Contribuinte perde discussões bilionárias no Carf
Por Beatriz Olivon — De Brasília
Os contribuintes estão sendo derrotados na Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) em discussões bilionárias, mesmo com precedentes judiciais favoráveis nos tribunais superiores. As vitórias da União estão sendo garantidas por meio da volta, em outubro, do voto de qualidade – o desempate pelo presidente da turma, que é representante da Fazenda.
Nas duas semanas de julgamentos na 1ª Turma da Câmara Superior, o voto de qualidade foi aplicado em 24 de 45 casos em que o mérito foi analisado, conforme levantamentos feitos pelo escritório Machado Associados e Valor. Esses desempates envolvem cinco importantes teses tributárias. As sessões foram realizadas em outubro e novembro, antes da deflagração de paralisação pelos auditores fiscais da Receita Federal.
Todos os desempates foram favoráveis à Fazenda Nacional. Em três teses, as decisões do Carf divergem de precedentes judiciais favoráveis aos contribuintes. Em uma há decisões nos dois sentidos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e também no Carf. E em outra tese há posição favorável à União no Judiciário.
O Carf não é obrigado a seguir de forma geral precedentes judiciais. Apenas os definidos em repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ou em recursos repetitivo pelo STJ. Mas, na prática, ao não seguir decisões de tribunais superiores acaba incentivando as empresas a buscar o Judiciário, afirmam tributaristas.
A composição e mesmo decisões do Carf chegaram a ser alvo de críticas do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Sobre jurisprudência, chegou a questionar, em evento realizado na Federação Brasileira de Bancos (Febraban) em janeiro, como um órgão administrativo poderia reverter uma decisão do STF, colegiado formado por 11 ministros.
“Seria um absurdo o contribuinte ganhar administrativamente o que está perdendo no Judiciário. É o que o ministro fala, mas não é o que se observa. Em teses com entendimentos favoráveis no Judiciário, está [o contribuinte] com decisões em sentido contrário na esfera administrativa”, afirma Daniel Lacasa Maya, sócio do Machado Associados.
Para o advogado, a lógica seria a esfera administrativa evitar a judicialização dos temas. “Mas acontece o inverso. É meio óbvio que a empresa que perde no voto de qualidade dificilmente vai aceitar liquidar a dívida se existem decisões do Judiciário acolhendo a tese.”
Na 1ª Turma da Câmara Superior, os contribuintes foram derrotados recentemente em três importantes teses. Uma trata de amortização de ágio. As outras duas de multas tributárias e juros sobre o capital próprio.
No caso do ágio, o STJ julgou a questão, pela primeira vez, este ano. Apesar de os julgamentos sobre tributação de ágio dependerem das características de cada caso, o entendimento já começou a ser replicado em decisões da segunda instância. No Carf, a 1ª Turma julgou um processo, dando razão à Fazenda com a aplicação do voto de qualidade.
Os conselheiros analisaram três casos de juros sobre capital próprio (JCP). As decisões divergem de acórdãos das duas turmas que julgam temas tributários no STJ – 1ª e 2ª. Os ministros consideram que os pagamentos acumulados de JCP, que incluem valores referentes a anos anteriores, podem ser deduzidos da base de cálculo do Imposto de Renda (IRPJ) e da CSLL.
As empresas perderam ainda, no Carf, dois processos em que discutiam a aplicação de multa isolada de 50% (devida por obrigação tributária acessória) cumulada com a multa de ofício de 75% (devida por não pagar tributo). No STJ, porém, a 2ª Turma já decidiu pela aplicação do princípio penal da consunção, em que a infração mais grave abrange aquela menor que lhe é preparatória ou subjacente – ou seja, manteve apenas a multa de ofício.
Uma tese, porém, passou a dividir o Judiciário. É a que trata da aplicação de tratados para afastar a tributação de lucros no exterior. No Carf, as empresas saíram derrotadas em 11 casos julgados na primeira semana do voto de qualidade. Venceram apenas um. Na segunda semana, perderam três.
O contribuinte vencia a tese desde 2012 no STJ, mas passou a perder em 2020, quando a 2ª Turma decidiu que a União pode cobrar Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre remessas ao exterior para pagamento de serviços e assistência técnica, mudando a jurisprudência.
As empresas também saíram derrotadas no Carf em dois processos sobre a trava de 30% para aproveitamento de prejuízos fiscais na extinção da pessoa jurídica. Os julgamentos foram no mesmo sentido do que vem decidindo o STF.
Gisele Bossa, do Demarest Advogados, destaca que, mesmo nos temas em que o Carf diverge das decisões de tribunais superiores, não há descumprimento do regimento interno, já que não se tratam de processos decididos em precedentes vinculantes. A advogada lembra que é importante a análise dos fatos e provas trazidos nos casos.
Ex-presidente do Carf, Carlos Henrique de Oliveira, sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados, reforça que até o entendimento do tribunal superior se tornar vinculante, o Carf deve ter liberdade para analisar cada caso. “Depois de um tempo, a jurisprudência, que foi pacificada, de forma não vinculante, pode mudar”, diz ele, destacando a discussão que envolve os juros sobre capital próprio.
Ele acrescenta, porém, que como agora há a possibilidade de contribuintes derrotados no voto de qualidade aderirem à transação tributária – acordos com a Fazenda Nacional – para reduzir multa e juros, o Carf estaria enviando um sinal trocado quando não segue a jurisprudência dos tribunais superiores.
Para Leandro Cabral, sócio do Velloza Advogados, o atual cenário deve reduzir o interesse pela transação tributária. “Transações em tese que os contribuintes têm chance de vitória no Judiciário têm baixíssima adesão”, afirma. “A transação tem que ser naquilo que está truncado.”
Em nota, a Procuradoria-Gerald a Fazenda Nacional (PGFN), reforça que o Regimento Interno do Carf prevê a obrigação de serem reproduzidos, nos julgamentos, apenas entendimentos firmados em julgamentos sob a sistemática de repercussão geral ou recursos repetitivos. No caso da tese de lucros no exterior e da amortização de ágio interno, houve apenas um julgamento, para cada tema, por uma das turmas da 1ª Seção do STJ. “Esses julgados não representam decisões reiteradas daquela Corte”, afirma.