Carf afasta IOF sobre empréstimo entre empresas do mesmo grupo
Por Marcela Villar — De São Paulo
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) afastou uma cobrança de R$ 21 milhões de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre um empréstimo feito empresas do mesmo grupo econômico. Para o tribunal, a operação não se tratava de mútuo, mas mero fluxo financeiro entre partes relacionadas via conta corrente, transferência em que não incide o tributo. Cabe recurso.
A decisão é importante porque destoa da jurisprudência do Carf, mais favorável à Fazenda Nacional, como indicou o relator no acórdão, conselheiro Bruno Minoru Takii, da 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 3ª Seção. O entendimento beneficia a Empresa de Mecanização Rural, do complexo industrial Grupo Ferroeste.
Segundo advogados, é um precedente relevante porque a operação é muito comum, especialmente em grupos familiares. A decisão nesses casos, acrescentam, costuma depender muito das provas juntadas nos autos.
No processo julgado, além do contrato de conta corrente, havia a comprovação contábil desde o início da operação, em que se pode ver de onde se iniciou e finalizou o fluxo financeiro, sem aplicação de juros. Além disso, os documentos indicam a realização do balanço no fim do ano, quando o saldo das duas contas correntes ficava zerado.
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Esses elementos são essenciais para se comprovar que a transferência não é um mútuo, tipo de contrato em que há a obrigação de devolução dos valores, além de normalmente haver correção. Já no contrato de conta corrente entre partes relacionadas não há credores e devedores fixos, mas sim um fluxo multidirecional de recursos. Essa relação pode durar por tempo indefinido, sem obrigação de devolução imediata. Na prática, é como se fosse um caixa único.
No caso, a Empresa de Mecanização Rural foi autuada por transferências realizadas entre os anos de 2018 e 2019. Para a Receita Federal, a operação de conta corrente entre partes relacionadas equivale ao mútuo. O entendimento foi mantido pela primeira instância administrativa, a Delegacia de Julgamento (DRJ).
Na decisão, a DRJ diz que “a disponibilização e/ ou a transferência de recursos financeiros a outras pessoas jurídicas, ainda que realizadas sem contratos escritos, mediante a escrituração contábil dos valores cedidos e/ ou transferidos, com a apuração periódica de saldos devedores, constitui operação de mútuo sujeita à incidência do IOF” (processo nº 13136.720648/2022-26).
Essa também é a posição da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Em nota ao Valor, afirma que o acórdão do Carf “é no sentido de que a existência de um contrato de conta corrente sucede um contrato de mútuo, tornando os fluxos financeiros dele decorrentes sujeitos à hipótese de incidência do ‘IOF-crédito’”. Cita três julgamentos recentes favoráveis (acórdãos nº 9303-016.864, nº 9303-016.179 e nº 9303-015.128).
Lembra ainda, na nota, que o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2023, julgou válido o artigo 13 da Lei nº 9.779, de 1999, permitindo a incidência do IOF sobre “operações de crédito correspondentes a mútuo de recursos financeiros entre pessoas jurídicas ou entre pessoa jurídica e pessoa física, não se restringindo às operações realizadas por instituições financeiras”. Sobre o caso do grupo Ferroeste, diz que “aguarda a intimação da decisão para adoção das providências processuais pertinentes”.
Na decisão do Carf, o conselheiro Bruno Minoru Takii indicou que a jurisprudência do tribunal “tem pendido para considerar que todo contrato de conta corrente, também conhecido como contrato de caixa único, seria uma modalidade de mútuo e, por esse motivo, estaria sujeito ao IOF”. Essa corrente jurisprudencial, acrescenta, analisa o artigo 13 da Lei nº 9.779, de 1999, e o artigo 7 do Decreto nº 6.306, de 2007.
O acórdão é um bom precedente por diferenciar as duas operações”
— Leandro Cabral
Os dispositivos estabelecem que o IOF incide sobre “operações de crédito correspondentes a mútuo”, ou sobre “as operações de crédito decorrentes de registros ou lançamentos contábeis ou sem classificação específica, mas que, pela sua natureza, importem colocação ou entrega de recursos à disposição de terceiros”.
Segundo o conselheiro, muitos contribuintes se utilizam de contrato de conta corrente para “disfarçar o real conteúdo jurídico da relação contratual”, que seria um mútuo, em que se estabelece o pagamento de juros à parte credora, ou o fechamento periódico do contrato para a “apuração de haveres”, ou envio de recursos de forma unidirecional.
Mas, para ele, é preciso diferenciar as operações. No mútuo, a essência está na obrigação de restituir. Já no contrato de conta corrente se baseia na “indefinição ou mesmo de inexistência de posições contratuais de ‘credor’ e ‘devedor’”.
Na visão do relator, no caso julgado, o que havia era mero contrato de conta corrente vigente desde 2010. “Diante do conjunto probatório existente, entendo que se esteja diante de típico contrato de conta corrente, não equivalente ao mútuo, razão pela qual não deve incidir o IOF sobre as operações que foram objeto de autuação”, afirma.
A advogada Franciny de Barros, sócia do escritório Candido Martins Cukier, diz que o Fisco, “na sua ânsia arrecadatória”, sempre costuma entender que o uso de recursos entre empresas do mesmo grupo é um mútuo, cabível de incidência de IOF. “Ele entende que seriam vários empréstimos”, diz.
Mas, nesse caso, havia um contrato de conta corrente, o que afasta essa tese da Fazenda. “Havia um contrato que deixava muito claro essa prática e possibilidade de qualquer parte solicitar recursos para qualquer parte e que não haveria a cobrança de juros”, afirma. “É uma operação muito característica e diferente do mútuo.”
A decisão, acrescenta a advogada, serve de guia para os contribuintes que queiram se proteger dessas cobranças. Isso porque elenca quais elementos são essenciais para afastar a hipótese de que o fluxo financeiro em contato corrente equivale a mútuo.
Para o tributarista Leandro Cabral, sócio do Velloza Advogados, o acórdão é um bom precedente, por diferenciar bem as duas operações. “A condição para ser um mútuo é a devolução do valor e a devolução do valor não se presume”, diz. Segundo ele, ter uma documentação robusta é o que faz o contribuinte derrubar o auto de infração.
“Muitos dos casos que compõem a jurisprudência do Carf não têm um contrato ou um fluxo contábil que reflita essa conta corrente. Logo, quando a fiscalização identifica esse fato e questiona, o contribuinte não tem prova de que aquela operação nasce como conta corrente. Então a fiscalização acusa de ser um mútuo”, afirma.
Para Cabral, a decisão deve influenciar outros casos. “É um olhar novo, que valoriza o contrato e a realidade”, diz. No Judiciário, de acordo com ele, a tendência tem sido de valorizar as provas. Os casos que chegaram no Superior Tribunal de Justiça (STJ) não tiveram o mérito analisado. “A posição do STJ é definida muito em função da compreensão dos fatos pelas instâncias inferiores. Logo, é essencial que o contribuinte comprove não se tratar de operação de crédito já na primeira e segunda instâncias.”