Reforma tributária e o Imposto Seletivo — há salvação?

Marcos Gabriel Mendes Nasarét ,Matheus Filipe de Moraes Sousa França

A reforma tributária (PEC 45/2019), aprovada na Câmara dos Deputados, segue para o Senado. O clima é de aprovação célere, expectativa ressaltada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao dizer que está de bom tamanho o Senado aprovar até outubro [1]. Porém, apesar do clima de tranquilidade quanto à aprovação, é crucial ressaltar a existência de um ponto preocupante na matéria da Reforma, que é o modo como o Imposto Seletivo (IS) está contemplado na Proposta de Emenda à Constituição, uma norma aberta, que possibilita inúmeros jogos de interpretação, além de possíveis usos indevidos do imposto, fugindo de sua própria natureza. Cabe, além disso, expor como o Imposto Seletivo ou propostas semelhantes estão prescritas nos demais ordenamentos estrangeiros de modo que seja possível entender a viabilidade de sua aplicação.

No texto apresentado na PEC, o relator expõe que “o modelo (a Reforma) é complementado pela criação de um imposto seletivo federal, que incidirá sobre bens e serviços geradores de externalidades negativas, cujo consumo se deseja desestimular”. Nesse ínterim, convém deixar claro que a ideia do imposto seletivo não é recente, um imposto extrafiscal capaz de tributar aquilo que é potencialmente prejudicial à saúde remonta às leis suntuárias e aos sin taxes.

As leis suntuárias foram normas prescritas para reduzir o consumo de bens socialmente inaceitáveis à época, apesar de não terem natureza de imposto, se aproximam na tentativa de incentivar o desuso de produtos malvistos pela sociedade medieval.

Em verdade, ao que parece, a ideia do legislador é a criação de um tributo semelhante aos sin taxes, ou impostos do pecado, que existem em diversos países [2], visando explicitamente reduzir o consumo de determinados bens prejudiciais à saúde individual e coletiva [3]. Por outro lado, o IS, apresentado pelo texto da reforma tributária, se distingue do imposto do pecado por possuir um caráter generalista, graças ao modo como o texto normativo o qualifica:

“Art. 154, III: – impostos seletivos, com finalidade extrafiscal, destinados a desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos.” (NR)

Nota-se que essa abertura do texto constitucional possibilita tanto tributar aquilo que pode causar externalidades negativas à saúde e ao meio ambiente, como informado pelo relator na proposta de emenda, quanto para tributar o que é essencial para se ter uma vida digna, como a energia elétrica. Nesse sentido, conforme Alexandre Barcik, Flávio Augusto Dumont Prado e Rayan Felipe Sartorino [4], é notável a preocupante e real possibilidade da incidência do tributo sobre a energia elétrica, bem tido como essencial para a garantia do mínimo existencial, inclusive reconhecido pelo próprio STF no RE 714.139 (Tema 745) [5], em que se definiu a inconstitucionalidade de aplicação de alíquotas sobre operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação maiores em comparação com as operações em geral, tendo em vista o argumento de que a energia elétrica é um bem essencial e, por isso, seguiria a tributação dos demais itens essenciais, a qual é diferenciada e reduzida.

No artigo supracitado, os autores informam que, com a nova escrita do artigo 155 da CF, já modificado pela PEC, somente o ICMS, o Imposto de Importação, o Imposto de Exportação, o Imposto Seletivo e o IBS podem incidir sobre a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do país. Desse modo, infere-se que é razoável enfatizar a ideia de que sim, é possível futuras incidências do IS na energia elétrica, ou seja, em bens essenciais.

Ora, como é possível considerar simultaneamente a existência de um bem que é essencial e ao mesmo tempo prejudicial à saúde? Em outras palavras, diante do conceito aberto da norma, seria possível a incidência do imposto seletivo inclusive sobre bens essenciais como a energia elétrica e telecomunicações. Nessa percepção, se a energia elétrica pode possuir, então, nocividade tal qual o tabaco, como ficam os demais serviços e produtos essenciais?

Defensivos agrícolas, cruciais para o agronegócio, um dos setores fundamentais da economia brasileira… como ficará a tributação? Há riscos da incidência de imposto seletivo sobre esse negócio? Quais os impactos na cadeia de produção e como isso afetaria a aquisição de alimentos? Essas e outras perguntas devem ser expostas ao Senado para que haja um trato profundo quanto às possíveis ramificações do uso do Imposto Seletivo. De certo, será repassado ao consumidor final.

Ademais, além da questão do conceito aberto, urge expor outros problemas que podem surgir com a criação do Imposto Seletivo da forma prescrita na PEC, porquanto a incidência do IS em produtos potencialmente nocivos, como o álcool e tabaco, pode não ter o efeito extrafiscal esperado, qual seja: a diminuição do consumo e venda.

Se, por um lado, há casos indicando a diminuição do consumo com a sobretaxação, a exemplo da Colômbia, em que a tributação sobre o pacote de cigarro triplicou de 2016 para 2018, com aumento de 4% a cada ano após 2018, possibilitando uma redução de 34% no consumo.[6][7]. Por outro lado, o Brasil, apesar das políticas de tributação sobre o cigarro, lida com um forte contrabando, o qual representa aproximadamente 30% das vendas de tabaco no território nacional [8], mostrando que, talvez, a elevada carga tributária sobre o tabaco não seja o melhor caminho de controle.

Nesse contexto, é válido questionar se tributar carregadamente produtos maléficos à saúde, com efeitos viciantes, levam, realmente, ao desuso, ou se na verdade, dificultam a possibilidade de se garantir o mínimo existencial – condições financeiras básicas para custear alimentação, saúde e educação, por parte de quem utiliza os bens nocivos.

Marcus de Freitas Gouvêa, Procurador da Fazenda Nacional, evidencia em seu artigo “Questões Relevantes Acerca da Extrafiscalidade no Direito Tributário” [9] que a alta carga tributária sobre produtos prejudiciais à saúde pode, curiosamente, não reduzir o consumo. Tendo em vista a realidade, o que ocorre é a mera arrecadação por parte do Estado, visto que, segundo o autor, “a sociedade quer continuar consumindo e produzindo cigarros e bebidas, de tal maneira que o mercado desses produtos torna-se inelástico o bastante para anular os efeitos desejados da tributação exacerbada”.

Em síntese, a ideia central do Imposto Seletivo, ao que parece, é corrigir externalidades, que para o Estado, são negativas. Ocorre que esse ideal, por muitas vezes, pode ter um efeito adverso. Tributar essas externalidades apenas com o intuito social de diminuir o consumo, pode, ao invés de fomentar o ajuste comportamental de acordo com os valores morais da sociedade, prejudicar o contribuinte, que abdica de outros consumos teoricamente essenciais e prejudica seus rendimentos reais [10].

O Estado pode estar criando um problema ainda maior, já que não corrigiria as exterioridades supostamente negativas e ainda violaria o princípio da capacidade contributiva, já que o ônus será repassado ao consumidor e, como se sabe, os mais prejudicados são os consumidores de baixa renda. Ou seja, “se se pretender como política fiscal a exploração de consumos inelásticos, pelo seu potencial financeiro e eficiência econômica, estar-se-á a caminhar na construção de um Leviatan que ataca os contribuintes aí onde sabe que não podem se defender” [11].

Como já ressaltado, o IS, pelo arcabouço descrito na PEC, será um imposto indireto que pode criar uma ilusão fiscal. Se por um lado, mostrará ao consumidor que o governo está preocupado com a saúde e meio ambiente, ao taxar as empresas que exploram ramos potencialmente nocivos, por outro, cria um imposto “invisível” para o contribuinte, já que a transferência do ônus a ele e a ausência de transparência pode fazer com que o contribuinte final não tenha consciência do efetivo desembolso, sobretudo de bens que são essenciais, como energia elétrica e telecomunicações.

É de se ressaltar que tal situação faz com que a extrafiscalidade seja ineficaz e promove apenas a realocação da renda do contribuinte e que, por vezes, onera os mais pobres e não diminui o consumo.

Portanto, a criação do Imposto Seletivo, com seu conceito aberto, nos moldes propostos pela PEC 45/2019, deve ser analisada com muita parcimônia, sob pena de inviabilizar o efeito extrafiscal desejado, e sim, na verdade, criar uma ilusão fiscal. Caberá ao Senado uma análise mais detida dos reais efeitos que a instituição do referido tributo causará na economia brasileira e na população, que, conforme informado, certamente terá o ônus repassada a ela.

[1] Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/08/11/se-o-senado-aprovar-reforma-tributaria-ate-outubro-esta-de-bom-tamanho-diz-haddad.ghtml

[2] A União Europeia, por meio da Diretiva 92/83/CEE, instituiu um modelo impostos especiais sobre o consumo de álcool e bebidas alcoólicas para os Estados-membros. Nessa proposta, a Diretiva possibilita uma tributação proporcional à quantidade de álcool da bebida. Já o Brasil adota políticas diversas quanto ao cigarro, há a política do preço mínimo, a qual prescreve o menor preço necessário para o cigarro, em que valores abaixo tornam o produto ilegal, há, também, a tributação prescrita pela Lei nº 12.546, de 14 de dezembro de 2011, em que, em seu art. 14, estipula que os cigarros contendo tabaco, de fabricação nacional ou importados não feitos à mão, são sujeitos à tributação de 45% sobre o preço de venda. A Coreia do Sul aplica uma taxa de KRW 3,323 por pacote de cigarro.

[3] Disponível em: https://www.bankrate.com/taxes/what-is-sin-tax/

[4] BARCIK, Alexandre. PRADO, Flávio Augusto Dumont; SARTORINO, Rayan Filipe. A reforma tributária e o Imposto Seletivo: potencial ameaça à conta de luz. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/a-reforma-tributaria-e-o-imposto-seletivo-potencial-ameaca-a-conta-de-luz/

[5] Tese aprovada: “Adotada pelo legislador estadual a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços.”

[6] Disponível em: https://www.who.int/news-room/feature-stories/detail/countries-share-examples-of-how-tobacco-tax-policies-create-win-wins-for-development-health-and-revenues

[7] Disponível em: https://tobacconomics.org/files/research/606/UIC_Colombia-Illicit-Trade-Fact-Sheet_v1.4.pdf

[8] PAES, Nelson Leitão. Uma análise ampla da tributação de cigarros no Brasil. Planejamento e Políticas Públicas, n. 48, 2021. P. 14

[9] “Já se mostra quase uma unanimidade entre os estudiosos que a tributação elevada do cigarro e das bebidas alcoólicas não reduz o consumo desses bens. Portanto, a medida que se propunha extrafiscal exerce, praticamente, apenas efeitos arrecadatórios. Ocorre que a sociedade quer continuar consumindo e produzindo cigarros e bebidas, de tal maneira que o mercado desses produtos torna-se inelástico o bastante para anular os efeitos desejados da tributação exacerbada.” – GOUVÊA, Marcus de Freitas. Questões relevantes acerca de extrafiscalidade no direito tributário. 2005.

[10] RIBAS, Juliana Rodrigues. Os Impostos do Pecado e a Ilusão Fiscal. ANIMA: Revista Eletrônica do Curso de Direito das Faculdades OPET. Curitiba PR – Brasil. Ano VII, nº 13, jan/jun 2015. ISSN 2175-7119

[11] VASQUES, Sérgio, 1999 apud RIBAS, Juliana Rodrigues. Os Impostos do Pecado e a Ilusão Fiscal. ANIMA: Revista Eletrônica do Curso de Direito das Faculdades OPET. Curitiba PR – Brasil. Ano VII, nº 13, jan/jun 2015. ISSN 2175-

Marcos Gabriel Mendes Nasarét ,Matheus Filipe de Moraes Sousa França

Marcos Gabriel Mendes Nasarét é estagiário no escritório Gaia Silva Gaede Advogados e Graduando em Direito pela Universidade de Brasília.

Matheus Filipe de Moraes Sousa França éadvogado no escritório Gaia Silva Gaede Advogados e pós-graduando em Planejamento Tributário pela UFPE.

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