Não cumulatividade pós-reforma: Gato escaldado tem medo de água fria?
Por Pilar Coutinho
14/10/2025 12:00 am
Durante o processo de implantação da reforma tributária, tenho notado a insegurança perante o incontornável des/encontro da teoria nova com a prática anterior. A desconfiança não é infundada. No sistema anterior, constavam diversas restrições à não cumulatividade, desde a impossibilidade de crédito entre tributos até quanto ao que gerava – ou não – crédito para cada um destes. É o caso das quase anedóticas discussões sobre o crédito físico no IPI ou sobre o que compõe ou não atividade essencial para fins de PIS e Cofins.
Assim, é natural que o tributarista olhe ressabiado para a esfera teórica em que se consagra a origem da não cumulatividade pós-reforma, qual seja, o princípio da neutralidade, segundo o qual IBS/CBS devem evitar distorções nas decisões de consumo ou na organização da atividade econômica (art. 2º da LC 214). Algo como: já ouvimos essa história antes. Essa suspeita pode ficar ainda mais forte quando tanto o princípio da neutralidade quanto a própria previsão da não cumulatividade estão acompanhados por exceções previstas na Constituição Federal e na Lei Complementar (arts. 156-A, inc. VIII, da CF, e 2º, LC 214).
De fato, já vivemos outras situações em que a concessão de créditos foi esvaziada pela extensão das exceções.
De uma perspectiva macro, é preciso destacar que, ainda que se estendam as exceções com interpretações ampliativas ou até mesmo com novas previsões legais, a reforma importa em fortalecimento do princípio da não cumulatividade. É uma decorrência estrutural quando comparada com o sistema anterior. Ou seja, embora o princípio da neutralidade venha, obviamente, a receber interpretação por parte dos aplicadores do Direito, ele também é parte estrutural da Reforma, o que, por si só, já aumenta a “possibilidade” de creditamento.
Expliquemos. Em primeiro lugar, a própria extinção e unificação de tributos afasta parte da “cumulatividade” do sistema anterior, ao permitir que bases econômicas similares (mercadorias, produtos industrializados, serviços, receita bruta) passem a gerar crédito entre si, o que não era possível em um sistema em que o IPI e o ICMS eram não cumulativos, respectivamente, consigo mesmos, o ISSQN era cumulativo e o PIS/Cofins podiam ou não ser. Ou seja, as “não cumulatividades” eram isoladas. Além disso, entendia-se que as “não cumulatividades” existentes adequavam-se ao perfil dos tributos quanto ao que gerava crédito ou não. O resultado já sabemos: décadas de discussão judicial sobre qual deveria ser a não cumulatividade de cada tributo.
Algum pessimista da reforma poderia contra-argumentar: mas os créditos do IBS e da CBS não são compensáveis entre si (art. 45, LC). De fato, não são. Tampouco poderiam ser, diante da solução federativa adotada. Mas, em termos constitucionais, as hipóteses que geram créditos são as mesmas (art. 195, § 16º) e — até agora — parece haver um esforço para que interpretações do Fisco ou discussões judiciais não desnaturem essa característica.
Outro ponto de incontornável expansão da “não cumulatividade” é o fato de que agora os dois tributos gêmeos incidem sobre “todas as operações” com “bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço”, o que garante também créditos referentes a essas operações.
Também se falou muito da adoção do crédito financeiro, vendido como a grande novidade da reforma. Não adianta dar “Ctrl+L” na lei ou na Constituição. A expressão “crédito financeiro” é uma classificação doutrinária, decorrente de uma visão não “física”, concreta, da criação de valor, mas da sua composição econômica. Seria, assim, uma decorrência de diversos dos elementos elencados acima, somada às hipóteses restritas de não creditamento. Gera crédito não só o que entra na linha de industrialização, na linha de comercialização, mas também a despesa administrativa sem a qual não existem tais linhas.
Durante o processo de discussão do PL que deu origem à LC, um dos principais motivos de crítica da doutrina foi a lei condicionar o creditamento à extinção do crédito tributário. Entretanto, de uma perspectiva operacional, essa exigência é mitigada pelo disposto no art. 48 da Lei, segundo o qual a exigência só é aplicável se implantadas modalidades de extinção do crédito tributário praticamente automatizadas – caso do split payment – ou no âmbito de controle do contribuinte – caso do recolhimento por este.
De uma perspectiva material, existem dois grupos de hipóteses de não creditamento ou de restrições ao creditamento:
Os bens/serviços de uso ou consumo pessoal (art. 57, LC),
Outras hipóteses previstas na Constituição e na Lei Complementar, notadamente os regimes específicos de tributação e determinadas hipóteses de medidas desonerativas (art. 156-A, § 7º, CF).
Não é escopo deste texto adentrar nas minúcias sobre cada uma das exceções, tampouco determinar em cada uma das hipóteses se o legislador complementar “esticou a corda” em relação à Constituição.
A proposta é dar uma visão geral sobre o tema e pensar sobre como lidar com uma situação concreta diante de toda a teoria. Considerando que o creditamento em regra é amplo, a nossa sugestão é que o aplicador parta das exceções diante de uma aquisição que cumpra os requisitos formais para gerar crédito. Seria o caso de indagar:
1.Está-se diante de operação desonerada? Qual? A operação desonerada em questão traz restrições ao creditamento?
2.É o caso de regime específico? O regime específico em questão traz restrições ao creditamento?
3.Está-se diante de uma operação com bens de uso e consumo pessoal? Ainda que diante de operação com bem de uso e consumo pessoal, enquadra-se em uma das operações em que ainda é previsto o creditamento?
No caso da medida desonerativa, seu impacto no creditamento depende da sua natureza. De fato, imunidade, isenção e sujeitas à alíquota zero não permitem, em regra, apropriação de crédito (art. 49). Mas apenas imunidade e isenção importam em anulação dos créditos relativos às operações anteriores (art. 51) — de novo, com exceções, como no caso das exportações. No caso de operações com alíquota zero, são, no entanto, mantidos os créditos referentes às operações anteriores (art. 52). Embora, de uma perspectiva leiga-econômica, não faça sentido nenhum dado à idêntica consequência prática (a não tributação), tais medidas — de uma perspectiva jurídico-teórica-operacional — não têm a mesma natureza, o que é usado como justificativa para o tratamento distinto.
Ao lado do regime regular do IBS/CBS, existem regimes específicos voltados para determinados setores da economia, hipóteses em que a Constituição reconhece possibilidade de impacto/adequação do regime de creditamento (art. 156-A, § 6º).
Por exemplo, quanto aos combustíveis e lubrificantes, a Carta impõe a monofasia vedando a apropriação de créditos (art. 156-A, § 6º, inc. I, alínea “b”). Já no caso de serviços financeiros e de hotelaria, parques de diversão etc., indica a possibilidade de alterações nas regras de creditamento (art. 156-A, § 6º, inc. II, inciso IV). Nesse último caso, a LC, por um lado, reduz as alíquotas em 40% e, por outro, veda a apropriação de créditos pelos adquirentes desses serviços (art. 283). É, portanto, necessário validar se cada aquisição tem os créditos impactos por um regime específico.
Por fim, apresentam-se os bens de uso e consumo pessoal, cujo creditamento é restrito ainda na fórmula geral da não cumulatividade pós reforma (art. 156-a, VIII, CF, art. 47, LC). A lógica da ausência de creditamento dessa espécie de bem decorre de o contribuinte – nesse caso – se confundir com o consumidor final. Entretanto, o art. 57 trata dos “bens e serviço de uso ou consumo pessoal”, mas sem apresentar uma definição.
Primeiro, há uma lista exemplificativa de bens que se enquadram como de uso ou consumo pessoal (ex.: jóias, obras de arte, etc.), seguida de uma categoria genérica vinculada ao destinatário e ao valor (art. 57, inc. II).
Após indicam-se alguns bens que, embora previstos inicialmente como bens de uso e consumo, são excepcionados dessa categoria quando utilizados na atividade econômica, gerando, portanto, crédito. A categoria abrange tanto bens e serviços diretamente vinculados à atividade econômica, como armas e munições nas empresas de segurança, quanto indiretamente ao beneficiarem empregados e administradores, caso de serviços de creche e de plano de assistência à saúde (art. 57, § 3º).
Destaque-se a importância da sistemática de começar pelas exceções. A hospedagem, por exemplo, é uma categoria que encaixa perfeitamente na hipótese geral. Mas que na hipótese de ser realizada via hotelaria não poderá gerar crédito em virtude do disposto no art. 283.
Se não houver o enquadramento nas exceções é bem provável — cumpridos os requisitos formais – que haja o direito ao creditamento. A expressão “ bem provável ” decorre de algumas percepções. A primeira é que a mentalidade pré-reforma poderá comprometer a interpretação dos institutos da reforma. A segunda é que , tampouco na União Europeia, em que o princípio da neutralidade é descrito de forma bem mais contundente, a controvérsia inexiste — ainda que de forma bem mais enxuta.
A terceira é muito simples e muito humana: gato escaldado tem medo de água fria.
Este texto não teria se consolidado sem a participação em curso promovido pela ABINEE, em que co-palestrei com Flávio Yoshida sob a intermediação de Claudia Marchetti. Meu agradecimento a ambos pela troca e pelos insights que enriqueceram a reflexão.
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