Reforma tributária: Reflexões iniciais ao contencioso administrativo do IBS
Eduardo Salusse
O segundo projeto de lei complementar que pretende regulamentar a reforma tributária instituída pela Emenda Constitucional n° 132/24 foi apresentado pelo governo federal.
Dentre os diversos temas tratados, o projeto sugere a criação de um contencioso tributário integrado entre Estados, Distrito Federal e municípios, exercido por meio do Comitê Gestor, com competência para decidir o contencioso administrativo relativo ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), tal como previsto no artigo 156-B, inciso III, da EC nº 132/23.
Há a previsão de três instâncias administrativas. A primeira instância deverá decidir a impugnação inicial ofertada pelo contribuinte autuado em órgão formado por 5 julgadores oriundos dos quadros da administração fazendária. A segunda instância terá competência para decidir recursos voluntários apresentados pelo contribuinte e recursos de ofício apresentado pelo Fisco, sendo composta por 9 julgadores, sendo 4 representando os contribuintes e 4 representando o Fisco, além do presidente que também é oriundo da administração fazendária e que proferirá voto apenas em caso de empate. A terceira instância será um órgão para uniformizar a jurisprudência em caso de decisões divergentes proferidas pela instância inferior, composta por 9 julgadores representantes da administração fazendária.
Em todas as instâncias, o respectivo órgão de julgamento também poderá julgar pedidos de retificação interposto em face das suas próprias decisões com vistas a corrigir eventual erro de fato, eliminar contradição, obscuridade ou suprir omissão nela contidos.
É sempre muito salutar reiterar os princípios constitucionais que regem o nosso sistema, mesmo que todos estejam previstos em nossa Constituição Federal. Neste diapasão, o projeto destaca que no processo administrativo tributário serão observados os princípios da simplicidade, da verdade material, da ampla defesa, do contraditório, da publicidade, da transparência, da lealdade e boa-fé, da motivação, da oficialidade, da cooperação, da eficiência, do formalismo moderado, da razoável duração do processo e da celeridade da sua tramitação.
O fim do voto duplo em caso de empate é uma conquista republicana, extirpando uma das maiores excrescências que temos hoje em alguns processos administrativos que admitem que um cidadão tenha o poder de votar duas vezes ou, em outras palavras, alguém que vale duas vezes mais do que outro igual. É um símbolo autoritário inadmissível.
Foi feliz a proposta ao prever, no tocante aos prazos processuais, a contagem em dias úteis, bem como a suspensão do seu curso nos dias compreendidos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro, período este em que não serão realizadas sessões de julgamento. Há um alinhamento ao Código de Processo Civil (CPC), atendendo antigo pleito da advocacia que historicamente submetia-se a um duro período de trabalho no fim de ano, cuja estruturação das impugnações e recursos era dificultado por férias coletivas de muitas empresas autuadas, além da intensificação na lavratura de autos de infração premida por prazos decadenciais.
Penso que o prazo de impugnação deveria ser ainda maior, na medida em que há a manutenção da regra de que as provas deverão ser apresentadas juntamente com a impugnação, sob pena de preclusão, salvo nos casos de justa causa, força maior ou fato superveniente, devidamente demonstrados. Nos casos da necessidade de produção de laudos periciais pelos contribuintes para contrapor trabalho de auditores fiscais, por vezes feito durante meses ou anos de fiscalização, haverá a permanência do debate envolvendo a juntada extemporânea de laudos técnicos.
Os princípios do formalismo moderado e da verdade material continuarão sendo a tábua de salvação para tais situações, mas sempre submetidas ao crivo e ao bom senso dos julgadores.
De outro lado, caminhou mal a proposta ao não prever a representação da iniciativa privada entre os julgadores da Câmara Superior do órgão, encarregada pela uniformização de entendimentos, pois a perspectiva de julgadores experientes e qualificados oriundos de setores privados somente tem a agregar. É assim hoje na maioria dos órgãos de julgamento administrativos tributários do país. Não deixa de ser um controle social e um critério a mais de confiabilidade e aceitação da decisão proferida.
Há, ainda, severas restrições à possibilidade de renovação indefinida de mandato, perpetuando pessoas em detrimento de uma necessária renovação periódica. Também são tímidos os critérios de escolha dos julgadores, delegando ao Comitê Gestor tal incumbência sem nenhuma garantia de que a escolha será eminente técnica. Aqui há o risco real de apropriação do órgão pela autoridade fazendária por integrantes menos preparados tecnicamente e mais alinhados ideologicamente com a administração fazendária.
Em complemento à crítica voltada à escolha dos julgadores, não há qualquer garantia aos julgadores escolhidos para integrar os órgãos de julgamento, tais como a inamovibilidade e a proteção contra a destituição. Tais proteções e garantias existem em alguns países e acarretam em uma maior liberdade intelectual e segurança ao livre convencimento do julgador.
Eduardo Salusse
Sócio fundador do escritório responsável pela área de direito tributário. Responsável executivo de pesquisa no Núcleo de Estudos Fiscais da FGV DIREITO SP. Professor em direito tributário no IBET, APET, FGV Direito e outras instituições. Conselheiro Honorário e atual Presidente do MDA – Movimento de Defesa da Advocacia. Colunista no Jornal Valor Econômico (Fio da Meada).