Responsabilidade da União de indenizar por danos aduaneiros

Leonardo Branco

A greve acabou, a noite esfriou
No início de fevereiro, o Sindifisco comunicou ao governo federal ter aprovado, em assembleia nacional, a proposta relativa à implementação do bônus de eficiência, tantas vezes prometida desde 2016 [1], tendo decidido o órgão “(…) suspender todas as ações de mobilização”, encerrando, assim, a greve iniciada em 20/11/2023.

Ao longo da paralisação nacional, foram publicadas “notas à sociedade”, por meio das quais os administrados eram comunicados que, entre tais e tais dias, estariam, por exemplo, “suspensos no Porto de Santos o atendimento ao público e o desembaraço de cargas”.

As empresas que operam no comércio exterior, no seu pequeno purgatório da zona primária, porta de entrada e saída de produtos, veículos e pessoas, diante da suspensão das atividades da aduana, acabaram por assumir determinados prejuízos, cabendo ao Direito refletir (decidir) sobre a extensão dos direitos que poderão ser reclamados contra o Estado.

“(…) com a chave na mão, quer abrir a porta, não existe porta” [2].

O dano aduaneiro
A demora na liberação da mercadoria pode ser causada não apenas em virtude das greves, próprias das democracias, mas também em razão das altas demandas, de ineficiências, irregularidades, ou mesmo do excesso de exigências legítimas e sequenciais por parte das autoridades aduaneiras.

Tais ocorrências implicam o acréscimo nos custos experimentados pelos operadores no terminal alfandegado e com impactos financeiros sobre a cadeia de suprimentos, em especial aqueles incorridos com (1) a armazenagem dos produtos; (2) a sobrestadia regulada pela Antaq, quer se manifeste como demurrage ou como detention, (3) a perda de carga perecível, (4) o aumento do preço do frete e do seguro, (5) a quebra de contratos, (6) os lucros cessantes, (7) os danos morais, ou (8) diante de qualquer exigência que posteriormente se comprove antijurídica, excessiva ou exagerada, como uma exigência indevida de garantia ou uma decisão que contrarie precedentes de observância obrigatória.

Quando ocasionados pelo Estado, excluídos, portanto, os casos fortuitos ou de força maior, mesmo que tenha a empresa contribuído para a produção do dano, uma vez que a culpa concorrente não exclui necessariamente a responsabilidade da administração, todos esses eventos, uma vez que extrapolem o dever de tolerância mínima, podem gerar o questionamento a respeito do nascimento do dever de indenizar.

“Neminem laedere”: os fundamentos do dever estatal de indenizar
Em 2017, foi defendida na Faculdade de Direito da USP a tese “Responsabilidade do Estado por dano tributário”, de autoria da professora Andreia Scapin, que se tornou uma referência no tema. O trabalho se voltou a responder a respeito do dever do Estado de indenizar os danos sofridos pelo particular em decorrência de atos praticados por agente público no exercício de sua função.

A administração tem o dever de não causar dano, e responde, segundo disposição textual da Constituição, pelos danos causados às empresas, lesão esta que deve ser apreciada pelo Poder Judiciário.

Segundo a autora, o princípio de base epicurista “neminem laedere” que embraça a obra de Ulpiano, encontra eco no texto constitucional de 1988: desrespeitá-lo tem o potencial de “(…) instaurar uma relação jurídica para que o Estado-Juiz aplique a providência sancionatória” [3].

Tais casos são governados pela teoria objetiva da responsabilidade com base no risco administrativo, salvo no caso de dano resultante de condutas omissivas do agente público, hipótese que demandará necessariamente a demonstração de um dos elementos informadores da culpa.

Para que se configure a responsabilidade da administração, deverá ser demonstrada a conduta do Estado, lícita ou ilícita, que implicou lesão certa e anormal (atual ou futura) a direitos subjetivos (dano ilícito): conduta, dano e nexo de causalidade emergem como as bases da pretensão indenizatória.

São os casos em que uma consequência da conduta fere direitos fundamentais (antijuridicidade), tais como a propriedade, a liberdade ou o exercício de profissão, ou direitos constitucionais, como a livre iniciativa econômica, e o “(….) leque de direitos que resultam da relação normal entra a Administração Pública e o cidadão” [4], tais como a legalidade, a igualdade, a eficiência, a proporcionalidade, a razoabilidade, a boa-fé e o direito de colaboração.

O dano tributário
Os clássicos casos de dano suscetível de responsabilização do Estado são aqueles em que há, devido a uma cobrança indevida de tributos, o bloqueio de bens da empresa, sua inscrição em cadastros informativos como o Cadin, a negativa a se emitir certidões de regularidade fiscal, ou mesmo a limitação da possibilidade de alienar bens e direitos, ou a propositura de execução fiscal em caso de crédito com exigibilidade suspensa em virtude de parcelamento com pagamento regular.

Ainda que a mera cobrança indevida de tributo constitua violação sem base legítima à propriedade e inflição de sofrimento ao contribuinte, a suspensão da exigibilidade do crédito diante de sua impugnação, ao lado da inafastabilidade da Jurisdição, acabam por expungir a pretensão indenizatória. As patologias relacionais, no entanto, como aquelas acima apontadas, e até mesmo os dispêndios dela decorrentes permanecem como causas legítimas de responsabilização do Estado.

Danos aduaneiros: armazenamento, demurrage e danos emergentes
Múltiplas são as lesões com o potencial de gerar o dever indenizatório no contexto aduaneiro, como os danos emergentes, diretos ou positivos decorrentes, por exemplo, da falha ou excesso da função fiscalizatória.

A extrapolação dos prazos legais para o cumprimento de medidas sob a responsabilidade da autoridade aduaneira, como o de 8 dias para o desembaraço aduaneiro, a imposição de exigências ilegítimas demandadas para além do interesse da fiscalização, o excesso de exigências legítimas consignadas em sequência de modo a causar o atraso no desembaraço, ou a apreensão de mercadorias por fundamento que se revele inaplicável podem implicar diversos danos ao importador.

Tais falhas terão por efeito imediato o pagamento de valores de armazenagem e sobrestadia que não existiriam sem a conduta da administração.

É correto, portanto, o posicionamento que entende pela imputação de responsabilidade objetiva do Estado quanto a tais danos, pois a retenção da carga importada após o transcurso do prazo legal para a conclusão do procedimento lesiona o patrimônio da empresa [5]. E, ainda que não existam prazos específicos previstos em lei, a Administração deve observar o princípio da eficiência, de modo a promover seus atos em prazos razoáveis [6].

Entre o lucro cessante a perda de uma chance por dano aduaneiro
O lucro cessante, ou dano negativo, expresso na codificação civil brasileira, bem como a construção em torno da “perda de uma chance”, têm sido admitidas na responsabilidade civil objetiva do Estado (Resp nº 1.308.719).

No caso de uma retenção indevida de mercadoria por parte da autoridade aduaneira, além da condenação da União a ressarcir os valores relativos à armazenagem e demurrage, desde o termo de retenção até a data da efetiva liberação dos bens [7], caberá, ainda, a avaliação a respeito de eventuais quebras de contrato e pagamento de multas impostas ao importador por decorrência do atraso na entrega do produto, incluindo as despesas com contratação de advogado e dispêndios incorridos para sua defesa em eventuais ações judiciais promovidas em virtude do descumprimento de compromissos previamente ajustados e descumpridos, posição firmada pelo TRF da 3ª Região [8].

Nestes casos, a mera alegação de perda potencial não nos parece suficiente para a configuração do dever de indenizar, cabendo ao importador demonstrar o prejuízo experimentado. No entanto, uma vez que a demonstração nem sempre é possível de ser realizada de maneira precisa e objetiva, cabe a observância da flexibilidade prevista pelo artigo 402 do Código Civil: as perdas e danos abrangem o que “razoavelmente” deixou de lucrar”).

Prestação de garantia por conduta indevida
Conjectura-se o caso em que o importador classifica uma determinada mercadoria na nomenclatura que a autoridade aduaneira entende como equivocada. Neste caso, a empresa presta a garantia correspondente, no termos do Tema nº 1.042 de repercussão geral, e libera a mercadoria, arcando com um custo de 5% do valor da carga ao ano. Em momento posterior, três anos depois, a própria Ceclam/RFB define em solução de consulta que a classificação inicial era a correta, ou a empresa obtém julgamento favorável na DRJ ou no Carf, ou mesmo no Poder Judiciário. Caberia o dever do Estado de indenizar o particular neste caso?

Escrevemos recentemente nesta coluna a respeito das hipóteses de liberação de mercadoria mediante prestação de garantia (link). A legislação brasileira determina a obrigação da administração de autorizar a entrega da mercadoria mediante a prestação das principais informações relativas à remessa acompanhada da “garantia destinada a assegurar a cobrança dos direitos e demais imposições exigíveis”, conforme Artigo 3.41 do anexo geral da CQR, o que se encontra em harmonia com os parágrafos 3.2(b) e 3.4 do Artigo 7º do AFC.

Spacca
Há um dano evidente sofrido pelo importador no caso do exemplo, mas ele, sob esta perspectiva, não parece ser indenizável, a menos que se considere que um dos efeitos da suspensão da exigibilidade é bloquear quaisquer atos de cobrança, diretos ou indiretos. De todo modo, o dano será evidente no caso de uma retenção ilegal que constranja o importador a prestar a garantia.

Em muitos casos, a negativa da possibilidade da garantia é que configurará o dano ressarcível, caso a conduta se demonstre desproporcional. Não se tratando de mercadoria proibida ou licença de importação vedada ou suspensa, não havendo proibição normativa que vincule o aplicador, a negativa à liberação mediante garantia pode configurar uma situação exagerada em que havia alternativa para mitigar os danos sem prejuízo das cautelas fiscais.

Desrespeito aos precedentes vinculantes e à coisa julgada
A mera imposição de multas ou exigências aduaneiras, ou mesmo eventuais cobranças judiciais, que contrariem precedentes vinculantes, a coisa julgada, ou simples decisões judiciais, geram o direito da empresa que atua no comércio internacional a ser indenizada.

Não pode a autoridade aduaneira, ou os julgadores administrativos, ignorarem ou simplesmente decidirem de maneira contrária ao entendimento favorável aos importadores e exportadores em sede de controle concentrado de constitucionalidade, ou decisões de caráter transubjetivo, recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida, mesmo súmulas vinculantes, ou, ainda, recursos especiais pela sistemática dos repetitivos.

Dano moral: a lesão ao patrimônio reputacional
O dano moral, como espécie de dano não patrimonial, é reconhecido de maneira pacífica na hipótese em que o prejudicado se trata de pessoa jurídica (Súmula nº 227/STJ). Diante de exigências indevidas do Estado, o STJ (Resp nº 773.470/PR) entendeu, em voto de relatoria da Ministra Eliana Calmon, estar diante de modalidade presumida (in re ipsa).

Ainda assim, entende-se que cabe à empresa demonstrar, ainda que de maneira aproximada, a extensão do dano na esfera de credibilidade da pessoa jurídica. Para fazê-lo, parece ser razoável se aceitar como prova que o atraso ou exigência excessiva tenham provocado o descumprimento de contratos com clientes.

Neste sentido, o TRF-3 já entendeu, de maneira correta, pela existência de ofensa à honra objetiva da empresa diante da mácula à sua reputação e abalo da credibilidade perante terceiros, como no caso em que os clientes prejudicados propuseram ações judiciais decorrentes de um controle aduaneiro excessivamente oneroso [9].

José, para onde?
O descumprimento de prazos legais ou a imposição de exigências expressamente proibidas fundamentam, de maneira bastante precisa, o dever de indenizar. Maior esforço argumentativo apresentarão as exigências que posteriormente se mostrarem despropositadas e desarrazoadas, mas, ainda assim, merece maior atenção o capítulo referente à responsabilidade do Estado pelo dano aduaneiro.

[1] Como defendi nesta coluna, ao lado da professora Fernanda Kotzias (link), é necessário se recordar que, em matéria aduaneira, “(…) há determinação de que a cobrança de tributos e penalidades não seja realizada por meio de medidas que possam trazer conflitos de interesse, proibindo que qualquer parte da remuneração dos agentes oficiais seja calculada de forma fixa ou proporcional à arrecadação. Este ponto ganha especial relevância no momento (…) da regulamentação do chamado ‘bônus de eficiência’ que, sob a perspectiva do acordo, não poderá considerar a arrecadação, direta ou indiretamente, como variável aceitável, o que limita o escopo do artigo 6º da Lei nº 13.464/2017 a outros critérios, indicadores de desempenho, metas e objetivos que não o resultado de ações de cobrança”.

[2] ANDRADE, Carlos Drummond de. José. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[3] SCAPIN, Andréia Cristina. Responsabilidade do Estado por dano tributário. 2017. Tese (Doutorado em Direito Econômico e Financeiro), Faculdade de Direito da USP, sob a orientação do Professor Paulo Ayres Barreto, São Paulo, 2016, p. 268. Segundo a autora, os fundamentos e consequências do desrespeito ao dever de não causar dano se encontram no art. 1º, inciso III, e do art. 5º, incisos X e XXXV, da Constituição, base para o art. 37, § 6º e para as normas da legislação ordinária, em especial os arts. 186, 187 e 927 do Código Civil.

[4] Idem, p. 267.

[5] TRF4, AC 5017068-73.2022.4.04.7107, 2ª Turma, Relator Eduardo Vandré Oliveira Lema Garcia, juntado aos autos em 25/08/2023; TRF4, AC 5018728-26.2022.4.04.7100, 3ª Turma, Relator Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, juntado aos autos em 24/10/2023; TRF4, AC 5016459-14.2022.4.04.7100, 2ª Turma, Relator Rômulo Pizzolatti, juntado aos autos em 15/03/2023; TRF4, 1ª Turma, Apelação Cível nº 5026163-07.2015.4.04.7000, Desembargador Relator Alexandre Rossato da Silva Ávila, DJ 24.04.2019; TRF4, 2ª Turma, Apelação Cível nº 5017102-67.2016.4.04.7201, Desembargador Relator Alexandre Rossato da Silva Ávila, DJ 11.03.2022; TRF1, 8ª Turma, Apelação Cível nº 0033493-49.2014.4.01.3900, Juíza Federal Convocada Relatora Kátia Balbino de Carvalho Ferreira, DJ 15.10.2021.

[6] TRF4, AC 5002171-58.2022.4.04.7101, 2ª Turma, Relatora Maria de Fátima Freitas Labarrère, juntado aos autos em 18/07/2023.

[7] TRF1, 8ª Turma, Apelação Cível nº 0001073-52.2014.4.01.4300, Juiz Federal Convocado Relator Marcelo Velasco Nascimento Albernaz, DJ 15.02.2019.

[8] TRF 3ª Região, 4ª Turma, ApCiv – APELAÇÃO CÍVEL – 2162079 – 0009023-49.2012.4.03.6104, Rel. Desembargador Federal Marcelo Saraiva, julgado em 18/07/2019, publicado em 31/07/2019.

[9] TRF 3ª Região, 4ª Turma, ApCiv 2162079 – 0009023-49.2012.4.03.6104, Rel. Desembargador Federal Marcelo Saraiva, DOU 31/07/2019.

Leonardo Branco

sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax), doutor, mestre e especialista pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD), é professor no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional", e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

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