Lula ‘não aceita matar a galinha dos ovos de ouro’ do investimento, diz Dias
Por Fabio Murakawa e Renan Truffi — De Brasília
Ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias defendeu, em entrevista ao Valor, a investida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva contra a meta de déficit fiscal zero para 2024, feita há uma semana em um café com jornalistas no Palácio do Planalto.
Especialistas em contas públicas, porém, criticam a ideia de mudar a meta. Para eles, seria um golpe no novo arcabouço, indicando que o ajuste fiscal levará mais tempo para ser alcançado.
Dias reconheceu que um país com as contas equilibradas tem um ganho com a redução do risco e, dessa forma, também na queda dos juros. No entanto, pontuou que o governo não abrirá mão da estratégia de somar investimentos públicos à tentativa de criar um ambiente favorável à multiplicação com investimentos privados. “Acho que o que o presidente não vai aceitar é matar a galinha dos ovos de ouro”, afirmou.
O ministro soma-se, assim, a integrantes do núcleo político do governo que defendem o afrouxamento da meta prevista na Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO). Essa visão contraria o discurso do Ministério da Fazenda, segundo o qual o governo deve perseguir a meta por meio da aprovação no Congresso de medidas que irão gerar novas receitas.
Alvo de especulações e de muito fogo amigo no processo da última reforma ministerial, ele sobreviveu no cargo e não esconde o desejo de continuar na Esplanada. O ministro também reforçou sua posição contrária à divisão da pasta, algo cogitado dentro do Planalto para abrigar no governo mais integrantes do Congresso.
Dias prometeu levar até o fim do ano a fila de candidatos ao Bolsa Família a um patamar de normalidade histórica, de cerca de 300 mil famílias. Mas disse que o benefício não deve ser reajustado no ano que vem, por causa da queda do preço dos alimentos verificada neste ano.
Na entrevista a seguir, o ministro conta também sobre sua passagem em um evento de combate à fome promovido pela ONU, na semana passada. E sobre como a segurança alimentar em Gaza foi debatida ocasião. O tema também foi discutido em um encontro com o papa Francisco no Vaticano.
Valor: O presidente se colocou contra a meta de déficit zero. Isso pode significar mais gastos sociais?
Wellington Dias: Temos assegurado no planejamento os recursos necessários para o social. E o presidente compreende que, além do social, aqui tem um fator que ajuda no crescimento econômico. Ele sabe a importância de investimentos públicos somando-se a investimentos privados para alavancar a economia. O que ele diz é que é preciso fazer a economia crescer, porque com a economia crescendo cresce também a receita e ajuda no equilíbrio das contas. Quando você adota uma medida radical de cortes, reduz a capacidade de investimento, e isso tem impacto na própria meta de crescimento econômico. Na minha visão, isso é uma avaliação correta do presidente Lula: quando trabalha um programa como o de habitação para os mais pobres, para a classe média, tem um efeito multiplicador na economia. Do outro lado, à medida que você faz investimentos em áreas como saúde, saneamento, ela também tem um efeito econômico, reduzindo a própria despesa. Essa posição dele, com certeza, mais à frente, vai levar uma decisão sobre a meta fiscal.
Valor: Mas não é importante o equilíbrio das contas públicas?
Dias: Todo esforço, claro, é para o equilíbrio. Porque um país com as contas equilibradas tem um ganho com a redução do risco, tem um impacto direto, por exemplo, na redução dos juros. Porque o país também tem dívida, e o juro elevado impacta as contas públicas. Porém, acho que o que o presidente não vai aceitar é matar a galinha dos ovos de ouro. A política de somar investimento público para criar um ambiente favorável à multiplicação com investimentos privados vai prosseguir.
Há necessidade de um olhar que leva em conta os mais pobres, mas também a classe média”
Valor: O senhor acha que esse déficit zero é muito exagerado?
Dias: O objetivo do presidente Lula e coordenado pelo ministro Fernando Haddad e a ministra Simone Tebet [Planejamento] é alcançar o melhor resultado possível do ponto de vista do zeramento do déficit. O que o presidente deixa claro é que não é razoável retirar das áreas que dão resultado para um equilíbrio seguro das contas públicas, como é o crescimento econômico, porque isso teria um resultado ruim para as próprias contas públicas. Ele mantém uma posição firme de que o resultado social não pode ser um corte por cortar, mas tem que ser em razão da melhoria da vida das pessoas na rede de proteção social.
Valor: O Bolsa Família vai ter aumento real para o ano que vem?
Dias: O Bolsa Família tem uma lógica, repassar um valor que seja capaz de viabilizar a capacidade de compra de alimentos e outras necessidades para as famílias de mais baixa renda ou que não têm renda. Ela é um socorro, ela é uma medida protetiva que tem um objetivo claro. No próximo ano, nós vamos analisar vários indicadores. O preço do alimento, que cresceu muito no Brasil, teve redução? Há sinais de que sim, em razão de um plano safra mais organizado, com juros mais baixos, com custos mais baixos. Estamos atentos aos efeitos das guerras, das mudanças climáticas, que são efeitos externos ao Brasil, porque dentro do Brasil nós temos um ambiente favorável à redução no custo de alimentos.
Valor: Se o principal balizador é o quanto as pessoas conseguem comprar de comida, o valor não deve ter reajuste. É isso?
Dias: Correto. O raciocínio é, o referencial é preço de alimentos. Claro que também ele está integrado a outros objetivos. São 33 programas. A preocupação número um, habitação. Por isso, o relançamento do Minha Casa, Minha Vida. Se a gente repassa esse valor para uma família, quando ela precisa pagar aluguel, isso já compromete uma parte dessa renda. Se essa família é atendida pelo Minha Casa, Minha Vida, ainda sem pagar prestação, como ocorre no Bolsa Família, sobra mais dinheiro para alimentação e outras necessidades.
Valor: O senhor já tem falado de tirar o Brasil do mapa da fome até 2026. É esse o objetivo?
Dias: Dentro dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, que o Brasil é signatário, o Brasil reafirmou a posição de alcançar essa meta e, junto com isso, a redução da pobreza até 2030. O presidente Lula, agora, na comemoração dos 20 anos do Bolsa Família, fez uma recomendação para que pudéssemos trabalhar todo o esforço para alcançar medições do Brasil fora do mapa da fome já até 2026. Isso aumentou a nossa responsabilidade, mas estou otimista. O Brasil vem, desde 2019, ano a ano, aumentando o número de pessoas na fome, ano a ano, tanto na medição brasileira como na medição da FAO. Em 2023, espero uma mudança dessa curva, em declínio.
Valor: O senhor já tem algum indicador de que a fome caiu no Brasil durante esses dez meses?
Dias: Temos um indicador do principal ponto, que é ter 92 % das famílias do Bolsa Família já fora da linha da pobreza, com renda, fruto de transferência e de trabalho, igual ou acima de R$ 218 per capita. Esse indicador é muito forte.
Valor: A fila do Bolsa Família estava em umas 600 mil pessoas. Como acabar com isso?
Dias: Veja só, sempre haverá fila. O Bolsa Família tem como base um Cadastro Único. E o Cadastro Único é um cadastro vivo. Todos os meses entram pessoas, todos os meses saem pessoas, conforme a regra. Olhando para trás, no ano passado, nós chegamos a uma fila de 2,7 milhões de famílias, o pico de filas em 2022. Agora, a gente vem desde janeiro reduzindo essa fila. Em novembro, nós vamos ter nova redução da fila. Em dezembro, queremos chegar àquele patamar que é próximo da normalidade, em torno de 300 mil, 350 mil, que é um patamar histórico desde que foi criado o Bolsa Família.
Valor: O presidente entregou a Caixa, que faz os pagamentos do Bolsa Família, ao Centrão. Isso pode afetar a efetividade do programa?
Dias: Nós já tivemos alterações em ministérios, Turismo, Esporte, Portos e Aeroportos. E em cada uma destas áreas, nós, de alguma forma, temos uma relação com o MDS. O presidente é o mesmo, a política é a mesma, alteram-se as pessoas, mas a política, as metas, os objetivos, são aqueles que o presidente Lula assumiu na eleição de 2022. E, neste aspecto, o diálogo é muito franco com os que vêm para compor o governo. A Caixa presta importantes serviços para o MDS. Os avanços que a gente solicitou vão prosseguir.
Valor: Esse controle orçamentário que saiu nos últimos anos do Executivo e foi para o Congresso prejudica as políticas sociais?
Dias: O ministro [de Relações Institucionais, Alexandre] Padilha, que coordena esta parte, tem dialogado com os líderes e os parlamentares da Câmara e do Senado na perspectiva de manter a regra das emendas individuais, de bancada e de comissão. Mas o governo sabe o que quer e aponta quais são suas prioridades para cada área. Em 2023, a gente ainda pegou um Orçamento com restos a pagar do governo anterior. Mesmo assim, tivemos um diálogo com vários municípios e vários parlamentares e foi possível já uma modificação na perspectiva de direcionar recursos para as reais necessidades. Então, a exemplo do MDS, eu digo que os demais ministérios, nesse aspecto, têm aí um cardápio de alternativas para que os parlamentares possam colocar suas emendas.
Não estranho que aqui e acolá o Congresso tenha posição diferente da do Executivo”
Valor: Mas o senhor acha que eles estão assimilando isso ou ainda há muita divergência com os objetos do governo?
Dias: Daquilo que tivemos de recursos direcionados pelos parlamentares no ano-base 2023, eu digo que tem tido total compreensão na perspectiva, até porque essas prioridades são pactuadas com municípios, com Estados, com as entidades. O parlamentar quer colocar recursos para onde o povo realmente precisa.
Valor: O senador Eduardo Braga (MDB-AM), relator da reforma tributária, apresentou uma ideia de alíquota zerada para itens da cesta básica e redução de 60% para uma versão estendida dela. Como o senhor vê essa ideia?
Dias: O presidente quer redução no preço geral dos alimentos para todas as classes sociais serem beneficiadas. Do ponto de vista do MDS, eu tenho um olhar especial para a cesta básica de alimentos. Porque aqui está um conjunto de produtos que o público [é o] do Cadastro Único, o público do Bolsa Família. É claro que pode alguém do Bolsa Família comprar uma picanha, mas eu estou lá olhando o preço do frango, do ovo, da carne em geral, ou seja, não apenas de uma situação que normalmente do dia a dia é uma exceção. Há necessidade de, sim, ter um olhar que leva em conta os mais pobres, mas também a classe média de forma especial. Acho que esse é o sentido da proposta que eu considero muito importante, apresentada pelo senador Eduardo Braga. A classe média, a classe alta têm condições de, no dia a dia, comprar o alimento necessário. A preocupação aqui, portanto, são a classe D e a classe E. Se carregar na tributação, aumenta o preço do alimento. E é isso que não queremos.
Valor: A briga vai ser, então, no projeto de lei complementar, que vai definir quais são os itens dessa cesta básica para a classe C, D e E? Ou a vai ser para alterar o texto agora?
Dias: Nós tínhamos toda uma preocupação no agora, porque quando se tentou colocar já a definição na Constituição do que seria a cesta básica, isso causou ali um risco muito grande. O texto que está ficando melhor, porque ele leva em conta a tradição alimentar regional, leva em conta esse conceito do alimento saudável e ainda garante que a gente tenha um custo de transporte menor. A população, quando vai comprar, a dona de casa especialmente, ela lembra do que vai servir na mesa, mas ela olha também o que é que tem preços mais baixos. Por isso que esse cuidado com a cultura alimentar de cada região do país é fundamental. Acho que esse caminho tem duas etapas, uma primeira é o conceito, uma segunda, aí sim a definição do que é a alimentação. Acredito que foi uma boa equação.
Valor: A Esplanada dos Ministérios tem senadores como o senhor, Renan Filho, Flávio Dino e Camilo Santana. Para alguns, isso enfraquece a base do governo no Senado. Concorda com essa análise?
Dias: Esses são líderes que também têm uma experiência executiva, e alguns anteriormente no Parlamento, que são importantes do ponto de vista do Executivo. Nós temos um conjunto de lideranças com experiência nesse diálogo e estamos também buscando ajudar mesmo daqui. Mas nosso maestro é o ministro Alexandre Padilha, e é o presidente Lula que tem o poder de decisão sobre onde podemos contribuir melhor.
Valor: Mas nessa recente reprovação do indicado à Defensoria Pública da União, com todos esses pesos-pesados ali, será que o governo teria uma derrota tão acachapante?
Dias: O presidente Lula, de forma transparente, foi a público e disse que ele foi alertado sobre o risco que havia na escolha. Em qualquer situação, com qualquer composição, o Parlamento é verdadeiramente autônomo. Estando cada um de nós aqui no Executivo ou lá no Legislativo. Não estranho que se tenha aqui e acolá alguma situação em que o Congresso tenha posição diferente daquela que o Executivo apresentou.
Valor: Também já se falou muito em dividir o MDS para entregar uma parte ao Centrão. O que o senhor acha dessa ideia?
Dias: O presidente Lula já foi a público e deixou claro que será mantido o nível de organização que fez esse modelo brasileiro ser referência para mais de 82 países. Veja que nesses 20 anos do Bolsa Família, nós temos estudos também divulgados agora recentemente em que 64% dos filhos e filhas das famílias saíram da pobreza. Ou seja, aquela geração que lá atrás era criança, agora já com idade mais avançada, superou a pobreza, interrompeu uma história de pobreza na família. Eu conto isso para explicar que Bolsa Família não é só transferência de renda. Ele está integrado com a proteção à saúde, com um conjunto de obrigações que protegem a própria criança. Não é possível fazer [política social] só com uma área do Bolsa Família. Tudo isso foi quebrado [durante o governo Bolsonaro]. A experiência anterior mostra que é um caminho que na prática levou o Brasil à situação que nós estamos. Eu digo que quebrar em dois ou três pedaços o MDS é quebrar a política que vem dando certo. Então, temos hoje uma posição pública do presidente de que os sistemas vão trabalhar juntos.
Valor: O senhor já foi alvo de muito “fogo amigo” dentro do governo. Deseja permanecer no ministério até o fim do mandato de Lula?
Dias: Eu estou animado para seguir adiante, mas o meu comandante é Luiz Inácio Lula da Silva.
Valor: O senhor contou que a questão da fome em zonas de conflitos foi discutida no evento na sede da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em Roma, na semana passada. O que foi dito sobre isso?
Dias: Teve um relatório apresentado pela representação da Grécia. Ele declarou que precisava de uma posição firme, que não era razoável o uso de boicote à entrada de alimento, água, combustível em Gaza porque isso estava colocando em risco a vida das pessoas que ali estão. E [também se discutiu] abastecimento de água, não permitindo que isso fosse utilizado como instrumento de guerra.
Valor: Ou seja, a fome como instrumento de guerra…
Dias: Corretamente. Isso não era razoável. Esse problema não tem lá na guerra Ucrânia-Rússia, conforme foi relatado. É um problema de Gaza. Verificado nessa região, principalmente Gaza.
Valor: O senhor esteve com o papa também. Como foi o encontro?
Dias: Tive a oportunidade de estar com o papa Francisco, juntamente com o ex-presidente da FAO e ex-ministro aqui da área social, o Francisco Graziano. E o papa manifestou o quanto para ele tem sido destacadas as posições do Brasil, tanto em relação ao combate à fome, à redução da pobreza, sobre a posição em direção à paz nas regiões de guerra e ainda de que o mundo deve priorizar medidas para conter as mudanças climáticas. Participei da celebração que ele faz às quartas-feiras. Ele dirigiu uma palavra apelando para que pudesse ter uma trégua, uma busca de um entendimento para a paz nessa região, Israel, Gaza, Cisjordânia.