O Carf serve para proteger leis, não arrecadação!
Fernanda Lains Higashino
Muito se tem discutido sobre a composição paritária do Carf e sobre o voto de qualidade, especialmente no início deste ano de 2023 quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva editou a medida provisória (MP) que restabeleceu o critério de desempate das votações naquele tribunal administrativo em favor da União pelos presidentes das turmas e câmaras que são conselheiros representantes da Fazenda Nacional.
Sem adentrar nos argumentos capazes de demonstrar a ‘impropriedade” do voto de qualidade, esse artigo se propõe a revelar a instabilidade do próprio tribunal administrativo, a falta de debate técnico e de uniformização de entendimento sobre um mesmo tema, a consequente oscilação das decisões em vista da composição das turmas e câmaras e, por fim, o agravamento de todo esse cenário com o retorno da famigerada regra de desempate.
É urgente iniciarmos um debate mais amplo e mais profundo sobre a própria natureza e finalidade do Carf
Apenas como exemplo, abordaremos o tema do creditamento do PIS e da Cofins sobre o frete de produtos acabados.
Em agosto de 2022, a 3ª Turma da Câmara Superior do Carf havia mudado seu entendimento e, por maioria, permitido o aproveitamento de créditos de PIS e de Cofins sobre despesas com frete de produtos acabados (processo nº 11080.0053 80/2007-27). Antes disso, o entendimento do Carf era desfavorável aos contribuintes, esses sempre vencidos pelo voto de qualidade em favor do Fisco (processo nº 16682.904221/2011-28).
A discussão gira em torno do frete adequar-se ou não ao conceito de insumo essencial para o desenvolvimento da atividade econômica do contribuinte. Em outras palavras, se o frete integra ou não o processo produtivo. Até agosto de 2022, vencia o entendimento do Fisco de que frete de produto acabado tem natureza de despesa logística, com caráter operacional, e, uma vez não inserido no processo de produção, não origina créditos de PIS e de Cofins.
Em agosto de 2022, com a virada da jurisprudência, consequência direta da alteração da composição do Carf e do aumento do rigor técnico com que os julgamentos passaram a ser realizados, venceu o entendimento de que os critérios da essencialidade e da relevância, nos termos em que definidos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do Tema nº 779, devem ser aplicados com vistas à atividade econômica (global) desempenhada pelo contribuinte e, não, naquele contexto estreito de produção, comercialização ou prestação de serviço.
A tese fixada pelo STJ é a de que “o conceito de insumo deve ser aferido à luz dos critérios de essencialidade ou relevância, ou seja, considerando-se a imprescindibilidade ou a importância de determinado item – bem ou serviço – para o desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo contribuinte”. Em momento algum se fala na essencialidade do item para o processo de produção de determinado bem ou mercadoria pelo contribuinte.
No entanto, logo depois, em outubro de 2022, entra em cena novamente o voto de qualidade e, assim, a 1ª Turma, no mesmo tema de creditamento do PIS e da Cofins sobre as despesas com frete de produtos acabados, torna a aplicar o critério da essencialidade e da relevância de forma mais estrita, mirando essencialmente o processo produtivo (processo nº 16692.720703/2016-12).
Essa pequena linha do tempo é interessante porque joga luz sobre as mazelas dos julgamentos realizados pelo Carf e cujas críticas vão muito além da fixação ou não do voto de qualidade como regra de desempate utilizada pelo tribunal.
A oscilação da jurisprudência sobre um único tema mostra a vulnerabilidade dos contribuintes, seja para planejar, seja para operar no Brasil, haja vista qualquer mudança na composição das turmas e câmaras do Carf, de sua regra de desempate ou da ausência de guia normativo quanto à uniformização de entendimentos impactarem critérios adotados pelas companhias como corretos para a apuração e pagamento de tributos.
É urgente iniciarmos um debate mais amplo e mais profundo sobre a própria natureza e finalidade do Carf. De acordo com o seu regimento interno, o Conselho é órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, que tem por finalidade julgar recursos de ofício e voluntário de decisões de 1ª instância e os recursos de natureza especial, que versem sobre a aplicação da legislação referente aos tributos administrados pela Receita Federal.
Vejam: a finalidade do Carf não é cobrar e arrecadar tributos para alimentar os cofres públicos! Mas, sim, julgar a aplicação da legislação federal pelos órgãos de arrecadação, se correta ou não. Indo ao extremo, a finalidade do Carf é honrar o direito fundamental ao devido processo legal, sem o qual o contribuinte não pode ser privado de seu patrimônio.
Não há como se cogitar de um tribunal administrativo isento, cujo governo pretende usar como método de arrecadação ou que não debata tecnicamente os temas que lhe são submetidos, estabilizando entendimento sobre eles que não flutuem de acordo com a composição do órgão. É tempo de debatermos o Carf!
O voto de qualidade não é o grande vilão do tribunal! Não é o (único) responsável pela reversão de entendimentos sobre temas até então decididos favoravelmente aos contribuintes! Para melhor equacionarmos o problema, precisamos revisitar a formação da jurisprudência no tempo e analisar a composição – até então paritária – daquele tribunal.
É chegada a hora dos pilares de sustentação do Carf serem revisto: composição, critérios de julgamento (análise técnica) e desempate e, muito importante, ferramenta de estabilização de seus precedentes.
Sem previsibilidade mínima a guiar os contribuintes, restará ao Judiciário, inexoravelmente, a solução de todos os temas, tal como no caso do creditamento de PIS e de Cofins sobre o frete, em que recentemente (13 de março), o ministro Gurgel Faria, do Superior Tribunal de Justiça, deferiu o direito da requente ao desconto dos créditos em questão (AgInt no AgInt no REsp 1.649.142/RS).
Fernanda Lains Higashino
tributarista, sócia do Bueno Tax Lawyers