Tema 487 do STF, multas aduaneiras e a profecia autorrealizável do Carf

Por Carlos Augusto Daniel Neto

23/12/2025 12:00 am

Profecias autorrealizáveis

Costuma-se chamar de “profecia autorrealizável” a situação na qual o sujeito constrói uma expectativa/crença e, ao alterar o seu comportamento para agir de modo a impedir essa previsão, acaba por efetivamente concretizá-la. Trata-se de uma armadilha mental: o medo de um futuro possível molda as ações do presente, que acabam por transformar uma possibilidade em inevitabilidade.

A história e a cultura são repletas de exemplos desse fenômeno.

Exemplos típicos são os chamados “bank runs” (incluindo aí a Quebra da Bolsa, em 1929): ao espalhar o boato de que determinado banco ou mercado vai quebrar, gera-se um pânico que faz com que os investidores saquem todo o seu dinheiro ou investimentos, conduzindo, efetivamente, à quebra prevista.

Na literatura clássica, lembramos o exemplo de “Édipo Rei”, de Sófocles, onde o esforço do Rei Laio para escapar da profecia (de que seria morto por seu filho), levou ao abandono de Édipo à morte, o que, por sua vez, o levou a crescer entre estranhos e, fatalmente, matar seu pai e se casar com a viúva (sua mãe). Já em “Macbeth”, de Shakespeare, foi a profecia das três bruxas, de que seria Rei da Escócia, que estimulou o general Macbeth a matar o Rei Duncan e tomar o trono para si.

Na cultura pop, o fenômeno também faz parte da história de Star Wars: Anakin Skywalker se desvia para o lado negro da Força em busca de poder justamente para evitar a sua visão da morte de Padmé, mas o trauma emocional de suas ações acabou fazendo com que ela morresse no parto. Harry Potter é outro exemplo evidente, cuja história se inicia exatamente com a tentativa de Voldemort de eliminar “o menino da profecia”, levando à sua derrota seis volumes (ou filmes) depois.

A despeito de tantos exemplos, o fenômeno surpreendentemente consegue a façanha de se repetir sempre, sob novas formas e em novos contextos — inclusive no âmbito do Carf, o que trataremos no texto de hoje.

A profecia: Tema 1.293 e a derrocada do Direito Aduaneiro
Há uma citação atribuída a Schopenhauer que, sinteticamente, diz que qualquer verdade passa por três estágios: primeiro, é ridicularizada; segundo, é violentamente contestada; terceiro, é aceita como óbvia e evidente. A prescrição intercorrente das multas aduaneiras passou por esse ciclo.

Inicialmente, a ideia foi contestada por alguns como evidentemente equivocada. Com o aparecimento das primeiras vozes, votos e decisões endossando a tese, passou a ser violentamente contestada. Entretanto, a despeito do tema 1293 do STJ ter tornado essa verdade óbvia, evidente e vinculante, ainda assim não foi aceita.

Logo após a decisão, os críticos passaram a apontar [1] que ela prejudicaria o próprio Direito Aduaneiro, ou que a decisão teria posto a perder as categorias estruturas desse ramo científico, ao supostamente “inovar”. Passou-se a se defender também que tal medida prejudicaria a aplicação das sanções desse ramo jurídico.

Em síntese, vozes fatalistas disseminaram a apocalíptica crença de que essa decisão teria prejudicado o próprio Direito Aduaneiro, gerando a tragédia de beneficiar supostos infratores às suas regras (quando, rigorosamente, apenas promoveu a aplicação da regra material adequada aos créditos não tributários).

À “crença”, como nos exemplos acima, seguiu-se a “ação”. Não seria a primeira, e provavelmente não será a última vez, que se estimula a reação coordenada e institucional para esvaziar materialmente os efeitos de uma decisão judicial vinculante, contrária aos interesses arrecadatórios do Estado.

O comportamento: inaplicabilidade do tema à interposição fraudulenta
No início do mês de dezembro de 2025, com o trânsito em julgado do Tema 1.293 do STJ, as turmas aduaneiras do Carf (3.401 [2] e 3.402 [3]) finalmente se debruçaram sobre a aplicação in concreto da prescrição intercorrente aos casos envolvendo a infração de interposição fraudulenta de terceiros (artigo 23, V do Decreto-lei 1.455/77), cuja relevância se destaca pelo volume de casos e pelos valores envolvidos.

Surpreendendo um total de zero pessoas, os Colegiados decidiram pela “natureza tributária” da infração.

Houve uma contraposição fundamental entre os conselheiros representantes dos Contribuintes e da Fazenda Nacional: aqueles sustentam a natureza administrativa (não-tributária) da infração, com base na jurisprudência do Carf e dos tribunais, enquanto estes sustentam a tese de que ela seria tributária, por ser relacionada “à arrecadação e à fiscalização tributária” (a despeito da ratio decidendi de todos os precedentes que formaram a súmula Carf nº 160 [4]).

Como já apontamos anteriormente (Tema Repetitivo 1.293 do STJ: a pedra filosofal do Carf?), no afã de tentar negar aplicabilidade do Tema 1293 às infrações de interposição aduaneira, mormente pela alçada de valores alcançados, passou-se a atribuir a essa infração natureza “tributária” (decorrente das competências tributárias), em contraposição às infrações “administrativas-aduaneiras” (decorrentes do poder de polícia aduaneiro).

Mesmo quem escreveu, em reiteradas e recentes oportunidades, academicamente ou em votos, que a interposição fraudulenta não teria natureza tributária, mudou seu entendimento, a pretexto de supostas “mudanças” promovidas pela Tema 1293. Até mesmo a súmula nº 184 [5], que se baseia em acórdãos dessa infração e a categoriza expressamente como aduaneira, foi ignorada nesses julgamentos, que marcaram – aí sim – uma mudança radical no entendimento do Tribunal Administrativo a respeito desse tema.

Ora, se a disposição para mudar de ideia é uma condição ética ou atitudinal do próprio debate, o princípio da não contradição é uma de suas condições lógicas ou argumentativas. O abandono das posições teóricas vigentes, contrariando o que foi dito até então, deveria ser produto de uma revisão sistemática das próprias premissas, e não pautado em argumentos ad hoc ou em arbitrários “testes”, cuja sinceridade faria desconfiar até mesmo o Princípe Michkin, de Dostoiévski.

O tal “teste de subtração” [6], baseado no critério da situação punida afetar ou não a fiscalização de tributos, sequer faz sentido, pois o próprio Tema 1293 enquadra como “não tributárias” as sanções às condutas “que, reflexamente, possam colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação”. Do mesmo modo, a referida infração é aplicável independentemente da existência de qualquer pretensão tributária, apenas em razão do controle aduaneiro (este sim, sempre necessariamente ofendido — cf. Súmula nº 160 do Carf), evidenciando a sua conexão meramente contingente com a tributação.

De todo modo, por força do voto de qualidade, os partisans de La Résistance conseguiram, no âmbito do Carf, esvaziar a aplicação do Tema 1.293 à interposição fraudulenta, atribuindo-lhe natureza tributária. Todavia, como apontado por Jean-Paul Sartre [7], o homem está condenado a ser livre, não porque criou a si mesmo, mas porque, uma vez no mundo, torna-se responsável pelo que faz.

A realização da profecia: aplicação do Tema 487 do STF às multas aduaneiras
Voltam-se os olhos para o STF no dia 17/12/2025, quando ultimado o julgamento do Tema 487 de repercussão geral, analisando a aplicação os limites das multas isoladas de caráter tributário, fixando a tese nos seguintes termos:

A multa isolada aplicada por descumprimento de obrigação tributária acessória estabelecida em percentual não pode ultrapassar 60% do valor do tributo ou do crédito vinculado, podendo chegar a 100% no caso de existência de circunstâncias agravantes.
Não havendo tributo ou crédito tributário vinculado, mas havendo valor de operação ou prestação vinculado à penalidade, a multa em questão não pode superar 20% do referido valor, podendo chegar a 30% no caso de existência de circunstâncias agravantes.
(…)
Não se aplicam os limites ora estabelecidos à multa isolada que, embora aplicada pelo órgão fiscal, se refira a infrações de natureza predominantemente administrativa, a exemplo das multas aduaneiras“

O STF fixou o importante entendimento sobre os limites às multas tributárias, ressalvando expressamente a sua aplicação quanto às multas isoladas predominantemente administrativas, citando nominalmente as infrações aduaneiras, o que não deveria causar espécie a ninguém, a essa altura. Nas CNTP, essa decisão não deveria causar qualquer impacto ao tema sob discussão.

Entretanto — e aqui chegamos ao clímax desse conto de feições edipianas — as duas turmas aduaneiras do Carf recém consolidaram o entendimento de que as multas decorrentes da interposição fraudulenta são tributárias! Em outras palavras, graças à novel jurisprudência, e por dever de coerência desses Colegiados, eles deverão, por força do artigo 99 do Ricarf, a aplicar o Tema 487 às multas decorrentes dessa infração, reduzindo a multa aplicada – equivalente ao valor aduaneiro – ao patamar de 20% da operação.

Mencione-se também o item 3 da tese, que determina a observância de diversos critérios qualitativos na mensuração da penalidade, como adequação, necessidade, justa medida, princípio da insignificância e ne bis in idem, que atualmente são absolutamente ignorados na discussão das multas aduaneiras no Carf.

Na urgência em retirar as multas aduaneiras pretéritas (e prescritas) do alcance do Tema 1293 do STJ, o Carf as joga, e também as futuras, sob o pálio do Tema 487 do STF, reduzindo substancialmente os seus valores, e afetando de forma igualmente significativa a eficácia social de todo o sistema punitivo aduaneiro, mormente aquelas infrações puníveis com perdimento conversível em multa — exatamente as de maior gravidade!

Realiza-se, pois, a profecia da derrocada do sistema de sanções aduaneiras! E exatamente como nas histórias, em decorrência direta dos artifícios criados exatamente para evitá-la. Não há como negar a fina ironia da história…

Realiza-se, pois, a profecia da derrocada do sistema de sanções aduaneiras! E exatamente como nas histórias, em decorrência direta dos artifícios criados exatamente para evitá-la.

Não há como negar a fina ironia dos eventos. Parafraseando a famosa frase de Churchill, a respeito do Acordo de Munique, subscrito por Neville Chamberlain com a Alemanha: entre a descartar a coerência ou as multas aduaneiras prescritas, escolheram rejeitar a coerência, e agora perderão também as multas aduaneiras (prescritas ou não).

Conclusão: liberdade com responsabilidade
O problema fundamental dos argumentos ad hoc travestidos de dogmáticos é que, sendo cientificamente escrutinados, acabam por submeter a conclusão a um leito de Procusto, incapaz de, simultaneamente, comportar as diversas conclusões contraditórias que deles decorrem.

Resta saber agora se o Carf respeitará os seus próprios e recentes precedentes, impondo a diversas multas aduaneiras o regime tributário em toda a sua extensão e consequência, aplicando sucessivamente o Tema 487 do STF, ou se retrocederá sobre os passos tortos já dados, para realinhar-se à sua própria jurisprudência, o que atrairá a aplicação do Tema 1293 do STJ aos casos de interposição fraudulenta. Independente da escolha, é essencial que se assuma a responsabilidade pelas consequências dela.

Hoje já vivemos uma situação pitoresca: caso a defesa da multa de interposição fraudulenta se dê sob os argumentos de decadência e prescrição intercorrente, à luz da jurisprudência atual das turmas competentes, essa infração será considerada aduaneira para fins decadenciais (Súmula nº 184), mas será tributária para fins de aplicação do Tema 1293, encerrando uma constrangedora contradição.

Diante desse contexto, esperamos não ver em breve a defesa de que a interposição fraudulenta (e outras infrações aduaneiras) seria uma infração “genderfluid”, alterando sua natureza jurídica de acordo com o que se pretenda aplicar no caso concreto. Diferentemente da identidade de gênero, eventual (e conveniente) proposta de fluidez de regimes jurídicos das infrações, para escapar simultaneamente dos dois precedentes vinculantes, não merece qualquer respeito. Seja tributário ou seja aduaneiro (nesse contexto, tertium non datur), o mais importante é ser coerente, adotando todas as consequências normativas que se depreendem da tomada de decisão.

Certamente novos argumentos ad hoc virão, alegando que para fins de uma das teses o regime será tributário, para fins da outra, será aduaneiro. Resta saber se o Carf seguirá, a pretexto da arrecadação, dando passos na direção desse abismo dogmático, quiçá aprofundando ainda mais as consequências dessa profecia autorrealizada.

P.S.: Paralelamente a isso tudo, o STJ já reconheceu nos ED no AgInt no REsp 2.122.282/SP (j. 19/11/2025) que a multa decorrente da interposição fraudulenta “não ostenta natureza tributária, mas, sim, administrativa”, entendimento que vem sendo ratificado pelos TRFs, ao aplicar o Tema 1293 a essa infração (e.g. AI 5012300-10.2025.4.03.0000 e ApCiv 5023810-24.2023.4.03.6100 no TRF-3; e ApCiv 5013473-/12.2021.4.04.7201 no TRF-4). É como murmurou Galileu, perante o Tribunal da Inquisição: Eppur si muove!

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[1] Por exemplo, A decisão do STJ no Tema 1.293: boa para o Direito Aduaneiro?.

[2] Processo nº 15165.721700/2021-69.

[3] Processo nº 15165.720001/2020-11.

[4] Súmula Carf nº 160: A aplicação da multa substitutiva do perdimento a que se refere o § 3º do art. 23 do Decreto-lei nº 1.455, de 1976 independe da comprovação de prejuízo ao recolhimento de tributos ou contribuições.

Acórdãos Precedentes: 9303-007.454, 3302-006.328, 9303-006.509, 3201-003.645, 3402-005.132, 9303-006.343, 3401-004.381 e 3402-004.684.

[5] O prazo decadencial para aplicação de penalidade por infração aduaneira é de 5 (cinco) anos contados da data da infração, nos termos dos artigos 138 e 139, ambos do Decreto-Lei n.º 37/66 e do artigo 753 do Decreto n.º 6.759/2009.

[6] Um teste para entender a natureza das multas aduaneiras

[7] L’Existentialisme est un Humanisme, Les Éditions Nagel: Paris, 1970, p. 18.

Fonte: ConJur

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é sócio do escritório Daniel, Diniz e Branco Advocacia Tributária e Aduaneira, com estágios pós-doutorais de pesquisa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen (MPI), doutor em Direito Tributário pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf e professor permanente do mestrado profissional do Cedes, do IBDT e da Apet.

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