Silenciosamente, a guerra fiscal volta à pauta do Supremo Tribunal Federal

Kael Fagundes Pereira

Está pautado para julgamento na sessão virtual de 17/3/2023 a 24/3/2023 da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal o Agravo Regimental no ARE 1.415.813/RS, incluído na lista 103-2023 do ministro Alexandre de Moraes.

Até aqui não há novidade, visto que centenas de processos são julgados em lote semanalmente nas sessões virtuais do STF.

No entanto, a questão discutida nos autos do ARE 1.415.813/RS merece maior destaque e atenção da comunidade jurídica no cenário nacional, bem como dos contribuintes do ICMS, especialmente aqueles cujas mercadorias são destinadas ao Rio Grande do Sul, sob pena de se formar precedente com base em julgamento sumarizado desse recurso extraordinário, sobretudo por se tratar de questão de extrema relevância em se tratando de ICMS, benefícios fiscais, produtos da cesta-básica, Tema 299/STF e contornos de guerra fiscal.

Para que a questão seja bem compreendida, necessário se faz o breve histórico dos acontecimentos jurídicos que conduziram o tema em comento ao Supremo por meio de recurso extraordinário com agravo.

Em fevereiro de 2011, aportou no STF o Recurso Extraordinário nº 635.688/RS, cuja repercussão geral foi reconhecida em 21/10/2011, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, tornando-se o leading case no tocante à possibilidade, ou não, de aproveitamento integral dos créditos relativos ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) pago na operação antecedente, nas hipóteses em que a operação subsequente seja beneficiada pela redução da base de cálculo, constituindo, assim, o Tema 299/STF — Aproveitamento integral de créditos do ICMS pago na operação antecedente em hipóteses de redução parcial da base de cálculo na operação subsequente.

Em outubro de 2014, sobreveio decisão do Plenário do Supremo, fixando a tese de que a “redução da base de cálculo de ICMS equivale à isenção parcial, o que acarreta a anulação proporcional de crédito relativo às operações anteriores, salvo disposição em lei estadual em sentido contrário”. Decisão essa que transitou em julgado somente em maio de 2021.

Ocorre que, nesse meio tempo, no período compreendido entre a decisão do Plenário de outubro de 2014 e o trânsito em julgado em maio de 2021, o estado do Rio Grande do Sul editou o Decreto nº 54.853/2019, instituindo o Programa “Refaz 2019”, para que os contribuintes devedores de ICMS regularizassem seus débitos com redução de juros e descontos em multas, com exceções, é claro, que vieram dispostas em seu artigo 2º, §1º, do referido Decreto.

Dentre as três exceções dispostas no §1º, a que nos cabe comentar aqui é aquela disposta no inciso III, pela qual o Rio Grande do Sul vedou o enquadramento dos créditos tributários no Programa Refaz/2019 que estiveram em litígio judicial “pelo aproveitamento integral de créditos do ICMS pago na operação antecedente em hipóteses de redução parcial da base de cálculo na operação subsequente, alcançados pelo Tema cadastrado sob nº 299 no Supremo Tribunal Federal”.

Em novembro de 2021, o Órgão Especial — Tribunal Pleno do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, à unanimidade, julgou procedente o Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade nº 70084968338, declarando, em controle difuso, a inconstitucionalidade do artigo 2º, §1º, inciso III, do Decreto Estadual nº 54.853/2019 (Refaz/2019), por ofensa ao artigo 5º, caput, e 150, inciso II, da Constituição Federal, ao considerar que a diferenciação promovida pelo estado entre os devedores de ICMS que “contestaram seu débito em razão de acreditarem fazerem jus ao total do crédito da operação anterior, quando tenha havido redução parcial da base de cálculo na operação subsequente, estão automaticamente afastados do Refaz/2019, não podendo fazer qualquer escolha quanto a isso” ao passo que “os devedores de ICMS que contestaram seu débito com base em qualquer outro motivo poderão fazer a opção entre prosseguir na discussão judicial ou dela desistir e aderir ao REFAZ/2019”.

Diante disso, entendeu o Tribunal Pleno do ERGS pela ausência de liame lógico e finalidade jurídica no tratamento diferenciado entre os contribuintes, que se traduz em adoção de critério anti-isonômico que viola o disposto artigo 5º, caput, e 150, inciso II, da Constituição.

Em face dessa decisão, o Rio Grande do Sul levou à questão ao Supremo, obtendo provimento para reforma do julgado do Órgão Especial do TJ-RS, no sentido de que não há violação do princípio da isonomia na exclusão dos contribuintes devedores de ICMS do Programa Refaz/2019 que contestaram o débito e juízo e foram alcançados pelo Tema 299/STF.

Esse é o entendimento que será mantido ou reformado pela 1ª Turma do Supremo na sessão virtual do dia 17/3/2023 a 24/3/2023, quando do julgamento do Agravo Regimental no ARE 1.415.813/RS pautado no dia 8 de março deste ano.

Em caso de manutenção da decisão, o Rio Grande do Sul estará logrando êxito, apesar de todas as válidas e acertadas tentativas do Supremo de debelar a guerra fiscal entre os entes federados, em punir especialmente os contribuintes devedores de ICMS cujas mercadorias sejam provenientes de outros estados, mediante adoção de critérios verdadeiramente anti-isonômicos quando da edição de seus decretos como requisitos à concessão de benefícios fiscais.

Com efeito, é de clareza solar que o ERGS, ao incluir no seu programa de recuperação fiscal regra de restrição sem apoio no Convênio Confaz 151/2019, este que autorizou a edição do Refaz/2019 do RS, buscou punir contribuintes titulares de créditos vinculados à cesta-básica, especialmente os titulares de créditos de outros estados, em mais um capítulo da guerra fiscal.

Oportuno rememorar que a cesta-básica é alvo de medidas protetivas pelo Confaz, causando perplexidade a restrição inédita oposta a esse grupo de contribuintes legalmente protegidos em relação à concessão de benefícios fiscais.

Desta forma, ainda que despercebida pelo STF, a guerra fiscal voltou a sua pauta.

Com vistas à defesa de nossos clientes que foram atingidos pelo Tema 299/STF, e que foram excluídos do Refaz/2019, bem como daqueles que venham a ser excluídos de futuras concessões de benefícios fiscais, o Escritório Fagundes Pereira requereu habilitação como amicus curiae nos autos do ARE 1.415.813/RS, hipótese que, se deferido, contribuirá com sólidos argumentos para pluralização do debate constitucional.

Kael Fagundes Pereira

Advogado especialista em Direito Previdenciário pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul (Esmafe/RS) e sócio do escritório Fagundes Pereira Advocacia e Consultoria com atuação na defesa de contribuintes no cenário tributário nacional e do Estado do Rio Grande do Sul.

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