Prescrição intercorrente e prescrição penal: como água e óleo

Por Carlos Augusto Daniel Neto

11/12/2025 12:00 am

Hegel, em seu Lições sobre a Filosofia da História, desenvolveu a ideia da história como um processo racional e lógico, com a possibilidade de padrões, sugerindo a repetição de eventos e personagens – no que foi complementado por Karl Marx, em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, com sua famosa citação de que a primeira ocorrência é uma tragédia, e a segunda, uma farsa. A olhos vistos, percebe-se exatamente essa repetição histórica a respeito da prescrição intercorrente para os créditos não tributários.

Em 2021 (É hora de refletir sobre a Súmula nº 11 do Carf), quando foi inicialmente sugerido que as os créditos não tributários estariam fora do alcance da Súmula 11 e sujeitos à prescrição intercorrente da Lei nº 9.873/99, veio a tragédia: para interromper a discussão, o distinguishing virou descumprimento de súmula, e o debate do tema, tabu.

Daí em diante, o Carf não avançou, escudando-se em argumentos cujos equívocos foram cientificamente demonstrados (Vista do A Aplicabilidade da Prescrição Intercorrente da Lei n. 9.873/1999 às Multas Aduaneiras | Revista Direito Tributário Atual) e corretamente reconhecidos pelo Poder Judiciário, culminando no julgamento do Tema nº 1.293 em recurso repetitivo.

No apagar das luzes de 2025, com o trânsito em julgado da tese vinculante, a história se repete, agora como farsa: começam a surgir metodicamente, aqui e ali, mais ou menos sonoros, argumentos que visam a, na prática, esvaziar grande parte do alcance do Tema nº 1293.

Já apontamos (Tema Repetitivo 1.293 do STJ: a pedra filosofal do Carf?) a tentativa de refundar o regime jurídico de infrações que sempre foram tratadas pela doutrina e pelo Carf como aduaneiras (inclusive em súmulas). O objetivo, ao arrepio e sacrifício de qualquer consistência jurisprudencial e do próprio Direito Aduaneiro, não é outro, senão de converter o critério técnico-jurídico em um valor de alçada, excluindo do regime tributário apenas aquilo de menor reflexo financeiro.

Deixaremos apenas um exemplo: por quatro anos, o Carf afirmou que a interposição fraudulenta, ainda que fosse infração aduaneira, atrairia o regime tributário por estar sujeita ao rito do Decreto nº 70.235/72 (e.g. Ac. 3401-009.052). Todavia, após o STJ firmar que o procedimento não afeta o regime material, a mesma infração se tornou, de repente, não mais que de repente, tributária (diferente do soneto de Vinícius, a subitaneidade trouxe a confusão de regimes).

Na composição da pantomima, causa espécie outro argumento – objeto da análise de hoje – da aplicação do § 2º do artigo 1º da Lei nº 9.873/99 ao seu §1º, i.e., que a prescrição intercorrente deveria observar o mesmo prazo da prescrição penal de crimes imputados em decorrência do mesmo procedimento fiscal, senão vejamos:

Art. 1o Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.

§1º Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.

§2º Quando o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal.

Com a devida vênia, o referido argumento não sobrevive a uma análise técnica de sua aplicabilidade, como será demonstrado.

1) Quais são as condições de aplicação do §2º?
Inicialmente, deve-se expor analiticamente as condições de aplicação do §2º, em comento. Da sua leitura conjunta com o caput, depreendem-se as condições:

1. A ação punitiva deve decorrer do exercício de poder de polícia da administração federal; e

2. O fato objeto da ação punitiva deve constituir crime;

Em estando presentes as duas, “a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal”.

Em caso recentíssimo julgado pelo Carf [1], afastou-se a prescrição intercorrente em um caso de interposição fraudulenta sob o argumento de que i) a infração teria natureza tributária; e ii) havia representação fiscal para fins penais, atraindo a aplicação do §2º.

Nessa decisão, há um primeiro problema, de enquadramento.

Ao se referir à prescrição da “ação punitiva”, o §2º se refere claramente ao caput, que veicula o prazo decadencial para que a Administração investigue e lavre o auto de infração contra o infrator, buscando equipará-lo àquele dado ao titular da ação penal para exercer sua pretensão punitiva. O prazo decadencial da ação punitiva não se confunde com o prazo de prescrição intercorrente, como se verá adiante.

Há também um segundo problema, de compatibilidade.

Esses dois argumentos do julgado, com a devida vênia, são contraditórios entre si. Caso a infração tenha natureza tributária, não há que se cogitar a aplicação do §2º, pois sequer haveria que se considerar a prescrição intercorrente. Portanto, avançar para a discussão da aplicação do §2º pressupõe, logicamente, a premissa de que a infração tem caráter não tributário – tornando essas rationes decidendi inconciliáveis entre si.

Além disso, o §2º pressupõe que um mesmo fato típico seja simultaneamente sancionado nas esferas administrava (do poder de polícia) e penal (ainda que baste que se demonstre se tratar de crime in abstrato). Em outras palavras, o mesmo ato/fato ilícito faz surgir uma pretensão punitiva administrativa e também penal. Nesse sentido, aduz a jurisprudência pacífica do STJ: “A norma [§2º do art. 1º] está suficientemente clara no sentido da aplicação do prazo de prescrição da lei penal para a ação punitiva da Administração, na hipótese em que a infração administrativa também for tipificada como crime” (REsp 1.871.758/PR; no mesmo sentido, MS 24.826/DF, MS 17.590/DF, EDv no EREsp 1.656.383/SC etc.).

Aqui surge o terceiro problema, de correspondência.

Consideremos o caso da interposição fraudulenta, cujo núcleo do tipo infracional é “ocultar do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação”. Qual o tipo penal que corresponde exatamente a este?

Essa infração administrativa vem usualmente acompanhadas de representações de crimes como falsidade ideológica [2] ou documental [3] (artigos 299 e 304 do CP), os quais não têm correspondência com a infração administrativa, ainda que possam se apresentar como crime-meio para a fraude aduaneira realizada. Até mesmo nas amplíssimas hipóteses de descaminho equiparado (em especial o inciso IV, §1º do artigo 334), o crime consiste em “adquirir, receber ou ocultar … mercadoria de procedência estrangeira”, e não a ocultação de partícipe da operação.

Não há, portanto, crime tipificado correspondente à infração do art. 23, V, do DL 1455/77, que possibilite, mesmo que em abstrato, a potencial aplicação do § 2º. Independentemente disso, o referido dispositivo não pode ser tratado como uma “hipótese especial da prescrição intercorrente”, como se demonstrará.

2) A importância da legística na interpretação jurídica
A legística é a ciência que estuda a elaboração das leis, de modo a garantir sua qualidade, clareza e racionalidade, tanto sob uma perspectiva material quanto formal. Lon L. Fuller, em seu “The Morality of Law”, evidencia a importância da forma como a legislação é estruturada na construção da própria “moralidade interna do Direito”.

O tema foi sobremaneira considerado no Brasil, a ponto de a CF/88 estabelecer em seu artigo 59, p.u., que “Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis”, o que foi feito por meio da LC nº 95/98. Em seu art. 11, III, “c”, ela estabelece que, para obtenção de ordem lógica, a lei deve “expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida”.

Em outras palavras, cada parágrafo (§) trará “aspectos complementares ou exceções relativas ao caput do artigo”, como consta no curso de elaboração de atos normativos da Receita Federal [4], no glossário de termos de técnica legislativa do Congresso Nacional [5] e no próprio Manual de Redação da Presidência da República [6].

Desconhecemos, em absoluto, quem defenda o contrário, i.e., que os parágrafos possam ser interpretados entre si, desvinculados do caput, ou mesmo casos julgados nos quais este “racional” tenha sido adotado.

Trata-se, portanto, de um erro interpretativo pretender interpretar um parágrafo em relação a outro, de forma desvinculada do caput do artigo. No presente caso, busca-se transformar, arrepio da LC 95/98, um “caso especial do caput” em um “caso especial do §1º”, dando-lhe um alcance incompatível com a estrutura legislativa adotada.

Exatamente nesse sentido é a Orientação Jurídica Normativa nº 06/2009/PFE/Ibama, elaborada pela Advocacia-Geral da União, analisando a aplicação da Lei nº 9.873/99: “No entanto, o § 2º do artigo 1º da Lei nº 9.873 de 1999 traz uma regra diferenciada para os casos em que a infração administrativa também constitui crime, excepcionando a contida no caput”.

A mesma interpretação é adotada pelo próprio Poder Executivo, ao editar o Decreto nº 6.514/2008, que estabeleceu o regulamento das infrações ambientais, incorporando as regras da Lei nº 9783/99 e estabelecendo no artigo 21, §3º, verbis: “Quando o fato objeto da infração também constituir crime, a prescrição de que trata o caput [Quinquenal] reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal”.

Como se vê, o Executivo Federal e seu órgão consultivo já se manifestaram interpretando que o §2º do art. 1º se limita ao prazo quinquenal do caput, ao analisarem a Lei nº 9783/99 para outros âmbitos do poder de polícia.

3) Uma lei e três prazos: a interpretação vinculante do REsp 1.115.078/RS
O STJ, ao julgar o REsp 1.115.078/SP, sob a sistemática de recursos repetitivos, analisou de maneira percuciente a Lei nº 9.873/99, concluindo de maneira vinculante que o dispositivo encampa três prazos distintos:

(a) cinco anos para a constituição do crédito por meio do exercício regular do Poder de Polícia – prazo decadencial, pois relativo ao exercício de um direito potestativo;

(b) três anos para a conclusão do processo administrativo instaurado para se apurar a infração administrativa – prazo de “prescrição intercorrente”; e

(c) cinco anos para a cobrança da multa aplicada em virtude da infração cometida – prazo prescricional.

O voto deixa claro não apenas que se trata de prazos diferentes, mas também que o §2º é aplicável nos “casos em que houver dupla penalidade – uma administrativa e uma penal -, o prazo decadencial para a apuração do cometimento da infração será aquele que a lei penal prevê para fins de prescrição”. Portanto, equipara-se a decadência da ação punitiva da Administração à prescrição da ação penal.

A questão em nada se confunde com a “prescrição intercorrente”, um posterius quanto ao exercício da pretensão punitiva, que sanciona a demora excessiva no processamento do procedimento administrativo, pendente de despacho ou decisão. Nesse sentido, a 1ª Seção do STJ já consignou que o §2º se refere à “pretensão punitiva de irregularidade administrativa”, e não à prescrição intercorrente (MS 29.789/DF, j. 27/11/2024, 1ª Seção).

Nesse sentido, também, a jurisprudência dos TRFs já se debruçou sobre essa questão, verbis:

“Nem se diga, ainda, deva ser aplicada a legislação penal, § 2º, art. 1º, Lei 9.873 (“[…]”), pois, como ao início apontado, o § 1º do mencionado artigo trata especificamente da prescrição intercorrente administrativa e estipula prazo trienal”. (ApCiv 5000361-55.2019.4.03.6107, TRF-3, DJE 14/4/2023)

“Realizando-se uma interpretação sistemática, pode-se concluir que o parágrafo 2o. do art. 1o. da Lei 9.873/99 ao determinar que a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal quando o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime, altera tão-somente o prazo quinquenal previsto no caput do artigo, sem modificar o prazo de três anos fixado no parágrafo 1o. para configuração da prescrição intercorrente”. (AC – ApCiv 583153 0000020-89.2015.4.05.8309, TRF5, DJE 17/12/2015)

“O § 2º do art. 1º da Lei nº 9.873/99, ao remeter à lei penal, disciplina igualmente o prazo para o início da apuração da infração quando esta também configurar crime, não se confundindo com prescrição intercorrente”. (AI 5005760-16.2025.4.04.0000, TRF-4, DJE 27/9/2025).

A jurisprudência judicial reconhece com clareza não apenas a distinção entre os três tipos de prazo, o que de resto é vinculante por força do precedente do STJ, como também que a regra do §2º se limita ao prazo decadencial do artigo 1º, caput.

Conclusão
Cumprido o iter acima, resta a pergunta óbvia e retórica: algo justificaria a aplicação do §2º também para o prazo do §1º? Parece-me que não. Tal proposição foi infirmada por todos os ângulos de análise, e rechaçada na manifestação de diversos órgãos, desde o próprio Poder Executivo, em seu poder regulamentar, até os TRFs e o STJ, em seus precedentes (vinculantes ou não).

A prescrição intercorrente, do §1º, e a prescrição penal, do §2º, como água e óleo, não se misturam, mesmo quando justapostas. Elas possuem polaridades inconfundíveis, ao tratarem de prazos de naturezas distintas.

Pode-se até tentar, por esforço deliberado, forçar a mistura das duas, mas cedo ou tarde, decantada a questão por algum tempo, há de se ratificar a sua imiscibilidade, demonstrada à exaustão ao longo do artigo.

É pressuposto de um Estado de Direito que se reconheçam alguns constrangimentos dogmáticos no processo de interpretação e decisão, em especial a observância dos pontos de partida normativos. A insatisfação ou discordância com o Direito vigente, positivado em leis ou em precedentes vinculantes, não é motivo válido para ignorá-lo ou, no caso de observância forçada, para construir artifícios insubsistentes para contorná-lo.

A respeito das tentativas de esvaziar o Tema 1.293, relembro a lição de H.L. Mencken de que “é relativamente fácil suportar a injustiça. O mais difícil é suportar a justiça”.

[1] Processo 15165.721700/2021-69

[2] “Art. 299 – Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:”

[3] “Art. 304 – Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302:”

[4] ENAP. “Técnica Legislativa aplicada à Receita Federal”, 2020, p. 24.

[5] Termo: Parágrafo – Glossário de Termos da Técnica Legislativa – Congresso Nacional

[6] MANUAL DE REDAÇÃO DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, p. 125.

Fonte: Conjur

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sócio do escritório Daniel, Diniz e Branco Advocacia Tributária e Aduaneira, com estágios pós-doutorais de pesquisa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen (MPI), doutor em Direito Tributário pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf e professor permanente do mestrado profissional do Cedes, do IBDT e da Apet.

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