O imperativo da progressividade e a justiça fiscal substantiva na Lei nº 15.270
Por Vittoria Alvares Anastasia
02/12/2025 12:00 am
A estrutura do imposto sobre a renda da pessoa física (IRPF) no Brasil tem sido, historicamente, um espelho da iniquidade socioeconômica nacional. Em que pese o mandamento constitucional do caráter progressivo dos impostos (artigo 145, § 1º, da CF/88) e o princípio basilar da capacidade contributiva, o sistema tributário pátrio falhou, por décadas, em alcançar a tão sonhada justiça fiscal.
A reforma tributária do consumo (Emenda Constitucional nº 132, de 2023) se preocupou com a atenuação da regressividade. Tanto é assim que se constitucionalizou que “as alterações na legislação tributária buscarão atenuar efeitos regressivos” (artigo 145, § 4º, da Constituição).
Neste compasso, a alteração legislativa mais recente em matéria tributária, a Lei nº 15.270/2025 (originária do PL nº 1.087), busca justamente a aplicação efetiva da progressividade na tributação da renda.
O modelo brasileiro penaliza, de forma desproporcional, a renda proveniente do trabalho, aplicando até as alíquotas máximas da tabela progressiva, enquanto a renda do capital (notadamente lucros e dividendos) goza de isenção, beneficiando sobremaneira o extrato mais afluente da sociedade.
Com efeito, o PL nº 1.087/2025 surgiu como um movimento de resposta à urgência de reformar o imposto de renda, buscando sanar distorções que há muito tempo minam a legitimidade do sistema. Ocorre que o PL trata apenas de um pequeno capítulo da tributação da renda.
De todo modo, o projeto, ao promover o alívio na baixa renda e instituir uma tributação mínima para as altas rendas, acena para o cumprimento do pacto constitucional — em especial, as disposições de atenuação da regressividade recém-introduzidas pela reforma do consumo.
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Contudo, como toda intervenção legislativa de grande porte no Direito Tributário, a Lei nº 15.270/2025, sancionada sem vetos pelo presidente da República em 26 de novembro de 2025, deve ser analisada não apenas por suas benesses declaradas, mas também pelos riscos técnicos e pela coerência principiológica que carrega.
Pilares fundamentais
A nova lei estabelece dois pilares fundamentais para a promoção de um sistema de renda mais justo: a desoneração da base e a tributação do topo. Há diversas implicações interessantes que podem ser analisadas à luz da justiça fiscal. A fim de decotar o amplo tema, analisar-se-á justamente a busca pela atenuação da regressividade e aplicação efetiva do mecanismo da progressividade.
Em primeiro lugar, a proposta de isenção do IRPF para aqueles com rendimentos tributáveis sujeitos à incidência mensal de até R$ 5.000 representa uma medida de justiça redistributiva de impacto imediato. Essa ação visa restabelecer o mínimo existencial, direito humano reconhecido em convenções internacionais.
Ademais, se busca aliviar a carga tributária de milhões de brasileiros e conferindo maior aderência ao conceito de capacidade contributiva. Afinal, o tributo, para cumprir sua função de financiar as despesas públicas e reduzir desigualdades, não pode incidir sobre a subsistência.
Contudo, em aspectos práticos, o Projeto de Lei e a nova lei são criticados, já que o valor de R$ 5.000 é consideravelmente baixo em face da realidade do país, em que diversos gastos e despesas impactam este “valor mínimo”. De todo modo, o aumento da faixa de isenção parte da busca pela aplicação da progressividade.
Em segundo lugar, a instituição do Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo (IRPFM) para pessoas físicas com rendimento anual superior a R$ 600 mil e a inclusão de rendimentos que antes eram isentos ou tributados exclusivamente na fonte (como lucros e dividendos) em sua base de cálculo, representa a retomada da progressividade “no topo”.
A progressividade não é um mero índice técnico; ela é um dos instrumentos pelo qual o Direito Tributário se alinha à justiça social, concebida como una e indivisível. A histórica desoneração do capital no Brasil contribuí para que a carga efetiva de contribuintes de altíssima renda fosse, paradoxalmente, inferior à de trabalhadores de classe média, evidenciando flagrante violação ao princípio da isonomia — que é justamente o que caracteriza o sistema pátrio como regressivo. A tributação da renda do capital torna-se, assim, um imperativo ético e jurídico para o financiamento de políticas públicas e a concretização dos direitos humanos e fundamentais.
O Direito Tributário, enquanto norma jurídica, não é “neutro”, ao contrário do que o artigo 145, § 3º, da Constituição (incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023), busca ao incluir o princípio da neutralidade no Sistema Tributário Nacional. Fato é que o Direito Tributário produz impactos sociais distintos a depender do grupo social afetado.
A análise da regressividade, então, seria incompleta se não feita sob a lente da interseccionalidade, que revela como a estrutura fiscal brasileira penaliza desproporcionalmente grupos já vulnerabilizados.
Por exemplo, a maior parte das mulheres e da população negra está concentrada nas faixas de rendimento mais baixas ou intermediárias quando comparadas aos homens brancos [1] [2]. Consequentemente, estas populações são as mais penalizadas pela regressividade do sistema (como a dependência de salários e a maior incidência da tributação sobre o consumo).
Neste viés, a elevação do patamar de isenção para R$ 5.000 é uma política pública de igualdade material. Ao reduzir a carga tributária da parte da população que está na “base”, a nova lei injeta mais recursos nas mãos de quem realmente precisa. Não obstante, o pleno alcance da justiça fiscal sob a perspectiva de gênero e raça depende da progressividade. Uma reforma só será verdadeiramente equitativa se for capaz de reverter a concentração de riqueza e garantir que o ônus da tributação recaia efetivamente sobre aqueles com maior capacidade contributiva, independentemente da fonte de seus rendimentos.
A busca dessa efetividade por meio do IRPFM é, portanto, diretamente e intrinsicamente ligada à sua capacidade de promover uma alteração na distribuição da riqueza de forma socialmente responsável.
Em que pese o caráter social do PL 1.087/2025, agora Lei nº 15.270, o texto da proposta apresenta riscos técnicos que, via de consequência, ameaçam o princípio da segurança jurídica e a estabilidade do sistema, tal como ocorreu em diversas outras intervenções legislativas recentes (a exemplo da revogação antecipada do Perse, que resultou em diversas ações judiciais no último ano).
Um ponto de crítica fundamental é o alcance da distribuição de lucros e dividendos na tributação da alta renda. Ocorre que tal exigência, no tocante à distribuição de uma mesma pessoa jurídica a uma mesma pessoa física, coloca em xeque a coerência normativa, ao conflitar diretamente com a Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/1976), que concede prazos razoáveis e bem estabelecidos (artigo 132, II) para a aprovação das contas e distribuição de resultados, que se estendem para os primeiros quatro meses do exercício seguinte. Ou seja, a Lei alcança os dividendos distribuídos a partir de 2026, mas é possível que dividendos referentes à 2025 sejam distribuídos até abril de 2026, pela norma societária.
Exigir a deliberação antecipada de resultados de um exercício que ainda está em curso (isto é, 2025) ou que sequer teve seu balanço encerrado, configura uma exigência quase que tecnicamente inexequível e certamente juridicamente inconsistente. Tal descompasso entre a norma tributária e a norma societária cria uma incerteza legal que viola a boa-fé e a previsibilidade que o contribuinte legitimamente espera da legislação. O resultado é previsível: a insegurança jurídica gerada por falhas na técnica legislativa tenderá a fomentar uma constante judicialização, transferindo o debate do parlamento para os tribunais e protelando a justiça fiscal em si.
A Lei nº 15.270/2025 é um marco que sinaliza a disposição do Estado em promover a progressividade e combater a iniquidade estrutural do Imposto de Renda — ainda que a pequenos passos. Seu principal mérito reside em reconhecer que a justiça fiscal é um pré-requisito para a estabilidade social e até mesmo para efetivação dos direitos humanos, promovendo um alívio fiscal especialmente benéfico para os extratos sociais de baixa renda, que não podem, por sua vez, ser separados de questões de gênero e raça.
Entretanto, relembre-se que uma reforma tributária da renda deve ser um exercício de técnica e ética, e não apenas político. A efetividade da progressividade só será plena quando o sistema tributário for coerente em sua aplicação e justo em seu propósito de onerar os que detêm maior capacidade, pavimentando o caminho para um Estado mais equitativo e conforme à Constituição.
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[1] IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua). Síntese de Indicadores Sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira. 2024.
[2] ROCHA, Isabelle. Tributação e Gênero: como o imposto de renda da pessoa fisica afeta as desigualdades entre homens e mulheres. Belo Horizonte: Dialética, 2021.
Mini Curriculum
é advogada pós-graduada em Direito Tributário (PUC-MG) e em Direito Internacional (Cedin).
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