, muita gente pensava em não declarar, agora veio essa orientação.”
Considerando que se trata de um trust irrevogável, mas que estabelece condições específicas e associadas a eventos futuros e incertos, o advogado Rodrigo Schwartz, sócio do Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados considera que as circunstâncias presentes no caso concreto não foram disciplinadas pela lei. “Não é possível indicar com precisão, enquanto não implementadas as condições estabelecidas na declaração feita pelo trustee, quem são os beneficiários contemplados pelo trust”, diz.
Segundo Hermano Barbosa, sócio do BMA, desde a entrada em vigor da nova lei, os trusts voltaram a ser utilizados com maior frequência como instrumento legítimo de planejamento patrimonial e sucessório, mas só quando há patrimônio no exterior. “Por muito tempo seu uso era evitado, em muitos casos, em razão da falta de certeza sobre tributação que decorria da ausência de uma lei ou regulamentação que tratassem do tema de forma específica”, afirma.
Houve, acrescenta o advogado, “uma clara preocupação do legislador em determinar que alguém declare e tribute a renda decorrente desse patrimônio”. Mas, diz, expectativa de direito não qualifica beneficiário, “o que forma um precedente complicado”.
Procurada pelo Valor, a Receita Federal não deu retorno até o fechamento da edição.
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