O ICMS e as atitudes que definem o império do direito

Liz Marília Vecci

A escola mineira de Direito Tributário é inspiradora, e como tal trouxe o sociólogo alemão Niklas Luhmann e o filosofo americano Ronald Dworkin para minha estante, ambos foram brilhantes pensadores do sistema jurídico, e são mencionados reciprocamente em suas obras. Ao analisar os conflitos de 2022 para o tributo estadual ICMS, utilizo uma frase do livro de Dworkin, “o império do direito é definido pela atitude (…) uma atitude contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com princípios, e o que tais compromissos e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância”.

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O ICMS em 2022 protagonizou debates intensos, e foi eleito o vilão nacional da guerra da União com os estados. O tributo que garante a autonomia federativa aos entes está sob fogo cruzado.

A ADC 49 do STF
Uma novela que começou em 2021 e esperávamos a solução esse ano ainda não teve as cenas finais. Em abril de 2021 ADC 49-STF foi julgada improcedente, a unanimidade de votos. Desde então não há mais dúvidas sobre a inexistência de tributação pelo ICMS nas transferências entre estabelecimentos do mesmo titular. Isso em si seria uma boa notícia.

Contudo, a referida decisão foi atacada por embargos de declaração, a fim de provocar a Corte a delimitar a modulação de efeitos da decisão e, principalmente, a esclarecer o destino dos créditos de ICMS, apropriados nas operações anteriores, decorrentes da sistemática da não cumulatividade desse tributo.

É possível afirmar, com segurança, especialmente da leitura dos votos apresentados até aqui, que o entendimento dos ministros converge no sentido do voto do relator, isto é, rechaçaram o dever de estorno dos créditos de ICMS nas operações anteriores. Confirmando-se a tendência de que sejam reconhecidos e mantidos os créditos outra questão desponta, qual seja, a de se definir se é possível a transferência desses créditos entre estabelecimentos do mesmo titular, especialmente quando estes estiverem em distintas unidades da federação.

Destarte, extrai-se dos votos até aqui pelos ministros outro ponto de intersecção: a corte entende que cabe a Lei Complementar Federal o regime de compensação do ICMS, isto é, o modo como seria realizada a transferência desses créditos nas operações interestaduais.

Para o ministro Fachin, o Congresso teria até o final de 2023 para editar a referida Lei Complementar, enquanto que para os ministros Barroso e Toffoli, deve ser dado o prazo de até 18 meses a contar da publicação da ata de julgamento para a tarefa legiferante (divergência apenas sob o aspecto temporal na modulação de efeitos).

Os ministros também esclareceram que o dispositivo da Lei Kandir, objeto da ação, foi declarado parcialmente inconstitucional no mérito, ou seja, ocorreu sem redução de texto, o que implica dizer que apenas a incidência nas operações entre estabelecimentos foi afastada pelo STF, ficando mantida a regra da autonomia dos estabelecimentos da mesma Pessoa Jurídica para os demais fins (contábeis ou relativos à apuração do ICMS, por exemplo).

Vale registrar que o drama envolve também a existência no Congresso dois PL’s sobre o tema: PLS nº 332/2018 e PLP nº 148/2021. Ambos pretendem alterar Lei Kandir inserindo a não incidência do ICMS nas operações entre estabelecimentos do mesmo titular e, ainda, primordialmente, garantindo o direito ao não estorno do crédito nas operações anteriores.

Na proposta do Senado, chama atenção a apropriação do crédito como alternativa do contribuinte.

Tal ideia assenta-se em uma preocupação legítima: a repartição de receitas. É que mesmo sendo garantida a manutenção do montante apropriado na etapa anterior haveria superacumulação de créditos nos estados de origem, com a consequente perda de receita pelos estados onde situado este estabelecimento e ganho aos estados de destino, desequilibrando o pacto federativo.

A perspectiva que se desenrola é a de que os argumentos jurídicos superarão o debate sobre arrecadação tributária. Não há espaço para tributação das transferências à luz da Constituição e da Lei Kandir. Desse modo, a Lei Complementar Federal e as legislações estaduais precisam criar mecanismos práticos e efetivos de transferências de créditos a fim de se evitar o enriquecimento sem causa dos estados e dar efetividade à não-cumulatividade do ICMS, garantia constitucional pétrea e vetor do pacto federativo.

Adicione-se mais um ingrediente a esse assunto, benefícios fiscais. As legislações estaduais relativas a benefícios fiscais concedidos sobre transferências, precisarão adequar-se à nova realidade que se desenha.

A confusão está instalada. Esse é um caso que a modulação dos efeitos da decisão poderá conferir segurança jurídica para que a ordem constitucional seja restabelecida.

A seletividade e as Leis Complementares 194 e 192/2022
Trazendo ainda Dworkin, na análise de quais seriam os compromissos públicos de sua sociedade. 2022 foi um ano de efetiva demonstração, pelos três Poderes, de preocupação com o preço das mercadorias consideradas essenciais. Sendo assim, foram publicadas duas leis complementares que, sob o argumento de decisões seguirem a linha de entendimento do Supremo Tribunal Federal que fixou tese no tema 745. No precedente o colegiado assentou que, em matéria de ICMS, mesmo que a técnica da seletividade seja opcional aos estados (artigo 155, §2º, inciso III, da CF/1988 que estabelece que o ICMS poderá ser seletivo), uma vez que estado-membro gradue suas alíquotas em razão da essencialidade do produto, não lhe é dado estabelecer alíquotas para energia e telecomunicação maiores que a estabelecida para produtos não essenciais (alíquota geral).

Leis complementares sancionadas, onze Estados e o DF propuseram a ADI 7.195, arguindo que a Lei: A) Viola o pacto federativo e a competência tributária dos estados, a medida em que isso configuraria intervenção da União no poder de tributar dos estados; B) concede isenção heterônoma; C) Descumpre decisão do STF quanto à modulação de efeitos da decisão, fincada no julgamento do tema 745-STF, ferindo a coisa julgada e o princípio da separação dos poderes: com a vinda da Lei, os efeitos da decisão que incidiriam a partir de 2024 se tornaram imediatos.

A ação constitucional está sob a relatoria do Ministro Fux e ainda não há decisões, liminares ou de mérito. A matéria também está sendo discutida na ADPF 984, de relatoria do ministro Gilmar Mendes. Diante das duas ações, por proposta de Gilmar, em 2 de dezembro os estados e União entabularam acordo, estando entre as principais cláusulas deste: A) manutenção da essencialidade para o diesel, o gás natural e o gás de cozinha, o que de consequência que esses itens terão um teto de alíquota a ser respeitado (a modal); B) A aceitação pela União de que os estados e o DF irão escolher, via Confaz, se adotam alíquotas ad valorem (por valor do item — método atual) ou ad rem (alíquota fixa por unidade de produto), já que na LC 192/2022 ficou estabelecido que a alíquota seria “ad rem”.

No dia 15/12/2022, STF homologou, com placar de 6 a 0 o referido acordo. Doravante, o Congresso, segundo o voto do ministro Gilmar, deverá aperfeiçoar tanto a LC 194/2022 como a LC 192/2022, cuja iniciativa de PLP caberá à União.

Intensas são as críticas à não limitação da alíquota para gasolina, que ficou de fora do acordo sob o argumento dos estados de que é um item não essencial. Para estes limitá-la também ao teto da alíquota modal equivaleria privilegiar as classes mais abastadas que andam de carro, em contraponto com as menos favorecidas que utilizam transporte movido a diesel.

Dworkin diz que uma das atitudes que definem o império do Direito é também a atitude fraterna “uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções”.

O Difal do ICMS
O último assunto relativo ao ICMS que vamos mencionar é o Difal.

O Difal representa a diferença entre a alíquota interna do estado destinatário e a alíquota interestadual do remetente em operações interestaduais destinadas ao consumidor final não contribuinte do imposto. Nasceu da necessidade dinâmica do poder de tributar situações não previstas originalmente, que é o comércio não presencial, por isso a emendou-se a Constituição, EC 87/2015. Logo após, o Confaz publicou o Convênio ICMS nº 93/2015 para instituir e estabelecer as regras gerais para os estados de destino exigirem o Difal. Os estados começaram, então, a exigir o Difal. Os contribuintes, que reclamavam a edição de uma lei complementar federal.

No julgamento dos temas 1093 e 1094 do STF, o STF decidiu que havia necessidade de Lei Complementar Federal dispondo sobre a matéria. O Congresso, então, publicou no dia 05 de janeiro de 2022, a Lei Complementar nº 190/2022.

Os contribuintes então foram ao judiciário reclamar que diante da inobservância dos Princípios da Anterioridade de Exercício e Anual, a cobrança do Difal não poderia ser imediata.

O fizeram, então, por meio das ADI´s 7.066/DF, 7.070/DF e 7078/DF, todas de relatoria do Min. Alexandre de Morais. O relator julgou improcedente a ADI 7.066, de autoria da Abimaq, parcialmente procedente a ADI 7.070, do Alagoas; e procedente a ADI 7.078, do Ceará.

Em seu voto o ministro Alexandre de Morais afastou a aplicação dos mencionados princípios, mas pontuou que a cobrança do Difal só é possível a partir do primeiro dia útil ao terceiro mês (90 dias) subsequente ao da disponibilização do portal do Difal, que ocorreu em 29 de dezembro de 2021, mas produziu efeitos somente a partir de 1º de janeiro de 2022.

O min istro Toffoli acompanhou o voto do relator mas aplicou o Princípio da anterioridade nonagesimal, entendendo que esta foi a expressa opção do legislador na LC 190/2022. Após vista, o ministro Gilmar Mendes acompanhou Toffoli no dia 9/12/2022.

Nenhum dos ministros, todavia, votaram pela cobrança imediata do Difal, como defendem os Fiscos estaduais. Atualmente, o placar conta com cincos votos a favor da necessidade de observância do princípio da anualidade contra três pela cobrança após noventa dias. O voto prevalecente é o do ministro Edson Fachin, tendo ele sido acompanhado por Carmén Lúcia, Ricardo Lewandowski, André Mendonça, Rosa Weber. No último dia 12/12, após reunião com um grupo de 15 governadores, a presidente do STF, Ministra Rosa Weber se comprometeu a levar a matéria para julgamento no plenário físico ainda em fevereiro de 2023.

É importante frisar, nessa esteira, ponto comum nos votos dos ministros: A LC 190/2022 instituiu uma nova relação jurídico-tributária ao dispor sobre sujeição tributária ativa e aspectos temporais e quantitativos do fato gerador, portanto, cuidou ela de nova obrigação tributária correspondendo, assim, à instituição e/ou aumento de tributo.

O voto do ministro Fachin é no sentido de que a própria LC 190/2022 subordinou a matéria nela tratada a ambas as anterioridades, pois o seu artigo 3º determinou a observância do art. 150, III, c, da CF/1988, que, embora trate da noventena, determina seja observado o disposto na alínea b, do mesmo inciso, (relativo à anterioridade anual. Como se vê, a LC fez referência a ambos os princípios, não havendo razão legítima, ainda que se analise a letra apenas da Lei (desprezando a CF/1988), que essa foi a intenção do legislador.

Dia 12 de dezembro de 2022, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, se comprometeu a realizar o julgamento presencial das ações. O pedido foi feito por 15 governadores.

Diante desse cenário, espera-se, a conclusão do julgamento sobre o Difal ocorrerá em 2023. As perspectivas são as melhores para os contribuintes, ou seja, de que o voto do ministro Fachin prevalecerá, fazendo com que a cobrança do Difal só seja possível a partir de 1/1/2023.

Conclusão
Aqui foram apenas três assuntos dentre todas as complexas matérias tributárias colocadas em debate nacional no ano que se encerra.

Paira sobre a comunidade jurídica um desassossego sobre 2023 e aponto sem exagero o caso mais preocupante que é o julgamento dos REs 949.297 e 955.227 acerca dos limites da coisa julgada. A depender do que ocorrer comprometeremos a integridade do sistema, que o legitima e torna consistente.

Para 2023, esperamos que, como ensina o filósofo Ronald Dworkin, que o império do direito tenha uma atitude construtiva cuja “finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado”.

Liz Marília Vecci

tributarista, sócia fundadora do Terra e Vecci Advogados.

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