Trabalho, tributação previdênciária e inteligência artificial
Pedro Alvaro Montanhani
O futuro bate à porta e os problemas do passado continuam
Há um provérbio russo: “confie, mas verifique”.
Isaac Asimov (1920-1992) atribuiu o nome de “cérebro positrônico” para se referir aos cérebros dos robôs com inteligência artificial (IA). Também definiu as três leis da robótica em sua obra Eu, Robô publicada em 1950: um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal; um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei; um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis [1].
Alan Turing (1912-1954) publicou um artigo na revista Mind com o título Computing Machinery and Intelligence (1950), no qual questiona se as máquinas podem pensar, apresentando um método para aferir se as máquinas são hábeis de externar um comportamento análogo ao de um ser humano, conhecido como Teste de Turing. Para ter êxito no teste, o interrogador comum (ser humano) não deve ter mais que 70% de chances de perceber que está a conversar com um robô, após cinco minutos de conversação datilografada. Desde então, os robôs conversadores (chatbots), tais como Eliza (1966), A.L.I.C.E. (1995) e Jabberwacky (1997), são submetidos ao Teste de Turing.
Por mais que os recentes chatbots, como o ChatGPT da OpenAI e o Bard do Google, conquistem seus espaços na realidade e apresentem respostas supostamente elaboradas, não significa que eles compreendam as suas respostas, como alerta Oxford Internet Institute [2]: “Só porque o sistema consegue buscar uma resposta que parece compreensível, não quer dizer que ele a entenda de verdade”. Tanto é que esses chatbots se demonstraram imprecisos em suas respostas ao serem questionados acerca do primeiro telescópio a fotografar um exoplaneta, por exemplo [3].
É certo que as inovações tecnológicas quanto à IA representam um desdobramento do deslocamento do capital, no qual os bens intangíveis ganham relevância no arranjo das relações econômicas, como denuncia o economista Ladislau Dowbor:
Hoje o principal fluxo de investimentos não resulta em nenhuma máquina nem em chaminés, e sim em capacidade de controle de conhecimento organizado. No século passado, o capitalista ainda era dono de fábricas e plantações — e durante boa parte do presente século, sem dúvida, ainda o será. No entanto, hoje, e cada vez mais, é um controlador de plataformas digitais, aplicativos, patentes, copyrights. E, evidentemente, de fluxos financeiros, igualmente imateriais, meros sinais magnéticos que definem outras formas imateriais de apropriação e controle, radicalmente mais poderosas [4].
Um deslocamento do capital é percebido ao redor do mundo, desde a ressignificação do vocábulo “máquina” até a sua implementação pelos principais atores econômicos em sua cadeia produtiva, como acontece nos caixas de supermercados, redes de fast-food, agências de marketing, gestão de dados, entre outros.
54% dos empregos formais no Brasil estão ameaçados pelas máquinas [5], segundo o Laboratório de Aprendizado de Máquina em Finanças e Organizações da Universidade de Brasília (UnB). Os cargos de taquígrafo, torrador de café, cobrador de ônibus e recepcionista de hotel estão entre os mais afetados, com risco de 99% de serem substituídos pela IA. Soma-se a isso a falta de mão de obra qualificada no Brasil, atingindo o patamar de 81% em 2022, em detrimento da média global de 75% [6].
Uma análise de qualificação dos profissionais no mercado de trabalho dessa magnitude demonstra que a inserção da IA no âmbito privado, com a consequente retirada de trabalhadores do mercado, não resulta necessariamente em um deslocamento das forças produtivas para outra atividade. Esse fenômeno pode colocar o cidadão no ócio ou na procura incessante por uma recolocação no mercado em um país onde três a cada dez desempregados demoram mais de dois anos para conseguir um emprego [7], além de aumentar a desigualdade social.
Os efeitos imediatos da implementação das máquinas têm sido o desemprego, aliados à transformação do capital em destaque, como se percebe com as três maiores companhias do Vale do Silício que, em 2014, empregavam 137 mil trabalhadores e somavam 1.09 trilhões de dólares em valor de mercado, em detrimento do cenário de Detroit em 1990, quando as três maiores companhias da época possuíam 1.2 milhões de trabalhadores e 36 bilhões de dólares de valor de mercado [8].
Lidar com a IA exige consciência social, especialmente, diante do seu efeito imediato nas relações de trabalho e, por conseguinte, na tributação previdenciária.
Há inúmeras repercussões diretas e indiretas da disseminação da IA, cujos efeitos deletérios precisam ser considerados. Se considerarmos apenas a perspectiva da tributação, há dois efeitos relevantes da substituição de colaboradores humanos pela IA: a redução da folha de salários reduz, igualmente, a arrecadação das contribuições previdenciárias; e a redução das ofertas de emprego tolhem o potencial trabalhador de recursos para consumir e, desse modo, pagar tributos.
Os problemas do passado no que tange ao trabalho continuam existentes; afinal, parece que estamos investindo muito mais nos robôs do que nos humanos.
A inteligência artificial e o futuro da tributação previdenciária
Que os chatbots ameaçam inúmeros postos de trabalho, não há dúvida, especialmente do mercado jurídico. Um experimento conduzido por Daniel Marques, presidente da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L), demonstrou que o ChatGPT foi capaz de ser aprovado na primeira fase do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), acertando 48 questões de 80 [9]. Mesmo assim, a IA não tem espaço para substituir os profissionais jurídicos — o próprio ChatGPT reconhece que sua tecnologia deve ser usada como complemento à fiscalização humana, porque ainda há limitações no que diz respeito à capacidade de compreensão humana e ao julgamento subjetivo.
Acerca disso, o ChatGPT reconhece que a redução de empregos pode ter impacto direto nas receitas da previdência social, de modo que é necessário implementar políticas e estratégias que promovam a adaptação dos trabalhadores às mudanças no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, garantam a sustentabilidade do sistema previdenciário, sugerindo as seguintes medidas:
— Investir em programas de treinamento e capacitação profissional para ajudar os trabalhadores a adquirir habilidades que são mais valorizadas no mercado de trabalho. Dessa forma, os trabalhadores poderão se adaptar às mudanças no mercado e permanecer empregáveis.
— Estimular a criação de novos empregos em setores que demandem habilidades que não podem ser facilmente automatizadas. Por exemplo, pode-se investir em setores como saúde, educação, turismo e entretenimento, que são menos propensos a serem automatizados.
— Promover políticas públicas que incentivem a inovação e o empreendedorismo. Isso pode incluir incentivos fiscais para empresas que investem em novas tecnologias e startups, por exemplo.
— Revisar a legislação trabalhista e previdenciária para garantir que ela esteja adaptada ao novo contexto do mercado de trabalho. Isso pode incluir mudanças nas leis trabalhistas e previdenciárias que permitam maior flexibilidade na contratação e no trabalho remoto, por exemplo.
As vantagens do uso da IA na tributação consistem, aparentemente, na maior eficiência durante o curso da fiscalização e da cobrança de tributos, além de promover agilidade na declaração do contribuinte e acesso de informações para apuração, cálculo e cruzamento de dados. Mas devem ser destacados os argumentos contrários ao seu uso, que, além do evidente receio sobre a captação indevida de dados pessoais e a consequente perda de liberdade (ou privacidade), estão atrelados também à geração de uma massa de desempregados e trabalhadores informais e a perda de arrecadação para o sistema previdenciário.
A zona de penumbra e uma dose de ceticismo
Todo debate acerca da implementação da IA nas relações de trabalho e no âmbito da tributação é importante. As ideias precisam ser amadurecidas, com o desenvolvimento do aprendizado do ser humano para lidar com a inteligência artificial, explorando os seus benefícios e compreendendo os seus limites e problemas.
Entende-se pela possibilidade de introdução gradual, como tem ocorrido, com os devidos testes de exatidão e de segurança, identificando os limites funcionais na prática, em cumprimento da legalidade e da proteção de dados dos cidadãos, ponderando os impactos no mercado de trabalho, a fim de não prejudicar a própria sociedade. Quando chegarmos ao patamar das máquinas possam pensar, o “cérebro positrônico” deverá ter consciência dos direitos garantidos aos cidadãos.
[1] ASIMOV, Isaac. Eu, Robô. 9. ed. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1972.
[2] OXFORD INTERNET INSTITUTE. Teste de Turing. Explicando IA. Disponível em: https://atozofai.withgoogle.com/intl/pt-BR/turing-test/. Acesso em: 6 jul. 2023.
[3] HELDER, Darlan; PEIXOTO, Roberto. Assim como robô do Google, ChatGPT erra sobre 1º telescópio a fotografar um planeta fora do Sistema Solar. G1. 10 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2023/02/10/assim-como-robo-do-google-chatgpt-erra-sobre-1o-telescopio-a-fotografar-um-planeta-fora-do-sistema-solar.ghtml. Acesso em: 06 jul. 2023.
[4] DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais. 1. ed. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020. p. 35.
[5] PINTO, Ana Estela de Sousa. Robôs ameaçam 54% dos empregos formais no Brasil. Folha de S.Paulo. 28 de janeiro de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/01/robos-ameacam-54-dos-empregos-formais-no-brasil.shtml. Acesso em: 06 jul. 2023.
[6] GARCIA, Amanda. Escassez de mão de obra qualificada no Brasil atingiu 81% em 2022, diz pesquisa. CNN Brasil. 21 de junho de 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/escassez-de-mao-de-obra-qualificada-no-brasil-atingiu-81-em-2022-diz-pesquisa/. Acesso em: 06 jul. 2023.
[7] SILVEIRA, Daniel; ALVARENGA, Darlan. Três em cada dez desempregados no Brasil seguem em busca de trabalho há mais de dois anos, aponta IBGE. G1. 12 de agosto de 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/08/12/tres-em-cada-dez-desempregados-no-brasil-seguem-em-busca-de-trabalho-ha-mais-de-2-anos-aponta-ibge.ghtml. Acesso em: 06 jul. 2023.
[8] ABBOTT, Ryan; BOGENSCHNEIDER, Bret. Should Robots Pay Taxes? Tax Policy in the Age of Automation. 13 de março de 2017. Harvard Law & Policy Review, vol. 12, 2018. pp. 147-148. Disponível em: http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2932483. Acesso em: 06 jul. 2023.
[9] MELO, Cristiano. ChatGPT consegue “aprovação” em prova da primeira fase da OAB. Mundo Conectado. 23 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://mundoconectado.com.br/noticias/v/31796/chatgpt-consegue-aprovacao-em-prova-da-primeira-fase-da-oab. Acesso em: 06 jul. 2023.
Pedro Alvaro Montanhani
Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), monitor em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e membro do Grupo de Estudos em Direito do Estado do Observatório Constitucional Latino-Americano e do Instituto de Aplicação do Tributo.