Preferência do crédito tributário: um ato atentatório ao federalismo
Leandro Brescovit
O contexto no qual se deu a criação da prevalência dos créditos tributários era totalmente diverso do atual.
Dentre os atos que geram maior repulsa dentro do Direito, dúvidas não pairam de que a preferência do crédito tributário entre entes públicos encontra-se em patamar de destaque. Além de ser um ato pelo qual a força do mais forte prevalece, é vil por natureza, ostenta uma inconstitucionalidade escancarada, dado maltratar a forma federativa de Estado, cláusula pétrea da nossa Carta Constitucional.
O artigo 187, parágrafo único, do Código Tributário Nacional e, consequentemente, o artigo 29, parágrafo único, da Lei de Execuções Fiscais, Lei 6.830, de 22 de setembro de 1980, que estabelecem o concurso de preferência em relação aos créditos tributários, são inconstitucionais.
O Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 563 acerca do tema, que dispõe: “O concurso de preferência a que se refere o parágrafo único, do art 187, do Código Tributário Nacional, é compatível com o disposto no Art. 9º, inciso I, da Constituição Federal.”
Ocorre que essa súmula do Pretório Excelso foi editada sob a égide do antigo ordenamento constitucional e, claramente, tinha como premissa a prevalência, mesmo hierárquica, da União sobre os Estados membros e desses sobre os Municípios. O contexto era outro, pois a centralização é premissa primeira de um regime ditatorial, sob pena fomentar discórdias provincianas. Nada melhor que a chave do cofre para dissipar ou enfraquecer a dissidência, bem como combater sediciosos.
Acerca do tema, Paulo de Barros Carvalho, em sua obra Curso de Direito Tributário[1], pontua que
O tacitamente revogado art. 187, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, prescrevia o seguinte: O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem: I – União; II – Estados, Distrito Federal e Territórios, conjuntamente e pro rata; III – Municípios, conjuntamente e pro rata. Em edições anteriores, em face do dispositivo transcrito, argumentados: “Sua inconstitucionalidade ressalta ao primeiro súbito de vista. É flagrante, insofismável e vitanda, sob qualquer ângulo pelo qual pretendamos encará-la. Fere, de maneira frontal e grosseira, o magno princípio da isonomia das pessoas políticas de direito constitucional interno, rompendo o equilíbrio que o Texto Superior consagra e prestigia. Discrimina a União, em detrimento dos Estados, e estes, juntamente com o Distrito Federal, em prejuízo dos Municípios, quando sabemos que estão juridicamente parificados, coexistindo num clima de isonomia. E, como se isso não bastasse, dá preferência aos Territórios, que não têm personalidade política, com relação aos Municípios. Lamentavelmente, a ordem preferencial que o art. 187, parágrafo único, cristaliza na redação de seu texto vem sendo passivelmente acolhida e cordatamente aplicada, sem que o meio jurídico nacional se dê conta da manifesta inconstitucionalidade que encerra no seu significado em face do sistema do direito positivo brasileiro. Exclamam algumas vozes, como as de Geraldo Ataliba, Michel Temer, Roque Carrazza e pouco mais, sem que delas façam eco os pronunciamentos do Poder Judiciário”.
Tal discussão, no entender do autor, resta superada quando do advento da LC 118/2005, pois
Com a Lei Complementar n. 118, de 2005, não há mais essa ordem de preferência. Agora, os créditos tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios concorrem em igualdade de condições. O dispositivo corrigiu a flagrante aberração, valendo a crítica que adscrevemos nos textos das anteriores edições deste Curso. Fica a experiência sempre valiosa de que os enunciados legais que contrastam com a Constituição da República devem ser suprimidos, quer pelo Poder Judiciário, quer por novas disposições provenientes do Poder Legislativo.
Assim, para o autoralém do art. 187 do CTN ser inconstitucional, com o advento da Lei Complementar n.º 118/2005, tal dispositivo restourevogado.
O atual ordenamento constitucional, de forma diversa, estabelece a igualdade como premissa da Organização do Estado brasileiro. Não por outra razão é que o artigo 1º da Magna Cartaprescreve a isonomia de hierarquia entre a União, os Estado e os Municípios. Segundo essa
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:I – a soberania;II – a cidadania;III – a dignidade da pessoa humana;IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V – o pluralismo político.Parágrafo único. Todo poder emano do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Afora isso, no caput do artigo 5º do mesmo normativo também há destaque à igualdade. Contudo, o dispositivo base da autonomia entre os entes federados é o artigo 18, da atual Constituição,in verbis:“A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.
Na sequência, o artigo 19dapresente Carta trata das vedações impostas aos entes federados, quais sejam:
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;II – recusar fé aos documentos públicos;III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
O inciso III desse artigo 19 é o substituto da regra contida no 9º da antiga Constituição, que fundamentou a interpretação contida na súmula 563 do STF.
O regime adotado pela novel Constituição foi o do Federalismo em contraposição a um Estado Unitário. Independentemente da ideia de Federação do regime antigo, notório é que ele estava pautado na centralização do poder nas mãos do governante, especialmente porque claramente as regras imposta pelo regime eram de natureza antidemocráticas, oriundas de um governo imposto pela força.
A Constituição da República de 1988 veio trazer os ares da democracia e do necessário regramento da atuação do Estado sobre os cidadãos e também dos entes da Federação uns sobre os outros.
Assim, sob esse enfoque, o enfoque ontológico, fica claro o objetivo do dispositivo do inciso III do artigo 19, que fixa o limite para os entes federados de não estabelecerem distinções entre si, dando efetividade ao princípio Federativo.
Ficando estabelecido o Federalismo e a autonomia dos entes federados pela regra da repartição de competências entre ele, não há que se falar em hierarquia entre os entes federados, mas repartição de competências, onde cada ente desempenha, nos termos autorizados pela Constituição, atribuições que dão efetividade aos princípios nela inseridos. É de se dizer que o Federalismo é baseado, fundamentalmente, na união/aliança de Estados, tudo em oposição ao centralismo unitário. Contudo, se consolidarmos a preferências de créditos de um órgão sobre o outro, logicamente que estamos, de forma indireta, enfraquecendo tal princípio. Assinale-se que a própria Lei Básica optou pela impossibilidade de qualquer proposta tendente a abolir o princípio federativo (CF, art. 60, § 4º, I), razão essa que se soma a importância que o constituinte quis dar ao tema.
Como antes pontuado, o contexto no qual se deu a criação da prevalência dos créditos tributários era totalmente diverso do atual. Não podemos equivaler o regime anterior com o atual. Naquele a necessidade de centralização de poder, diga-se de recursos, era fundamental. No contexto atual, tal medida não se sustenta. Ao revés, presenciamos uma descentralização acintosa, especialmente no que atine à execução de serviços públicos. Logicamente que, para que tais possam ser prestados a contento, há necessidade de que os recursos também sejam descentralizados.
Por tudo, resta incontroverso que o art. 187 do CTN e art. 29 da LEF não restaram recepcionados, tendo em conta que as diretivas da antiga e da atual Constituição são antagônicas, não havendo como interpretar tal artigo em consonância com o ordenamento jurídico atual.
Nota
[1]In Curso de Direito Tributário, p. 649-650, 22ª edição, 2010, Editora Saraiva.
Leandro Brescovit
Graduado pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Assessor Jurídico da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, lotado na Procuradoria Regional de Caxias do Sul/RS, Pós graduando em Direito Tributário e Direito do Trabalho e Processo do Trabalho.