Como as mudanças na sociedade estão transformando a legislação e os tribunais do Brasil

Por Laura Ignacio — De São Paulo A consultora de diversidade Marina Dayrell e a advogada especializada em tecnologia Ana Carolina Teles decidiram morar juntas na pandemia. Em 2022, o relacionamento já caminhava para um casamento porque elas queriam formar uma família, mas, acima de tudo, algumas questões práticas se impuseram. “E se alguma de nós adoecer ou morrer?”, pensaram. Naquele mesmo ano, formalizaram o relacionamento no cartório, graças à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2011 que equiparou a união estável homoafetiva à união de duas pessoas de sexos diferentes. Hoje, elas têm apartamento próprio, uma é dependente da outra no plano de saúde e vivem a “família multiespécie”, com o cão Nino, da raça lhasa apso. “Queríamos ser um casal como qualquer outro e já vimos alguns casos de relacionamento homoafetivo em que a família dificultou muito a divisão de bens, após a morte de uma das partes envolvidas. A formalização da união é também uma questão de segurança jurídica”, dizem. Esse caso é um exemplo de como o Judiciário impacta o comportamento da sociedade, mesmo quando não há ainda uma lei sobre o assunto. Mas o que faz com que essa e outras questões contemporâneas – como família que inclui animais de estimação, transferência de patrimônio digital a herdeiros e o uso de embriões congelados – cheguem ao Judiciário são justamente as controvérsias cotidianas. Apesar de a decisão do STF ter sido um grande avanço, a comunidade LGBTQIA+ quer ver esse direito estabelecido em lei. “Nos EUA, vimos a revogação de uma decisão dos anos 70 que permitia o aborto porque o presidente Donald Trump conseguiu colocar ministros reacionários na Corte americana”, diz Teles. “Quando falamos de equidade, quer dizer que todos devemos ser abarcados pela lei da mesma forma. Se a gente resolver engravidar, por exemplo, o que garante como será o tratamento na maternidade?”, afirma Dayrell. Leia mais: Mais brasileiros adotam o ‘testamento vital’ Nesse sentido, uma das propostas de mudança do Código Civil é o casamento passar a ser previsto na lei como a “união entre duas pessoas”, sem distinção de sexo. “Certamente haverá polêmica e resistência, o que é natural, mas será mais um importante avanço do Estado brasileiro, após a conquista do direito à união estável entre pessoas do mesmo sexo no STF”, diz Toni Reis, que poucos dias após a decisão da Corte, em 2011, casou-se com o inglês David Harrad. Frei David Santos,diretor-executivo da Educafro Brasil, foi vítima de racismo pela polícia — Foto: Ana Paula Paiva/Valor Frei David Santos,diretor-executivo da Educafro Brasil, foi vítima de racismo pela polícia — Foto: Ana Paula Paiva/Valor Reis e Harrad já viviam juntos desde 1990 e enfrentaram desafios, no Brasil, por não serem reconhecidos legalmente como um casal porque Harrad era um cidadão estrangeiro. Hoje, têm dois filhos adotados e, recentemente, comemoraram bodas de coral, após 35 anos de relacionamento. A proposta de reforma do Código Civil também inclui outras duas situações comuns na sociedade contemporânea, relacionadas ao fim do casamento, por separação ou viuvez: a divisão de despesas com pets entre o casal após uma separação e a flexibilização do direito real de habitação após a morte do proprietário do imóvel. “Ambos os assuntos já foram debatidos pelo Superior Tribunal de Justiça”, afirma Rodrigo Pereira da Cunha, presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM), que participou da elaboração do anteprojeto que pretende atualizar a legislação. Cunha lembra o caso de um homem viúvo que morava com o filho de 21 anos. Ele casou-se novamente, mas morreu cinco anos depois. “Como a esposa não se dava bem com o filho dele, quando decidiu ficar na residência onde vivia com o falecido, porque tinha esse direito, acabou deixando o jovem sem moradia. Mas ela era funcionária pública e tinha outros bens, inclusive um apartamento próprio”, diz. Pela proposta do novo código, a residência teria que ser vendida e o patrimônio, dividido entre eles. Além das decisões das Cortes Superiores do Judiciário, as alterações propostas na legislação são fundadas em comportamentos que, com o passar dos anos, se tornaram o “novo normal”. Se o primeiro Código Civil brasileiro, de 1916, tinha várias disposições que hoje seriam descritas como discriminação de gênero, a atual proposta dá o devido direito às mulheres. Clarice Chiquetto fez exames genéticos, inseminação artificial e congelamento de embriões para gerar o filho Otto — Foto: Ana Paula Paiva/Valor Clarice Chiquetto fez exames genéticos, inseminação artificial e congelamento de embriões para gerar o filho Otto — Foto: Ana Paula Paiva/Valor Pelo código de 1916, mulheres casadas eram consideradas relativamente incapazes. Por isso, só podiam trabalhar fora de casa com a permissão dos maridos. Tomar as próprias decisões sobre doações ou herança, nem pensar. Agora, os parlamentares – em sua maioria do sexo masculino – terão que debater, por exemplo, a proposta de que o homem deve comprovar que não é pai de uma criança para não constar no registro civil dela. Até hoje, é a mãe quem tem que entrar com uma ação judicial para obrigar o homem a fazer um teste de DNA e a paternidade ser reconhecida. “Esse é um processo custoso e que pode demorar mais de dez anos”, diz Cunha. “Talvez por isso, no país, 500 pessoas ao dia são registradas sem o nome do pai, segundo dados de 2024”, acrescenta o advogado. Faz sentido que uma ideia como esta tenha entrado no texto do anteprojeto para reforma do código, apresentado em abril ao Senado. Segundo seu relator, Flavio Tartuce, a presença feminina na comissão de juristas que elaborou a proposta chegou a 35%. “Há outros dispositivos nessa direção, como a previsão de que o homem que praticou violência doméstica, mesmo sendo dependente financeiramente da ex-mulher, perde o direito de receber pensão”, diz. A proposta do novo código aborda inclusive o direito do embrião congelado após inseminação artificial à herança. A regulamentação do assunto por meio de lei é importante porque essa situação deve se tornar cada vez mais comum. Segundo dados do Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio), o número de embriões congelados no país aumenta, ano a ano, ao menos desde 2020. Só no ano passado foram 127.455 casos. São casos como o de Clarice Chiquetto, fundadora da Chiquetto Comunica. Em 2016, ela perdeu a filha Cecília, de quatro meses, e só o que sabia é que havia um problema imunológico. Exames genéticos feitos depois lhe permitiram descobrir as mutações que levaram à doença que causou a morte da filha. Com a inseminação artificial e o congelamento dos embriões, a empresária pôde evitar que isso acontecesse em nova gravidez. “Após três ciclos para a inseminação artificial, enviamos o material genético de três embriões que poderiam ser implantados sem aborto para uma análise em um laboratório, na Espanha, e descobrimos que um deles tinha a mesma mutação da minha filha”, afirma. Desde o primeiro ciclo, em fevereiro de 2018, os embriões frutos da inseminação artificial ficaram congelados. Como Clarice tinha acabado de abrir a própria empresa, eles ficaram armazenados até que ela decidisse pela implantação. Seu filho, Otto, nasceu em 2020 e completou cinco anos em fevereiro. “Lembro quando eu era criança e fiquei impressionada ao ver o primeiro bebê de proveta na TV, e 30 anos depois eu mesma vivi isso”, diz. “Seria muito bom se todos pudessem usar esse mecanismo, não só por causa de doenças genéticas em que não há chance de vida para o embrião, mas para que todas as mulheres, que já enfrentam tantos desafios na carreira, não se sintam tão pressionadas pelo tempo”, acrescenta. O anteprojeto do código determina que se o embrião congelado é implantado até cinco anos depois que o pai ou a mãe morreu, a criança terá direito a entrar na divisão dos bens do falecido. Como esse prazo hoje não existe, se não há disposição a respeito no testamento dos pais, alguns inventários se alongam por anos por conta de herdeiros que não querem ter que dividir o patrimônio com um novo bebê na família. Além de se preocupar com o planejamento familiar, a proposta de reforma do Código Civil regulamenta o planejamento sucessório de ativos digitais – criptomoedas, NFTs ou redes sociais que geram monetização pelo número de seguidores ou patrocinadores. Se aprovada como está, a lei vai estabelecer que esses bens, como qualquer outro, passam para os herdeiros, para não haver perda econômica. “Hoje, por cautela, o ideal é incluir esses ativos em um testamento e já deixar dividido ou definir regras para a continuidade, por exemplo, das redes sociais”, afirma o advogado especialista em direito digital Alexandre Atheniense. “É possível fazer um testamento cerrado, registrado em cartório, para abertura após a morte do titular, mas que as cláusulas podem ser alteradas a qualquer momento enquanto ele estiver vivo.” Mas uma legislação sobre o assunto vai conferir maior segurança jurídica. A procura por proteção desses ativos é um comportamento crescente, segundo Atheniense. “Recentemente, um fotógrafo me procurou para determinar as regras sobre com quem ficaria seu acervo digital de fotos”, diz. “Em outro caso, os herdeiros de um influenciador no YouTube decidiram ir à Justiça para que a monetização de cerca de 15 mil acessos ao mês integrasse o espólio. Esse direito foi reconhecido, foi atribuído valor para esse patrimônio, e ele será rateado entre eles”, acrescenta. Um meio inovador de deixar esses ativos digitais para os herdeiros, de acordo com o advogado Bruno Araújo França, do escritório Guimarães Bastos Advogados, especializado em família e sucessão, é o fundo patrimonial ou trust – estrutura que reúne ativos para administração por um terceiro, conforme orientação deixada pelo titular. “Ainda não há previsão legal sobre o trust no Brasil, mas ele é amplamente usado em vários países para que a sucessão aconteça de forma organizada e perpetue o patrimônio da família”, afirma. Nesse caso, não constar do Código Civil pode ser uma vantagem. Isso permite, diz França, que os ativos do trust não passem por um processo de inventário. “Assim, é possível deixar recursos mensais para a esposa ou o marido, logo após a morte, e, se tenho um filho problemático, que ele só receba quando tiver concluído a graduação, por exemplo”, afirma. Qualquer tipo de ativo pode entrar no trust, e ele pode ter até o objetivo de promover a filantropia. O presidente de um banco que é cliente de França e estudou em universidade pública, por exemplo, definiu que, quando morrer, um gestor administrará R$ 100 milhões de um trust para construir um prédio na faculdade e investir em equipamentos de alta tecnologia nela. Outro objetivo do trust pode ser deixar parte do patrimônio para uso no combate ao racismo estrutural, como o patrocínio de ações judiciais. Há cada vez mais casos envolvendo racismo, intolerância, injúria racial ou casos análogos no Judiciário. Segundo dados do Painel de Monitoramento Justiça Racial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao menos desde 2020, o número de casos novos aumenta anualmente. Em 2024, foram 7.920. Recentemente, o diretor executivo da Educafro Brasil, Frei David Santos, disse que ele próprio foi vítima de racismo pela polícia. “Abri boletim de ocorrência na corregedoria, na ouvidoria e no Ministério Público do Estado”, afirma. “Na mesma proporção em que cresce a prática do crime de racismo na sociedade, cresce também a coragem do povo afro-brasileiro em denunciar e abrir processos.” Para Frei David, a comunidade afro-brasileira está usando a linguagem do capitalismo, ou seja, o pedido de indenização em dinheiro, para combater o racismo. A Educafro tem atuado ativamente com esse objetivo por meio de diversas ações civis públicas. “Uma das principais foi o acordo histórico com a União, de dezembro de 2024, para o reconhecimento dos danos causados pela escravidão”, diz. Antes disso, em 2021, o STF equiparou o crime de injúria racial (ofensa ao indivíduo por causa da raça) ao de racismo (discriminação da raça em geral) e o declarou também imprescritível (sem prazo para prescrever). Assim como o Judiciário é influenciado pela sociedade, ele também a influencia.

Fonte: Valor

Data da Notícia: 02/05/2025 00:00:00

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