Pode o STF determinar a criação de um tributo?

Por Arthur M. Ferreira Neto

24/11/2025 12:00 am

Não é de hoje que o Supremo Tribunal Federal é alvo de críticas por atuação qualificada como “ativista”, “proativa” ou “politizada”. Tais expressões, porém, são eufemismos que suavizam o real sentido das acusações: o de que o tribunal tem reiteradamente ultrapassado os limites de sua competência constitucional ao intervir em escolhas essencialmente políticas, cuja formulação cabe, por desenho institucional, aos demais Poderes.

Em diversos casos, o STF ingressa no terreno próprio da deliberação democrática sobre políticas públicas voltadas ao bem coletivo — espaço a permanecer reservado aos órgãos dotados de legitimidade eleitoral e capazes de mediar interesses, dialogando com a pluralidade de visões sociais. Em situações ainda mais sensíveis, a corte parece orientar-se por visão ideológica específica, transmutando conflitos políticos em aparentes controvérsias jurídicas e utilizando sua autoridade jurisdicional — que pressupõe imparcialidade — como instrumento de resolução de disputas a serem enfrentadas pela via democrática.

Esse alargamento na autocompreensão funcional do STF gera distorções em diversas áreas do Direito e, de modo mais expressivo, no Tributário. É nesse contexto que se insere a recente decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 55, na qual o Tribunal reconheceu suposta omissão inconstitucional do Congresso e determinou que fossem adotadas providências para instituir o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Tal decisão é exemplo claro de ultrapassagem das fronteiras constitucionais da jurisdição, ao invadir o espaço próprio de deliberação política acerca da carga tributária que os cidadãos estarão dispostos — e obrigados — a suportar, o que evidencia a tensão estrutural entre jurisdição constitucional e autonomia do processo legislativo, sobretudo no campo tributário, em que a legitimidade democrática não é só desejável, mas condição de validade e aceitação social do tributo.

Em contraposição a essa visão, parte da doutrina defende releitura pretensamente “crítica”, “transformadora” e voltada à “real efetivação” da Constituição, distinta da postura daqueles que aceitariam, passivamente, um texto constitucional “estático”, “enfraquecido” e que não realizaria todas as suas potencialidades. Nessa perspectiva, a previsão do IGF não seria “simples” outorga de competência ao legislador federal, mas verdadeiro “poder-dever” de instituí-lo, em nome da justiça fiscal, da igualdade material e da concretização do ideal de tributar a todos conforme sua riqueza. Em síntese, se a Constituição previu essa competência da União, então seu exercício seria obrigatório, pois sua não implementação revelaria vontade retrógrada, avessa à justiça e à igualdade, tão necessária em uma sociedade fraterna. Por isso, a inércia do Congresso configuraria omissão inconstitucional passível de correção judicial.

Este artigo não tem por finalidade avaliar as vantagens e desvantagens do IGF, seja sob ótica econômica, distributiva ou política. Essa discussão técnica é urgente e necessária, mas não é o objeto desta análise. Pretende-se examinar o meio institucional escolhido para forçar a criação do tributo e não o seu mérito em si, pois esses são debates distintos e paralelos. É perfeitamente coerente defender a importância na criação do IGF (tal como defendemos) e, ao mesmo tempo, rejeitar que a sua criação possa ser imposta por coerção ou reprimenda judicial. Apoiar o tributo não exige, nem autoriza, aceitar que o STF assuma o papel de legislador.

Assim, em visão estritamente institucional: pode o STF, via ADO, converter competência tributária em dever jurídico de legislar? Pode ele, sob o pretexto de promover justiça fiscal ou reduzir desigualdades — valores inquestionáveis, mas dependentes de definição política acerca dos meios para alcançá-los — determinar a criação de tributo cuja instituição depende de deliberação pública, análise técnica multifatorial e decisão dotada de legitimidade democrática? A nosso ver, não. É isso que se pretende demonstrar.

Competência tributária é poder político e não é dever de tributar
A Constituição de 1988 distribui competências tributárias como autorizações para que cada ente exerça poder estatal voltado à obtenção das receitas necessárias à organização e execução autônoma de seus planos de governo. Disso, porém, não se extrai que tais normas devam ser interpretadas como mandamentos cogentes, impondo ao legislador o uso desse poder em toda a sua extensão, como se fosse obrigatória a criação imediata de todos os tributos discriminados no texto constitucional.

A norma de competência não é um comando categórico dirigido ao Parlamento para instituir, de pronto, todos os impostos possíveis. Ela é, por sua essência, delegativa, facultativa e politicamente discricionária. A instituição de tributos exige deliberação pública ampla, permeada pelo diálogo com variados setores da sociedade, o que transcende o domínio jurídico e adentra o terreno político — precisamente onde reside a legitimação democrática dessas escolhas.

A decisão de criar ou não determinado tributo envolve ponderações complexas: impactos macroeconômicos; riscos de evasão; repercussões inflacionárias; redistribuição da carga tributária; efeitos sobre investimentos e ambiente de negócios; e a própria aceitação social do imposto. São avaliações extrajurídicas que só podem ser tomadas, de modo legítimo, por representantes eleitos — e não por um Tribunal Constitucional cuja deliberação, embora técnica, é prudencial, contextual e adstrita aos limites de um processo (mesmo quando conta com participação de auxiliares da Corte), características essas que, naturalmente, cerceiam a capacidade de conhecer em toda sua complexidade tais fenômenos sociais.

Além disso, os membros de uma Corte Constitucional, dotados de cargos não eletivos e vitalícios, jamais possuem o mesmo grau de responsabilização pública (i.e., accountability) daqueles ocupantes de cargos eleitos que respondem periodicamente aos seus representados, de modo a sentir a repercussão negativa de eventuais decisões que se mostrarem incorretas ou desprovidas de aceitação social.

Converter a previsão constitucional do IGF em um dever estatal de tributar — como na ADO 55 — altera o próprio sentido da norma de competência, violando a lógica do sistema tributário e a separação dos Poderes. Autorizações políticas tornam-se imposições jurídicas, criando verdadeira anomalia institucional: competência exercida por meio de avaliação discricionária do seu titular é transformada, por decisão judicial, em obrigação constitucional. Não se conhece precedente que sustente esse tipo de interpretação; ao contrário, há firme consenso doutrinário de que a Constituição não impõe a criação de todos os tributos cuja competência prevê.

Aliás, admitir que competências tributárias são mandamentos obrigatórios leva a consequências absurdas. Com base nessa premissa equivocada, toda a instituição parcial de um tributo (i.e., aquém dos limites possíveis da norma de competência) ou mesmo o não exercício das competências residuais (e.g., artigo 154, I, e 195, § 4º) poderia ser considerada omissão inconstitucional, já que esses tributos hipotéticos contidos nas competências (obrigatórias) ainda não exercitadas, também poderiam ser invocados como instrumentos necessários para garantir mais saúde, educação e segurança a todos. O Legislativo, nesse seu agir tardio, estaria compelido a instituir todos os impostos possíveis, sob pena de reprimenda judicial. Levada ao extremo, essa visão instauraria um dever geral de tributar sempre que o Estado precisasse mais recursos para a efetivação “ideal” de direitos sociais. A afirmação de que a tributação ajuda a reduzir desigualdades — verdadeira em abstrato — não autoriza concluir que a ausência de determinado imposto represente, por si só, violação constitucional passível de correção judicial.

Supor que o IGF — e apenas ele — seria o instrumento necessário para reduzir desigualdades é salto lógico injustificável. A desigualdade brasileira é profunda e estrutural; não se corrige por decisão judicial nem pelo milagre da criação forçada de um imposto. A crença de que o IGF produziria justiça social é moralmente sedutora, mas ingênua. Não há garantia de que a instituição por ordem judicial de novo tributo gerará arrecadação substancial, tampouco de que esses recursos serão efetivamente destinados aos mais pobres, de modo a contribuir, com eficácia, na redução de desigualdades. A ausência de vinculação constitucional específica dos impostos permite que as suas receitas acabem sendo absorvidas pelo custeio da máquina administrativa, por aumentos ao funcionalismo público ou pela amortização da dívida. Não há uma comunicação perfeita nem linear entre direito tributário e direito financeiro: a relação entre tributação e destinação de recursos dependerá também de decisões político-orçamentárias — e não de simbolismos judiciais.

Limites da ADO: efetivação de direitos fundamentais individuais, não imposição de políticas tributárias
A ADO foi concebida como instrumento de controle concentrado para casos em que é identificada uma omissão (total ou parcial) do Poder Público (em especial o Legislativo) em tomar medidas necessárias à regulação de uma norma constitucional de eficácia limitada, ou seja, que dependa de ato normativo adicional para projetar os seus efeitos típicos, e que, diante da inércia, acaba impedindo a concretização de direitos fundamentais subjetivos e liberdades individuais. Assim, a ADO tem como objetivo declarar a negligência do órgão competente no seu dever constitucional de editar normas jurídicas indispensáveis para tornar realidade um direito subjetivo que ainda não pode ser exercitado. Diante dessa postura omissiva, considerada ilícita, caberá ao STF determinar a correção dessa lacuna normativa. Trata-se, pois, de instrumento processual garantista e focado na efetivação de direitos fundamentais individuais, destinado a proteger pessoas ou grupos específicos que permanecem privados de um direito concreto em razão da inércia do legislador. A ADO não cria a norma faltante, mas declara a mora inconstitucional do poder público e fixa prazo para providências necessárias, preservando direitos subjetivos identificáveis.

Essa lógica é incompatível com o uso da ADO para exigir a implementação de políticas públicas amplas e voltadas à concretização de programas sociais que visem a melhoria da coletividade como um todo. Problemas estruturais como desigualdade, falhas na segurança pública ou déficit na distribuição de saúde e educação de qualidade são objetivos programáticos fundamentais e tocam em direitos sociais inquestionáveis, mas não constituem direitos constitucionais subjetivos que podem ser consagrados simultaneamente a todos na via concentrada de controle de constitucionalidade. Mesmo que todos esses objetivos sejam prioritários, não se mostra viável transformar uma omissão ou demora na sua plena concretização em dever jurídico a ser imediatamente comandado por meio de batuta jurisdicional, na medida em que esse tipo de determinação equivale a substituir deliberação política por ordens do Judiciário, função para a qual a ADO não foi criada.

Partindo dessas premissas, quando o STF utiliza a ADO para impor a criação de tributo com o objetivo genérico de promover “justiça fiscal” ou “combate à desigualdade”, há um desvio na natureza e finalidade original do instrumento processual. A ADO deixa de ser ferramenta na efetivação de direitos fundamentais individuais e passa a atuar como mecanismo diretivo de planos de governo por meio judicial, definindo prioridades e agendas do Estado. O tratamento dado à competência tributário do IGF ilustra claramente essa distorção.

Não há na Constituição indicativo de que sua instituição corresponda a uma forma de efetivação direta de um direito fundamental de determinados indivíduos ou de grupo específico prejudicado pela demora legislativa. Na verdade, a eventual a criação desse imposto, mesmo que pudesse beneficiar toda a coletividade e, de modo reflexo, gerar mais receitas que poderiam custear mais direitos sociais, certamente não seria ele próprio o mecanismo de efetivação de um direito fundamental carente de regulamentação, pois impor um novo tributo, salvo por salto interpretativo, jamais representa, em si, efetivação direta de uma liberdade individual, mas é, na perspectiva do contribuinte, novo ônus que reduz os seus bens disponíveis e, por consequência, restringe o seu campo de liberdade, pela simples razão de estar sendo atingido em sua capacidade econômica até então não tributada.

Admitir essa interpretação ampliativa no uso da ADO permitirá a transformar em um instrumento ilimitado para imposição judicial de medidas políticas de governança da coisa pública, já que sempre se poderá argumentar que a insuficiência ou inadequação nas fontes de custeio de um direito social amplo e genérico corresponde a uma demora em agir do legislativo na criação de mais tributos, permitindo, com isso que o Judiciário assuma as rédeas das escolhas orçamentárias, da definição de políticas fiscais e no estabelecimento de prioridades sociais. A ADO existe para corrigir omissões específicas que inviabilizam a concretização de direitos fundamentais identificáveis e individualizáveis. A tentativa de tratar o IGF como medida obrigatória de combate à desigualdade é reinterpretar a Constituição contra o seu texto e sua lógica original de proteções individuais e de limitações ao poder estatal.

Conclusão
Tratar o IGF como solução mágica de justiça fiscal é retórico e demagógico, pois não há direito subjetivo individual que ponha fim às desigualdades sociais nem tributo que garanta automaticamente a perfeita redistribuição de riqueza. Não há ordem judicial que possa determinar via tributação a concretização desses nobres ideais nem a transformação social que demanda políticas públicas abrangentes e coordenadas.

A decisão proferida na ADO 55, não obstante bem intencionada, acaba desvirtuando a estrutura de poderes traçada na própria Constituição: onde a Carta diz “competência”, passa-se a ler “obrigação”; onde confere livre deliberação política, impõe vinculação judicial; onde deve haver diálogo político, enxerta-se tutela jurisdicional. Trata-se, em suma, de suplantar o debate democrático por um dirigismo judicial das escolhas fiscais — incompatível com um sistema tributário cujo fundamento de validade repousa na legitimação democrática dos tributos a ser pagos. A cidadania fiscal exige participação, debate e responsabilidade política, de modo que a criação de impostos por ordem judicial, ao invés de garantir justiça social, promove judicialização da política tributária.

Fonte: Conjur

Mini Curriculum

é mestre e doutor em Direito e Filosofia, professor adjunto e professor permanente do PPGD da UFRGS, advogado e vice-presidente do Tarf-RS.

Continue lendo