(Re)pensando os pressupostos para a modulação em matéria tributária
Fernanda Donnabella Camano, Tércio Chiavassa, André Torres dos Santos
Logo após a conclusão do julgamento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu a cessação dos efeitos da coisa julgada tributária nas relações jurídicas de trato continuado (Temas 881 e 885 de Repercussão Geral [1]), em razão de ulterior precedente do tribunal em sentido contrário, o debate nos foros acadêmicos passou a tratar da emblemática questão da modulação de efeitos daquela decisão, inicialmente afastada pela corte.
Encerrado o julgamento com o mérito deliberado por 11 votos a 0 no sentido da paralisação automática da eficácia da coisa julgada tributária, os ministros se debruçaram sobre a possibilidade (ou não) de se modular o entendimento pronunciado.
Foi debatido se os efeitos do julgamento deveriam ser aplicados desde 2007 — data em que a lei instituidora da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) teria sido declarada constitucional pelo STF na ADI 15-2 — ou se caberia valer-se da modulação de modo a fixá-los a partir da publicação da ata daquela sessão deliberativa. Concluíram, ao final, por diferença de um voto (6 a 5) que não seria a hipótese de modular o julgado. A ausência de modulação de efeitos acarreta, de imediato, a seguinte consequência: para o caso concreto pendente de solução, significa que o precedente da Corte exarado em 2007 na ADI 15-2 declarando válida a CSLL seria apto a produzir efeitos desde então [2].
Além do referido efeito concreto, a corte fixou a seguinte tese no item 2: “2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”. Esse o contexto no qual será abordada a questão da modulação.
A modulação está prevista no artigo 27[3] da Lei 9.868/1999 e no artigo 927, § 3º [4] do CPC. A previsão constante da Lei 9.868/1999 refere-se à modulação “clássica”, aplicada em hipótese de declaração de inconstitucionalidade da lei, quando o desfazimento de relações jurídicas formadas na sua vigência ocasionará um estado de coisas mais inconstitucional do que a sua manutenção naquele período; já a determinada no CPC, impropriamente denominada “modulação” [5], aplica-se quando houver alteração de jurisprudência com modificação da orientação firmada até então. Muito embora submetidas a regimes jurídicos diversos, ambas apresentam fio condutor comum: a segurança jurídica pautada na confiança dos julgamentos de cúpula do Poder Judiciário.
Nos leading cases da coisa julgada em relações de trato continuado, os debates sobre a modulação de efeitos se limitaram à eficácia da constitucionalidade da CSLL no caso concreto. Os ministros discutiram se outros julgados da Suprema Corte, a exemplo dos temas 494 (RE 596.663/RJ [6]) e 733 (RE 730.462/SP [7]), cujos acórdãos foram publicados em 2014 e 2015 e que não trataram de matéria tributária, teriam minado esse estado de confiabilidade, de modo que a cessação dos efeitos da coisa julgada da CSLL retroagiria ao ano de 2007. Não se considerou, quando do julgamento dos leading cases, se havia confiança produzida pelo precedente do STJ (REsp 1.118.893/MG [8]), tampouco o fato de o STF, até 2016 (inclusive no próprio tema 885), compreender que essa questão teria natureza infraconstitucional, não conhecendo dos recursos extraordinários.
Como já foi mencionado, a questão do presente texto diz respeito ao debate em torno da modulação, mesmo após a finalização do julgamento pelo STF, que passou a se centrar, parece-nos, em uma questão subjetiva e limitada a apenas uma das consequências práticas da decisão, especificamente aquela voltada ao caso concreto em discussão (CSLL), muito embora, em se tratando de precedente firmado sob o rito da repercussão geral, a tese fixada ultrapasse os limites subjetivos da lide e alcance situações outras (esse o fim pretendido dos julgamentos com efeitos transubjetivos).
Aqueles que endossam a posição da Suprema Corte no sentido de não modular seu julgado, limitando à análise da CSLL, sustentam que os contribuintes “já sabiam” que deveriam se submeter à exação desde 2007 (mesmo que aquela decisão da ADI 15-2 não tivesse estipulado este efeito expressamente).
Já os que não se filiam a tal corrente, também limitados à hipótese específica da CSLL, afirmam que se trata apenas de juízo de previsibilidade, isto é, quando muito, os contribuintes detentores da coisa julgada poderiam “supor” o rompimento de seus efeitos, pois ainda se aguardava a decisão dos Temas 881 e 885.
Em nossa opinião, mesmo diante de um precedente contrário do STF, como o da referida ADI 15-2 (CSLL), por exemplo, no máximo, poder-se-ia cogitar que o Fisco deveria manejar ação rescisória (ou revisional) para cessar os respectivos efeitos e passar a cobrar o tributo, tendo em vista que foi a primeira vez que o STF expressamente julgou o tema.
De um lado, o mero juízo preditivo ou a certeza reduzida ao “já sabiam” não têm força para regrar as relações jurídico-tributárias. De outro, em qualquer caso, a modulação de efeitos da tese de repercussão geral fixada na ocasião deve ser avaliada à luz de todos os potenciais impactos da decisão, e não apenas dos elementos concretos que justificariam ou não a modulação na hipótese da CSLL.
Assim, nossa sugestão é de que o debate a esse respeito seja dirigido para a construção de quais seriam os pressupostos objetivos a denotar ausência de surpresa naquele contexto.
Um exemplo de critério objetivo aplicável no âmbito tributário seria o de que, inexistente o dever jurídico de constituição de provisão dos valores acobertados pela decisão transitada em julgado no tema apreciado, de acordo com os pronunciamentos técnico-contábeis emitidos pelos órgãos responsáveis, há confiança a ser protegida.
Como antes apontado, o escopo deste artigo não é rediscutir a modulação de efeitos nos Temas 881 e 885, mas alertar para a necessidade de os pressupostos de utilização deste instrumento no âmbito tributário serem (re)pensados pela comunidade jurídica, no sentido de dar-lhe contornos mais objetivos para que se alcance aquilo a que os pronunciamentos transubjetivos vinculantes se destinam: garantir confiabilidade e calculabilidade nos atos passados, presentes e futuros emanados pelo Poder Judiciário quando está em xeque a exigência de tributos.
Independentemente da discussão em torno da modulação, entendemos que a aplicação da tese fixada nos julgamentos dos Temas 881 e 885 em relação à CSLL é viciada por ser retroativa, pois agregou critério antes não previsto na decisão da ADI 15-2 ao fazer cessar os efeitos da coisa julgada de forma imediata, em nítida violação ao próprio item 2, que determina que tal paralisação de efeitos não se dê de modo retroativo.
[1] O Tema 881 diz respeito aos “limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado”. O Tema 885 trata sobre os “efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado”.
[2] Há que se aguardar a publicação dos acórdãos para verificar o termo inicial da aplicação da anterioridade.
[3] Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
[4] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
(..)
§ 3º. Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica
[5] A “modulação” de efeitos decorrente da virada jurisprudencial tem sido denominada pela doutrina como “superação para frente de precedente”.
[6] Neste caso, o STF julgou como as alterações de fato ou de direito afetam o silogismo da sentença nas relações jurídicas de trato continuado (sem referir-se à matéria tributária).
[7] O RE mencionado sequer tratou do efeito de precedente contrário da Corte nas relações jurídicas de trato continuado (além do mais, tratava-se de fato envolvendo honorários advocatícios).
[8] O STJ compreendeu que decisão superveniente do STF não tem o condão de impactar a coisa julgada formada nas relações jurídicas de trato continuado em matéria tributária.
Fernanda Donnabella Camano, Tércio Chiavassa, André Torres dos Santos
Fernanda Donnabella Camano é pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, advogada, professora dos cursos de especialização e extensão em "Processo Tributário Analítico" do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), professora do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGVLaw) e pesquisadora do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.
Tércio Chiavassa é mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e advogado.
André Torres dos Santos é mestre em Direito Tributário e Desenvolvimento Econômico pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e advogado.