STJ reconhece que mutações na tese tributária não podem afetar direitos
Roberto Duque Estrada
“Somente os livres, pessoas, povos, Estado e seus Poderes, podem ser fiéis às promessas feitas, às normas editadas, podem confiar e se responsabilizar pela confiança gerada e podem fazer justiça.”
(Misabel Derzi)
A partir desta quarta-feira (14/9) até sexta-feira (16/9) será realizado em Belo Horizonte o XXº Congresso Internacional de Direito Tributário da Associação de Direito Tributário (ABRADT), celebrando os 50 anos do Código Tributário Nacional. Será, com certeza, um evento inesquecível. Gentilmente convidado pelos amigos professores Valter Lobato e Alexandre Alkmin por motivos pessoais, tive que declinar, com imensa pena.
Há anos tenho participado do congresso da ABRADT e em algumas colunas tive a oportunidade de referir a momentos memoráveis que experimentei naquelas ocasiões. Triste pela ausência, só me resta render uma singela homenagem à homenageada deste ano no congresso, estrela maior da ABRADT, que a todos encanta, a professora de todos nós: Misabel Abreu Machado Derzi.
Tive meu primeiro contato com a obra da professora Misabel quando redigia minha monografia de fim de curso na PUC-Rio. O tema escolhido tinha sido o conceito de renda para fins de tributação das pessoas jurídicas, analisando, em especial, os efeitos no Imposto de Renda das pessoas jurídicas da manipulação dos índices de inflação pelo Poder Executivo, para fins de correção monetária do balanço. Sim, leitores mais jovens, a inflação que assolava o Brasil nos anos 1980 e 1990 do século passado produzia efeitos devastadores para os contribuintes e eram tempos de “bruxarias”, “pajelanças” heterodoxas de planos econômicos, que deixaram esqueletos nos armários do Judiciário. O tema era árido por envolver conceitos contábeis, mas minha atuação como estagiário, intensa em processos sobre a matéria, tornara a escolha natural.
E foi uma monografia da professora Misabel Derzi, um pequeno grande livro intitulado Os Conceitos de Renda e de Patrimônio (Efeitos da Correção Monetária Insuficiente no Imposto de Renda)[1], que deu direção e altitude ao trabalho, permitiu uma compreensão ampla e aprofundada da problemática, começando pelos aspectos constitucionais, seguindo pelas normas societárias e contábeis, com referência aos nossos grandes doutrinadores no domínio do Imposto de Renda (Rubens Gomes de Souza, Gilberto de Ulhôa Canto, Alberto Xavier, Bulhões Pedreira e Henry Tilbery) e passando pelas soluções do Direito Comparado, com especial referência a estudo de Jean-Marc Tirard[2], advogado francês que tive o prazer de conhecer pessoalmente anos depois.
O tempo passou desde aquele primeiro contato, e nosso conhecimento da professora foi se adensando. Foram várias as oportunidades que tive de ouvir suas lições em eventos pelo Brasil afora. Nunca mais deixei de ter suas obras como referência obrigatória. A atualização das Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar[3], de Aliomar Baleeiro, foi um grande presente para o meio jurídico. A continuidade daquele clássico só podia ser feita por alguém com a estatura da professora Misabel.
Ao amor pela obra seguiu-se um afetuoso carinho pela pessoa. Apresentado pelo professor Alberto Xavier, seu grande fã, pude ao longo desses anos, especialmente nos dias de ABRADT, experimentar o convívio com a professora, uma generosa e amabilíssima anfitriã.
A profunda sensibilidade jurídica da professora Misabel Derzi produziu uma obra-prima: o livro Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao Poder Judicial de Tributar[4].
Trata-se de um primor jurídico-filosófico — embora a autora modestamente diga que não tem pretensões filosóficas, cingindo sua obra ao Direito Positivo, especialmente ao ramo do Direito Tributário —, que pela primeira vez foi fundo na defesa dos contribuintes contra os dramáticos efeitos das constantes reviravoltas jurisprudenciais, contra a falta de confiança provocada pela instabilidade na definição das soluções jurídicas. Como afirma a autora na frase que serviu de epígrafe, não basta confiar, mas há que se responsabilizar pela confiança gerada. Um Estado Democrático de Direito verdadeiramente livre assenta na responsabilidade dos seus órgãos, quaisquer que sejam suas funções, pela confiança por eles gerada. Citando O. BACHOF, a professora Misabel Derzi nos ensina a regra do “quanto mais tanto mais”, assim enunciada:
“Quanto maior for a pressão da obrigatoriedade exercida pelo poder público, vinculando respectivamente o comportamento do indivíduo, e quanto mais o indivíduo ficar dependente de uma decisão do poder público, mais fortemente ele dependerá da possibilidade de poder confiar nessa decisão”[5].
A semente plantada pela professora produziu diversos estudos sobre o tema, inclusive uma obra em sua homenagem, coordenada pelo professor Sacha Calmon Navarro Coêlho, intitulada Segurança Jurídica – Irretroatividade das Decisões Judiciais Prejudiciais aos Contribuintes”[6], sem deixar de mencionar os excelentes textos publicados em obra em homenagem ao professor Sacha Calmon, intitulada Direito tributário e a Constituição[7], coordenada pelos amigos Eduardo Maneira e Heleno Torres.
O pensamento da professora Misabel Derzi a respeito da responsabilidade do Poder Judiciário com relação aos efeitos de suas decisões na esfera dos direitos dos contribuintes calou fundo e subjaz à importantíssima e recente decisão da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, proferida no julgamento do Recurso Especial 1.596.978-RJ, da relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, (DJe. 1/9/2016), de cuja ementa transcrevemos as seguintes passagens:
“1. A mutação jurisprudencial tributária de que resulta oneração ou agravamento de oneração ao Contribuinte somente pode produzir efeitos a partir da sua própria implantação, não alcançando, portanto, fatos geradores pretéritos, consumados sob a égide da diretriz judicante até então vigorante; essa orientação se apoia na tradicional e sempre atual garantia individual de proibição da retroatividade de atos oficiais (ou estatais) veiculadores de encargos ou ônus: sem esse limite, a atividade estatal tributária ficaria à solta para estabelecer exigências retro operantes, desestabilizando o planejamento e a segurança das pessoas”.
“2. Neste caso, a não incidência do IRPF sobre o Abono de Permanência estava claramente albergada na jurisprudência desta Corte Superior (AgRG no REsp. 1.021.817/MG, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, DJe 1/9/2008), o que somente veio a ser alterado com o julgamento do REsp. 1.192.556/PE, sob a sistemática do art. 543-C do CPC, relatado na 1ª Seção pelo Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 6/9/2010; Essa alteração jurisprudencial do STJ não pode surpreender os Contribuintes que realizaram fatos geradores anteriores à ela, sendo isso uma regra intransponível da ordem jurídica democrática, como altesonantemente apregoava o Professor GERALDO ATALIBA, na sua obra: República e Constituição, São Paulo, Malheiros, 2004” (grifos nossos).
Em seu voto, o ministro Napoleão discorre sobre como a orientação pela não tributação do abono de permanência havia se sedimentado na jurisprudência do STJ — a quem caberia a última palavra sobre a matéria — e como, com o tempo, essa orientação reverteu-se inteiramente, qual um caleidoscópio que ao girar muda completamente a imagem observada. Da noite para o dia, de uma hora para outra, o que estava protegido da tributação por sua natureza reconhecidamente indenizatória pelos julgadores de outrora (compensação pelo não exercício do direito a aposentadoria) passou a se submeter ao Imposto de Renda das pessoas físicas, em razão de passarem, a nela vislumbrar natureza remuneratória, os julgadores de agora.
E como ficam os contribuintes que confiaram naquela interpretação anterior, que adotaram o comportamento ditado pela jurisprudência do Tribunal Superior?
Eis a firme resposta da 1ª Turma do STJ, na voz do ministro relator:
“21. Aqui acrescento que, por se tratar de novo posicionamento que agrava o encargo tributário do Contribuinte, não se pode aplicá-lo às situações passadas, sob pena de afrontar o princípio da segurança jurídica, que, diante de sua importância inarredável, deve ser aqui aplicado no intuito de impedir a retroação de critérios jurídicos supervenientes a fatos geradores passados quando maléfica ao sujeito passivo da obrigação tributária, de modo a preservar as expectativas legítimas do Contribuinte, além de conferir segurança aos processos decisórios.
22. Relativamente à segurança jurídica e à irretroatividade do novo entendimento jurisprudencial para alcançar situações pretéritas, já tive oportunidade de afirmar que a irretroação da regra nova se aplica, inclusive, à jurisprudência, e não apenas às leis, quando capazes de prejudicar situação consolidadas:
Na verdade, quando se altera uma orientação consolidada na jurisprudência — e isso não se confunde com decisões esparsas ou episódicas —, orientação que previa a fruição de certo direito subjetivo, uma isenção de determinada obrigação ou dever jurídico, por exemplo, esta sé implantando, com essa alteração, a obrigação ou o dever jurídico que antes inexistia ou era inexigível.
Por isso é imperativo jurídico, mas também igualmente ético, que as eventuais situações consumadas antes da alteração jurisprudencial sejam devidamente preservadas, ou seja, que os efeitos da alteração jurisprudencial somente se produzam no tempo posterior à sua adoção (da alteração); e isso pode ser um fator apontado como elementar da segurança das relações jurídicas.
A irretroação da regra nova (qualquer que seja a sua natureza) é um requisito, talvez o primeiro requisito da segurança jurídica ou da segurança das relações sócio-jurídicas, cujo propósito é permitir que as pessoas possam programar, projetar, planejar ou conduzir as suas vidas e os seus negócios individuais confiando na permanência da eficácia das disposições que os regem no momento em que são tomadas as decisões relativas a esses interesses (Direito à Segurança Jurídica, Fortaleza/CE, Curumim, 2015, p. 96/97).
23. Sob essa visão, não se pode deixar de considerar a situação fática dos autos, em que, proposta a ação visando a discutir a incidência de determinado tributo, o critério jurídico de interpretação dada pelos Tribunais pátrios ao tema, durante certo período de tempo, levou à criação de uma expectativa justa por parte do Contribuinte de que este se encontrava resguardado da incidência da exação, sendo regular a sua situação fiscal” (grifos nossos).
Nada mais a acrescentar.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça assegurou, indiscutivelmente, uma justíssima proteção ao contribuinte. Reconheceu que é dever inarredável do Poder Judiciário zelar pela segurança dos jurisdicionados e que a verdadeira justiça só se alcança quando há confiança e responsabilidade em suas decisões.
[1] Os Conceitos de Renda e de Patrimônio (efeitos da correção monetária insuficiente no Imposto de Renda), Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1992.
[2] La fiscalité des sociétés dans la C.E.E., Paris, La Villeguerin, 1988.
[3] 7ª ed., Editora Forense, Rio de Janeiro, 1997.
[4] Modificações da jurisprudência no Direito Tributário: Proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao Poder Judicial de Tributar Editora Noeses, São Paulo, 2009.
[5] in Modificações (…), cit., p. 605.
[6] Publicado pela Editora Forense em 2013.
[7] Publicada pela Editora Quartier Latin em 2012. Referimo-nos especialmente aos trabalhos de Eduardo Junqueira Coelho, Segurança Jurídica e a Proteção da Confiança no Direito Tributário (p.225), Eduardo Maneira, Ativismo Judicial e Seus Reflexos em Matéria Tributária (p.269), Heleno Torres, Segurança Jurídica do Sistema Constitucional Tributário (p.355), Igor Mauler Santiago, A Crise Atual da Coisa Julgada em Matéria Tributária (p. 401), José Eduardo Soares de Melo, Coisa Julgada Tributária. Modulação. Relativização. Decisão em Controle Difuso de Constitucionalidade e os Limites de Efeitos (p. 451) e Rafhael Frattari, O Supremo Tribunal Federal e a Lei Complementar n.º 118: Uma crítica ao entendimento do Tribunal sob a luz da segurança jurídica (p. 733).
Fonte: Conjur
Roberto Duque Estrada
Advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.