Orçamento é de todos, mas as emendas são dos parlamentares
Fernando Facury Scaff
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, na abertura do Ano Legislativo de 2024 proferiu discurso cujo destaque foi a frase “O orçamento é de todos, não só do Executivo”, o que contém uma verdade e oculta outras, o que deve ser esclarecido.
Em tese o Orçamento é de todos, afinal, trata-se de dinheiro público, predominantemente fruto de arrecadação tributária, que é paga por todos.
O carro-chefe da arrecadação brasileira está na tributação sobre o consumo, sendo que o pão engolido pela população sem-teto que se abriga no Largo de São Francisco, no centro de São Paulo, contém a mesma tributação do pão mastigado pela população abastada que vive no Morumbi. Todos pagam a mesma quantidade de tributo sobre o consumo de bens e serviços.
Porém, será que o Orçamento brasileiro é de todos? Penso que não. Deveria ser, mas não é.
O Orçamento pertence a quem tem a chave do cofre, e, no caso brasileiro, esta chave está com os Poderes Legislativo e Executivo. Deixando de lado algumas tecnicalidades, pode-se dizer que estes dois Poderes comandam o processo de elaboração do Orçamento, sem o qual não podem ser realizadas despesas (artigo 167, I, CF). Mesmo assim, estes Poderes têm restrições pré-determinadas.
Spacca
Ao enviar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa), o Poder Executivo tem restrições, pois existe um sem-número de gastos que são rígidos, e, portanto, não podem ser facilmente alterados de um ano para outro.
Exemplo: gastos com pessoal, com aposentadorias e pensões, com o pagamento da dívida pública e com precatórios. Logo, o espaço discricionário é pequeno, pois tais despesas alcançam mais de 90% dos recursos auferidos. Neste espaço discricionário são contemplados os programas do Poder Executivo, em qualquer âmbito federativo.
Resta ainda menor espaço orçamentário para deliberação do Poder Legislativo, que é preenchido por meio das emendas parlamentares, que são (1) individuais; (2) de bancada; e (3) de comissão. As duas primeiras são impositivas, isto é, o Poder Executivo não pode contingenciá-las, devendo ser pagas conforme aprovado.
Já as de comissão não são impositivas, podendo ser restringidas pelo Executivo. No orçamento de 2024 foi aprovado o montante de R$ 53 bilhões para pagamento do conjunto dessas emendas, sendo que o presidente Lula vetou o pagamento de R$ 5,6 bilhões das emendas de comissão o que gerou forte atrito com o presidente da Câmara, Arthur Lira, e ocasionou o discurso acima referido. Existiam também as emendas de bancada, cujos recursos foram destinados a emendas individuais.
Eis o ponto: serão democráticas e republicanas estas emendas parlamentares?
É inegável que tais emendas cumprem os requisitos democráticos, pois foram inseridas na Constituição por um Parlamento regularmente eleito, e, a cada ano, é cumprido o processo regular para sua inclusão no Orçamento. Logo, a mecânica democrática, que é mensurável e facilmente identificável, permanece sendo cumprida.
Ocorre que estas emendas parlamentares não são republicanas. E o afirmo com base em dois aspectos, dentre outros.
As emendas parlamentares individuais transformam o que deveria ser o interesse público e social, que busca a realização do bem comum, a ser atingido pela massa de recursos arrecadados, em interesses privados, quais sejam, os de cada parlamentar individualmente considerado, pois são utilizadas em prol de seus interesses eleitorais.
Desse modo, as emendas parlamentares individuais aprisionam o interesse público e social no seio de um interesse individual, fazendo com que os recursos públicos (arrecadados de todos nós), sejam utilizados em seu proveito próprio, deixando de lado a dimensão social e coletiva. Não é republicano um mecanismo pelo qual os recursos arrecadados de todos não sejam usados em prol de todos, mas no interesse individual de cada parlamentar.
Outra dimensão republicana afetada com esse tipo de emendas individuais, é o da rotatividade dos cargos públicos, pois a paridade de armas eleitoral fica fortemente desequilibrada.
Haverá enorme dificuldade no surgimento de novos postulantes ao cargo de deputado ou de senador, uma vez que as pessoas que já exercem estes cargos possuem um verdadeiro tesouro para gastar em seus redutos eleitorais, dificultando o surgimento de novas lideranças.
Dessa forma, é verdadeira a frase do presidente da Câmara, Arthur Lira: “o Orçamento é de todos, e não só do Poder Executivo”, porém oculta outra verdade, pois parte do Orçamento vem sendo individualmente apropriada pelos parlamentares, que podem utilizá-lo como se fossem proprietários daqueles recursos.
Portanto, o problema dessas emendas parlamentares individuais é a infringência do princípio republicano, e não do princípio democrático. Os órgãos de controle dos gastos públicos não parecem estar atentos a este aspecto.
Fernando Facury Scaff
professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.