Herdeiros se livram de pagar R$ 200 milhões de ITCD na Justiça
Por Adriana Aguiar — De São Paulo
Os herdeiros do lendário médico e empresário mineiro Antonio Luciano Pereira Filho, que morreu em 1990, estão livres de fazer o pagamento do Imposto sobre Transmissão de Causa Mortis e Doação (ITCD) sobre a herança – chamado em outros Estados de ITCMD. Se tivessem que recolher o imposto, isso poderia render mais de R$ 200 milhões aos cofres do Estado de Minas.
De acordo com a Advocacia-Geral do Estado (AGE), o valor do ITCD neste processo é o mais alto registrado até hoje em Minas, onde a alíquota do tributo é de 5%. Na época da morte do empresário, era de 4%. Cada Estado estipula um percentual, mas ela pode chegar a até 8% no país.
A decisão, que beneficia os herdeiros matrimoniais de Pereira Filho, é da 1ª Vara de Sucessões da Comarca de Belo Horizonte. Ela extingue a cobrança do imposto. Ainda cabe recurso.
Antonio Luciano foi um dos homens mais ricos do seu tempo e dizem que chegou a ser proprietário de mais de 30 mil lotes e prédios – a maioria em Belo Horizonte. Na década de 1960, foi dono de todos os cinemas da capital e tinha 256 fazendas em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Muito conhecido em Minas Gerais, foi retratado como personagem na série Hilda Furacão, exibida pela TV Globo, em 1998.
O empresário teve uma vida pessoal polêmica. Oficialmente teve 31 filhos com mais de 20 parceiras e ainda existem mais de uma dezena de investigações de paternidade em andamento. Mas apenas três de seus filhos são frutos de seu casamento com Clara, a única mulher com quem se casou. Ele registrou seus bens em nome desses três filhos (herdeiros matrimoniais).
Contudo, após intenso debate, no dia 6 de junho de 1990, esses três filhos resolveram fazer uma doação (transação cível) aos demais herdeiros, quando o pai ainda era vivo. Ele morreu no dia 19 de junho daquele mesmo ano. Três dias depois, foi aberto o processo de inventário, que se arrasta até hoje.
Somente em 2012, a Fazenda Estadual passou a cobrar o ITCD dessa transação. Pelos cálculos apresentados pela AGE no processo, a dívida seria de R$ 100 milhões de principal e mais R$ 100 milhões de multa.
Ao analisar o caso, o juiz Elito Batista de Almeida, da 1ª Vara de Sucessões da Comarca de Belo Horizonte, destacou que se trata de um processo de inventário atípico. Ressaltou que a transação entre os herdeiros foi firmada antes mesmo do falecimento do inventariado Antônio Luciano, no dia 19 de junho. “A rigor, trata-se em verdade de uma distribuição de patrimônio de pessoas vivas (doação), porém adotou-se o rito do inventário de forma atípica em razão da origem dos bens”, declarou o magistrado.
Com isso, segundo apontou o juiz na sentença, o fato gerador do imposto – para o cálculo do valor devido – deve ser contado a partir da data em que foi feita a transação, e não o dia da morte de Antônio Luciano. No processo, segundo o juiz, foram apresentados três cálculos de ITCD e aquele que “seguiu a sistemática legal com os olhos voltados para a legislação da época da ocorrência do fato gerador” foi o apresentado pela Contadoria Judicial, com o valor de R$ 24 milhões.
Porém, segundo o entendimento do juiz, a Fazenda Estadual não tem mais o direito de cobrar o imposto (decadência). Para ele, como o fato gerador do ITCD se deu no dia 6 de junho de 1990, o início do prazo para a exigência do tributo começou a correr no exercício financeiro seguinte (dia 1º de janeiro de 1991), extinguindo-se em janeiro de 1996.
O Estado de Minas Gerais lançou o tributo como devido, anos depois, apenas no dia 5 de novembro de 2012. Mas, para o magistrado, é “incontroverso que houve a decadência, pois o agir da Fazenda Pública ocorreu de forma tardia”.
A advogada que representa os herdeiros matrimoniais de Antônio Luciano Pereira Filho, Bárbara Carneiro, sócia do Maneira Advogados, destaca que, além da cobrança por causa mortis ser indevida, já que a doação foi feita em vida, o cálculo também estava errado. “Ainda que fosse possível afastar a decadência, o que não era o caso, havia ainda um erro no cálculo apresentado pelo Estado, que desconsiderou o efeito inflacionário de uma das trocas de moedas ao longo desse tempo”, destaca.
Bárbara explica que, durante 1990 e 1995, houve alterações nas moedas nacionais. Até março de 1990, era o cruzado novo. Depois veio o cruzeiro, até julho de 1993. Em seguida, o cruzeiro real até junho de 1994. Até que se instituiu o real, em julho de 1994. Segundo ela, a Fazenda, ao fazer os cálculos, ignorou seis meses de inflação, naquela época altíssima, o que aumentou a dívida em 500%, que resultariam em R$ 100 milhões de principal, e não nos corretos R$ 24 milhões.
De qualquer forma, Bárbara ressalta que a cobrança já teria decaído desde 1996, de acordo com a aplicação do artigo 173, do Código Tributário Nacional (CTN). O dispositivo diz que o direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após cinco anos, contados do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado. “Foi uma decisão tecnicamente irreparável ao reconhecer que houve a transmissão de bens, via doação entre irmãos e ao admitir o erro no cálculo do Estado”, diz.
Procurada pelo Valor, a assessoria de imprensa da AGE de Minas Gerais informou, por meio de nota, que ainda não foi notificada da decisão judicial.