Split payment e operações com pagamento parcelado: sobre apropriação de créditos pelo adquirente
Por Lorena Skrepec Galhardo, Henrique Roth Isfer
18/12/2025 12:00 am
Uma das principais promessas da reforma tributária (Emenda Constitucional nº 132/2023 e Lei Complementar nº 214/2025) é a adoção da sistemática da não cumulatividade plena para os novos tributos — Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
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Da experiência pregressa com os tributos atuais ditos como não cumulativos, como o ICMS, o IPI e as contribuições ao PIS e à Cofins, percebe-se que a intenção do constituinte derivado é de corrigir as distorções do sistema atual na implementação da não cumulatividade. É de conhecimento comum que, em razão das inúmeras restrições ao creditamento que surgiram ao longo do tempo, houve uma oneração excessiva da produção e da comercialização de bens de cadeia longa, ocasionando uma falha do sistema em aferir a capacidade contributiva manifestada pelo ato de consumo [1].
Neste viés, como forma de reforçar e modernizar não só o recolhimento tributário, mas também a obtenção e a realização dos créditos fiscais, a reforma tributária introduzirá o split payment, mecanismo que tem sido um dos principais centros de discussão no ambiente acadêmico e profissional, e que funcionará no momento da liquidação financeira das transações.
Previsto nos artigos 31 a 35 da LC 214/2025, o novo sistema impõe, aos prestadores de serviços de pagamento eletrônico e às instituições operadoras de sistemas de pagamentos, o dever de segregação e recolhimento dos valores do IBS e da CBS no momento da liquidação financeira da transação. Isto é, quando do pagamento pelo adquirente do bem ou do serviço, o valor relativo ao tributo incidente sobre a operação será imediatamente repassado aos cofres públicos, enquanto o fornecedor receberá apenas o valor líquido.
Apropriação de créditos
Sem adentrar ao mérito dos impactos dessa sistemática no fluxo de caixa das pessoas jurídicas – tema que já vem sendo bastante debatido pela doutrina, especialmente diante do fato de que a maior parte dos contribuintes estrutura sua política de pagamentos para o fechamento mensal, de modo a preservar liquidez e equilíbrio financeiro –, interessa aqui destacar um aspecto específico de sua aplicação.
Diante da combinação entre o split payment e operações com pagamento parcelado, surge a necessidade de compreender como ocorrerá a tomada de créditos em um contexto no qual a liquidação financeira da operação se projete para o futuro, por meio das parcelas ajustadas, enquanto a extinção da obrigação tributária pode ocorrer integralmente e por diferentes modalidades previstas no artigo 27 da LC 214/2025.
Especificamente no que tange às operações com pagamento parcelado, a LC 214/2025 dispôs, em seu artigo 34, inciso II, que a segregação e o recolhimento do IBS e da CBS deverão ser efetuados, de forma proporcional, na liquidação financeira de cada parcela.
A partir dessa leitura preliminar, poderia se questionar: ao adquirir o bem ou o serviço mediante pagamento parcelado submetido ao split payment, o adquirente estaria limitado a apropriar os créditos de IBS e CBS de forma proporcional ao pagamento de cada parcela, mesmo quando os tributos tenham sido integralmente extintos por quaisquer das modalidades previstas na lei?
Proporcionalidade e extinção dos débitos
Apesar de não termos todas as respostas da operacionalização do sistema, nas hipóteses em que a liquidação financeira das parcelas ocorra exclusivamente via split payment, a leitura do artigo 34, inciso II, sugere que a disponibilização dos créditos ao adquirente também tende a ocorrer de maneira proporcional. Essa interpretação se harmoniza com o artigo 156-A, § 5º, II, da Constituição, que admite que a lei condicione o aproveitamento do crédito ao efetivo recolhimento do tributo.
Por outro lado, nas situações em que a obrigação tributária for extinta de forma antecipada por qualquer das outras modalidades previstas em lei, ainda que o pagamento pela operação esteja submetido ao split payment, o crédito fica – ou deveria ficar – disponível ao adquirente no momento em que verificada a extinção dos respectivos tributos.
É o que se conclui a partir da leitura do artigo 34, II, em conjunto com o artigo 47 da mesma legislação, que dispõe que o contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS poderá apropriar créditos dos referidos tributos quando “ocorrer a extinção por qualquer das modalidades previstas no art. 27 dos débitos relativos às operações em que seja adquirente”, ressalvadas aquelas consideradas de uso ou consumo pessoal.
Fica clara a intenção do legislador de fazer com que o crédito surja para o adquirente no momento em que se verificar a extinção integral dos débitos incidentes sobre a operação, independentemente do parcelamento originalmente ajustado e da forma como se dará a liquidação financeira entre as partes. Tem-se, portanto, que o fator determinante para a tomada do crédito não é o cronograma das parcelas pactuadas, mas sim a extinção dos débitos por qualquer das modalidades previstas no artigo 27.
Para ilustrar, imagine-se a seguinte situação: a venda de um bem ou serviço foi contratada com pagamento parcelado via split payment. No caso de o fornecedor decidir realizar a compensação de créditos que já possuía com os débitos incidentes sobre a operação, extinguindo-os de maneira antecipada em relação ao vencimento das parcelas, o adquirente já poderia se apropriar dos créditos relativos à operação.
Ao reconhecer que o crédito surge no momento da extinção integral dos débitos da operação, o constituinte derivado assegura que o novo regime não produza distorções decorrentes do parcelamento e permaneça alinhado ao comando constitucional do artigo 156-A, § 5º, II.
Dúvida
Há uma ressalva, porém: torna-se claro que o modelo foi concebido para operar com plena eficiência apenas sob um “split payment inteligente”, capaz de reconhecer automaticamente a extinção dos débitos por qualquer das modalidades previstas no artigo 27. Resta saber se essa eficiência será preservada durante a fase de implementação gradual do sistema, especialmente nos períodos em que o split operar de forma parcial ou mesmo em versão off-line, colocando à prova a coerência interna e a segurança jurídica do regime.
Some-se a isso o fato de que, em diversos cenários, o adquirente poderá se creditar antes mesmo de desembolsar qualquer valor, já que o crédito é desvinculado do fluxo contratual e pode surgir antes da própria liquidação das parcelas. Tal assimetria evidencia, na prática, um possível financiamento involuntário do crédito do adquirente às custas do fornecedor.
[1] SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito Tributário. 14. ed. Rio de Janeiro: SRV, 2025. E-book. p.435-446.
Mini Curriculum
Lorena Skrepec Galhardo
é pós-graduanda em Direito Tributário Empresarial pela FAE Business School e graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba) e advogada.
Henrique Roth Isfer
é mestre em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), pós-graduado em Gestão Contábil e Tributária pelo FAE Centro Universitário e Advogado.
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