Para especialistas, Lei do Devedor Contumaz tem problemas, mas acerta ao atacar fraudes
Aprovado nesta terça-feira (9/12) na Câmara dos Deputados, o projeto de lei que cria a figura do devedor contumaz acerta ao conceituar o tema pela primeira vez e atacar fraudes tributárias, que acabam gerando distorções concorrenciais, segundo os tributaristas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Porém, os especialistas apontam vários problemas no texto, que ainda está pendente da sanção do presidente da República.
Devedor deliberado ou contumaz é a pessoa física ou jurídica que transforma o não pagamento de impostos em estratégia de negócio planejada e recorrente, a fim de ter vantagem competitiva indevida. Um exemplo simples é deixar de pagar o ICMS para oferecer produtos mais baratos aos seus clientes. Estados e municípios terão um ano para criar suas regras específicas, caso contrário, a lei federal deve ser aplicada.
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Projeto do devedor contumaz foi aprovado nesta terça-feira na Câmara
O advogado Marcelo Annunziata, sócio da área de Tributário do escritório Demarest, chama a atenção para a pouca estrutura fiscalizatória do Fisco, que já mostra dificuldades com regramentos aprovados nos últimos anos, como a reforma tributária.
“O que vejo nos próximos anos é uma dificuldade maior de o Fisco se organizar em tudo isso que ele vai ter de fazer. O Fisco vai ter um trabalho muito difícil, porque a estrutura não está melhorando e não tem perspectiva de melhorar. Mesmo com os instrumentos legais, como o devedor contumaz, a gente ainda vai ter muito problema, muita dificuldade de aplicar na prática.”
Apesar dos desafios para o controle, ele avalia que, no futuro, a nova lei poderá fortalecer instrumentos dos quais hoje o governo já dispõe, mas que são pouco utilizados, como a medida cautelar fiscal de bloqueio de patrimônio e o arrolamento de bens na esfera administrativa.
Para Annunziata, o projeto acerta ao beneficiar contribuintes de boa-fé por meio do reforço de iniciativas administrativas, como o Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal (Confia), o Programa de Estímulo à Conformidade Tributária (Sintonia) e o Programa Brasileiro de Operador Econômico Autorizado (Programa OEA).
O advogado acredita que a regra deve gerar aumento da arrecadação e da regularização fiscal dos contribuintes. Por outro lado, ele vê pouca efetividade em relação aos devedores que são, de fato, contumazes.
“Para aquelas empresas que nunca vão pagar (os impostos), que estão sempre fugindo, talvez não resolva, mas ao menos se cria um cadastro para ter um melhor controle e evitar que a empresa continue a fazer isso reiteradamente.”
Código do Contribuinte
Além de estabelecer regras mais rígidas para a figura do devedor contumaz, o projeto também institui o Código de Defesa do Contribuinte. O advogado Gustavo Brigagão, presidente do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), vê com estranheza os dois regramentos terem sido aprovados de forma conjunta.
“De um lado, protege-se a Fazenda daqueles que usual e indevidamente se autofinanciam com o não pagamento de tributos; de outro, protege-se o bom contribuinte dos excessos costumeiramente praticados pelos órgãos fazendários. São interesses que se contrapõem.”
Para ele, o regramento do devedor contumaz traz a vantagem de proteger a livre concorrência e a igualdade tributária, mas os parâmetros adotados, como o piso de R$ 15 milhões para conceituar o devedor contumaz, “deixam descoberto um universo relevante de pequenos e médios inadimplentes contumazes, que também podem ser objeto de distorções significativas no ambiente concorrencial”.
O mesmo questionamento foi apontado pela advogada Fabiola Keramidas, ex-conselheira do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf) e sócia do Keramidas Advocacia. Ela afirma que existe um número considerável de devedores contumazes com valor de dívida inferior ao estabelecido pela regra, mas entende a necessidade de se criar um parâmetro.
“O devedor contumaz parte da premissa de que não vai pagar imposto. Isso pode ser com R$ 10 mil ou R$ 15 milhões”, disse ela. “Certamente vai haver judicialização.”
Para a tributarista, a nova regra deve retirar do mercado grandes empresas sonegadoras, ao mesmo tempo em que preserva companhias pequenas e médias.
“Vai ser salutar para o mercado como um todo, porque as empresas sonegadoras reiteradas de tributos fazem uma concorrência desleal com outras empresas que pagam os seus tributos.”
Gabriel Amarante também critica o piso de R$ 15 milhões, mas sob outra perspectiva. Segundo ele, o valor não constitui régua suficientemente elevada para caracterizar o devedor contumaz em tributos federais.
Ele afirma que, embora represente quantia significativa em termos absolutos, o valor é relativamente baixo quando confrontado com o volume total de arrecadação tributária no país, que ultrapassou R$ 3,7 trilhões em 2024.
“O limiar proposto abrange não apenas devedores intencionais de grande porte, mas também contribuintes envolvidos em disputas interpretativas legítimas de média escala.”
Sanções
O texto aprovado também define regras para a dinâmica de notificação das companhias pelo Ministério da Fazenda e estabelece um roteiro de sanções previstas. Um dos pontos sensíveis do projeto, segundo os especialistas, é a forma de diferenciação entre o devedor habitual e o reiterado.
O advogado Márcio Pollet, do Pollet Advogados Associados, avalia que as punições tratadas no projeto de lei complementar não tipificam a figura do devedor contumaz, pois atingem qualquer pessoa jurídica inadimplente com a União, e ainda dificultam a reestruturação dos contribuintes.
“Por si só me parece contraditório, à medida que uma das funções do Estado é exatamente fomentar o crescimento e reestruturação das empresas para a geração de empregos, de renda e tecnologia.”
Para ele, o sistema de intervenção e liquidação extrajudicial das pessoas jurídicas pela União, que deverá se repetir nos estados e municípios, fere a competência exclusiva do Judiciário. “No fim das contas, a administração pública terá mais poderes que o Poder Judiciário, que, após ampla defesa e contraditório, define se há requisitos para eventual decretação de falência de uma empresa.”
Fabiola Keramidas relembra que ainda não há no país uma regra para devedor contumaz, o que fazia com que uma empresa que estivesse em recuperação judicial, por exemplo, fosse classificada dessa forma apenas por possuir volume grande de dívidas ativas.
“O fato de hoje você ter uma legislação federal, que é uma lei complementar, que uniformiza o conceito, é fantástico. Abre critérios que antes não existiam. Nos estados e municípios, cada um fazia de um jeito. Então você vai ter uma segurança jurídica.”
A especialista, todavia, questiona o artigo 11 da lei, que considera como “inadimplência reiterada” a manutenção de créditos tributários em situação irregular em ao menos quatro períodos de apuração consecutivos ou em seis períodos de apuração alternados, no prazo de 12 meses. “Quatro meses é pouco. (Nesse período) Você pode ter um o calote de um grande fornecedor.”
Corrida por dividendos
A advogada também avalia como rigoroso o inciso III do parágrafo 5º do projeto, que, na prática, estabelece que uma empresa que está em situação fiscal comprometedora não poderá distribuir dividendos. Como consequência, a advogada alerta que poderá haver uma corrida para esses pagamentos.
“Se você distribuir lucro, se você pagar JCP (juros sobre capital próprio), se você reduzir capital ou se você pagar empréstimo e multa, isso é colocado (no projeto de lei) como um critério de fraude”, disse.
O entendimento do advogado Gabriel Souza Borges é de que o projeto representa um avanço ao fixar, pela primeira vez, critérios nacionais para identificar o devedor contumaz, antes tratado de forma dispersa pelos entes federados.
“O projeto trouxe parâmetros objetivos (inadimplência substancial, reiterada e injustificada), indicadores mensuráveis (valor mínimo e número de períodos de irregularidade), reforçou o contraditório com notificação prévia e direito de defesa e previu consequências severas, como restrições a benefícios fiscais, impedimentos para contratar com o poder público e limites ao uso da recuperação judicial.”
Ele ressalva, contudo, que o texto permanece limitado à dimensão tributária, sem integrar de modo consistente aspectos concorrenciais e penais ligados ao uso fraudulento da inadimplência.
“O cenário que se desenha é o de um avanço normativo significativo, mas ainda parcial, que exige futura complementação legislativa e regulatória para que a contumácia seja tratada como fenômeno sistêmico, com respostas proporcionais, coordenadas e efetiva.”
Sheyla Santos
é repórter da revista Consultor Jurídico.