Risco orçamentário não é importante para modulação de decisões tributárias
Fernando Facury Scaff
Dias atrás, a convite da professora Juliana Furtado Costa Araújo, da FGV-SP, participei de um painel sobre a modulação dos efeitos em causas tributárias, cabendo-me, nesse latifúndio jurídico, tratar do risco orçamentário envolvido, usualmente alegado como matéria de defesa pelo poder público.
O ponto central dos debates, tanto no painel anterior, como no que participei, foi o pedido de modulação dos efeitos formulado pela Fazenda Nacional no caso do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins (RE 574.706). Tratei da matéria anteriormente nesta coluna Justiça Tributária, abordando que o debate não envolve nem questões de segurança jurídica e nem de excepcional interesse social (requisitos estabelecidos pelo artigo 27 da Lei 9.868/99 para a modulação), bem como relatei a estranheza de isso só vir a ser requerido através do instrumento processual de embargos de declaração.
Foi-me solicitado analisar os riscos orçamentários, pois, segundo alegado pela Fazenda Nacional, haverá um impacto de R$ 250 bilhões caso o STF decida não modular os efeitos. Claro que se trata de um debate consequencialista, tal como exposto pela professora Tathiane Piscitelli na ocasião, embasando sua análise na teoria do escocês e Neil MacCormick, tema da tese de doutorado de Basile Christopoulos, já publicada[1].
Porém, a despeito dessa análise, deve-se ainda perquirir: Será que o cálculo da Fazenda Nacional está correto? Será que isso deve servir de base para a análise do STF no caso em apreço? Foi o tema que expus, e aproveito para retomar neste espaço, ampliando o alcance do debate, que envolve matéria de direito financeiro, tributário e processual.
Tal como ocorre nas empresas privadas, a União criou uma espécie de análise dos riscos processuais que poderão impactar as contas públicas. Esta exigência consta do artigo 4º da Lei de Responsabilidade Fiscal, que obriga constar nas anuais Leis de Diretrizes Orçamentárias um Anexo de Riscos Fiscais, onde serão avaliados os passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as contas públicas, informando as providências a serem adotadas, caso se concretizem, e determinando que o Projeto de Lei Orçamentária Anual crie uma espécie de reserva de contingência para atender a tais necessidades (artigo 5º, III, “b”, LRF).
A classificação dos riscos é efetuada pela AGU, de conformidade com a Portaria 40/2015, que determina a análise das questões envolvendo impactos superiores a R$ 1 bilhão. Essa norma segue o mesmo padrão estabelecido para o setor privado, classificando o risco de perda em provável, possível ou remoto.
Para 2017-2018, a LDO é a Lei 13.473/2017, que determina em seu Anexo V, denominado de Anexo de Riscos Fiscais, diversas variáveis que podem impactar a execução orçamentária, inserindo, dentre elas, as que se referem aos processos judiciais, cuja análise é efetuada no item 3.1, relativo aos Passivos Contingentes e onde surgem as questões envolvendo o PIS e a Cofins.
É interessante observar que o referido Anexo V “compreende processos com probabilidade de perda considerada possível, tendo em vista que, de acordo com o Tribunal de Contas da União (ofício nº 171/2014-TCU/SEMAG), processos com risco considerado como provável deverão ser provisionados pela STN.”
Dentre os casos relacionados com risco de perda possível está o “Tema 1: PIS e COFINS. Base de cálculo, inclusão do ICMS”. Justificativa apresentada: há precedente recente do Plenário contrário à União e relevância do caso para os cofres públicos, com impacto estimado de devolução aos contribuintes em caso de derrota da União de R$ 250 bilhões e uma perda de arrecadação projetada para o período de 2002 a 2016 no valor de R$ 101 bilhões. Em outras palavras, a União admite que a perda seja possível, e não provável, não tendo provisionado recursos orçamentários para sua satisfação.
Nada foi dito na LDO acerca da metodologia de cálculo que permitisse compreender a forma pela qual se chegou a esses números. No evento, Breno Vasconcelos informou que teve que recorrer à Lei de Acesso a Informação (Lei 12.527/11) para obter os dados necessários à sua compreensão, os quais foram inicialmente negados, mas, posteriormente, informados de maneira imprecisa. Tudo indica que os números não foram auditados ou escrutinados, e se trata de uma singela conta de chegada, procedimento usual em tempos idos.
Independente do montante apurado pela União e apresentado no Anexo V da LDO/2017-2018, entendo que a quantificação do risco orçamentário não é importante para fins de modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade da lei, pois esse requisito não consta da Lei 9.868/99, que regula a modulação, a qual menciona apenas o excepcional interesse social ou e a segurança jurídica.
Não há dúvida de que haverá impacto orçamentário, mas isso não implica em dizer que, por sua causa, deverá haver modulação da decisão pelo STF. De que valeria a decisão proferida, declarando a inconstitucionalidade da norma, se a mesma não fosse implementada em suas duas dimensões: ressarcimento do que foi pago a maior, e afastamento do ICMS da base de cálculo das referidas contribuições sociais federais nas transações correntes?
Alguém dirá acerca dos efeitos redistributivos perversos da decisão não-modulatória, pois alguns receberão a devolução do que foi indevidamente pago, e outros não. Ora, se a norma foi declarada inconstitucional, deve produzir efeitos, tanto para as futuras transações, isto é, fazer cessar a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins; quanto para as transações passadas, isto é, a devolução do que foi pago a maior pelos contribuintes, litigantes ou não.
Nos dois aspectos deve prevalecer a ótica republicana da universalidade, pois seria inadequado que alguns contribuintes pudessem retirar o ICMS da base de cálculo dessas contribuições federais e outros não; do mesmo modo, seria inadequado que os litigantes recebessem a devolução, e não os demais contribuintes. Repito: a lógica é da universalidade — o que pode fazer com que os números aparentemente não auditados apresentados pela União venham a ser muito maiores.
A ótica consequencialista orçamentária até poderia fazer algum sentido caso tivesse sido adotada para fins do julgamento proferido, não agora, na modulação de seus efeitos. Modular apenas postergará a aplicação da decisão judicial, seja para as futuras operações, seja para fins de reembolso. Assim, não será o atual governo a pagar a conta, mas os futuros, acarretando um efeito Pedro Pedreiro, que esperava um trem que já vem, que já vem, que já vem…, como na música de Chico Buarque.
Isso me recorda, sob o ângulo da despesa pública, as pedaladas orçamentárias que diversos governos estaduais e municipais adotam para o pagamento de precatórios, que são incluídos na previsão orçamentária, porém os montantes são alterados na fase de execução do orçamento para percentuais muito abaixo daqueles originalmente previstos – ou até retirados integralmente -, sem nenhuma consequência para quem assim procedeu.
Diversos participantes do colóquio se esforçaram para identificar alguma racionalidade nas decisões anteriores do STF, de modo a poder prever seu comportamento neste caso. Foram mencionadas, dentre outras, as vetustas ADI 513, Célio Borja/1991, a ADI 441, Marco Aurélio/1991 e a ADI 1102, Maurício Correa/1995. Recordo, de forma correlata, o RE 197.917, Maurício Correa/2002 e a ADI 875, Gilmar Mendes/2010. Todavia, nenhum desses casos permite visualizar o comportamento que adotará o STF neste caso, pois sua composição atual é radicalmente diversa e os pressupostos fáticos também.
Costumo dizer que o orçamento é um sistema de vasos comunicantes, no qual alterar um item obriga em modificar os demais, seja no âmbito da receita, despesa ou crédito, essa decisão sobre modulação acabará por levar a cortes nos gastos já previstos, ou aumento de tributos ou endividamento. Não tem saída, como de certa forma se viu com a edição da Lei Complementar 110/01 (ADI 2556, Joaquim Barbosa/2012), que era para ser temporária e se tornou permanente (exceto se o STF decidir em sentido diverso no Tema 846 de Repercussão Geral, Marco Aurélio/2015).
É necessário, contudo, que seja dada uma decisão republicana, isto é, universalista, e não apenas para quem ingressou em juízo a partir do dia X ou da fase processual Y. Deve ser para todos. E o custo orçamentário – implicando em impactos na receita, despesa ou endividamento – , deve seguir idêntico paradigma republicano, universalista, tratando desigualmente aos desiguais, na medida de sua desigualdade, visando reduzi-las, com respeito às diferenças existentes. Dentre essas diferenças deve constar a do grupo dos litigantes versus o dos não-litigantes, pois quem se arriscou no litígio deve ter um tratamento diferenciado, nem que seja recebendo antes dos demais, como apontei na coluna acima mencionada.
Duas últimas observações. As teses consequencialistas acabam por permitir muita impunidade, permitindo que outros desvios ocorram. Basta ver que ainda existem esqueletos nos cofres governamentais referentes às desastradas políticas do passado, como a questão dos diversos e malsucedidos planos econômicos do final do século passado.
A fórmula correta para sanar isso seria olhar com mais atenção para outra teoria republicana, que é a da responsabilidade pública, que pode ser analisada sob o prisma político ou sob o prisma jurídico. Mas isso é prosa para outra ocasião.
[1] Christopoulos, Basile. Orçamento público e controle de constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
Fernando Facury Scaff
Advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.